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Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)
Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)
Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)
E-book563 páginas5 horas

Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)

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Sobre este e-book

Este livro aborda questões fundamentais da nossa contemporaneidade: guerra, deslocamentos, exílio, lutas e experiências cotidianas, memórias. Partindo das memórias do ex-combatente da Guerra Civil Espanhola Pedro Brillas (1919-2006), recupera através de envolvente narrativa experiências da guerra, o cotidiano nos campos de batalha, contextualiza La Retirada, a trajetória dos republicanos espanhóis exilados na França em 1939, com a proximidade do fim do conflito, que gerou a criação de inúmeros campos de concentração no país, inclusive do conhecido Camp d'Argelès-sur-Mer, destinado aos espanhóis refugiados, e o seu exílio duradouro ou permanente devido ao regime totalitarista implantado pelo General Franco na Espanha. Fruto de intensa pesquisa, a autora analisa as temáticas de forma criteriosa, empreendendo um diálogo construtivo com a historiografia contemporânea, possibilitando ao leitor rastrear cenários e o contexto histórico vivenciado e registrado pelo autobiógrafo de modo contundente e vívido.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de dez. de 2017
ISBN9788593955068
Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)

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    Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol - Geny Brillas Tomanik

    GENY BRILLAS  TOMANIK

    MEMÓRIAS, DESLOCAMENTOS, LUTAS E EXPERIÊNCIAS DE UM EXILADO ESPANHOL: PEDRO BRILLAS (1919-2006)

    VOLUME 1

    SÃO PAULO

    e-Manuscrito

    2017

    PREFÁCIO

    Pelos caminhos de Pedro Brillas:

    reconstruindo trajetórias e recuperando memórias

    Todo pasa y todo queda,

    pero lo nuestro es pasar,

    pasar haciendo caminos,

    caminos sobre el mar.

    Nunca persequí la gloria,

    ni dejar en la memoria

    de los hombres mi canción;

    yo amo los mundos sutiles,

    ingrávidos y gentiles,

    como pompas de jabón.

    Me gusta verlos pintarse

    de sol y grana, volar

    bajo el cielo azul, temblar

    súbitamente y quebrarse…

    Nunca perseguí la gloria.

    Caminante, son tus huellas

    el camino y nada más;

    Caminante, no hay camino, 

    se hace camino al andar.

    Al andar se hace camino

    y al volver la vista atrás

    se ve la senda que nunca

    se ha de volver a pisar.

    Caminante no hay caminho sino estelas en la mar…

    Hace algún tiempo en ese lugar

    donde hoy los bosques se visten de espinos

    se oyó la voz de un poeta gritar

    Caminante no hay camino, se hace camino al andar.

    Golpe a golpe, verso a verso…

    Murió el poeta lejos del hogar.

    Le cubre el polvo de un país vecino.

    Al alejarse le vieron llorar.

    Caminante no hay camino, se hace camino al andar.

    Golpe a golpe, verso a verso…

    Cuando el jilguero no puede cantar.

    Cuando el poeta es un peregrino,

    cuando de nada nos sirve rezar.

    Caminante no hay camino, se hace camino al andar.

    Golpe a golpe, verso a verso.

    Antonio Machado (poeta)

    Inspirada pelos versos de Antonio Machado e movida pelo desejo muito próprio dos historiadores de interrogar o passado, Geny Tomanik compôs seu livro: Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006), no qual enfrenta o desafio de entrecruzar a análise histórica com as questões da memória, deslocamentos e subjetividades. Visitando o passado através de uma ampla documentação e rastreando polêmicas em torno dos temas, a obra recupera de forma crítica e criteriosa as tensões históricas a partir do protagonismo do anarquista espanhol Pedro Brillas (1919-2006). 

    Fundamentada na tese de doutorado em história, defendida na PUC/SP, a obra traz imensas contribuições, recobra questões, revê interpretações, desvela silêncios e ocultamentos, trazendo novas luzes, preenchendo lacunas e abrindo novas perspectivas analíticas. A autora enfrentou o desafio de questionar interpretações e preencher vazios, recompondo a produção sobre a Guerra Civil Espanhola, La Retirada e os Campos de Concentração franceses que confinaram os republicanos espanhóis. Apesar da historiografia sobre essas temáticas estar sendo revista, ainda são raras as investigações que partem de uma experiência histórica singular, de uma pessoa comum que deixou suas memórias e escrituras, tornando esses escritos inovadores.

    Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006) revela uma investigadora incansável, que apesar das dificuldades enfrentadas, superou bravamente os obstáculos na busca de indícios, sinais e vestígios de outros tempos, conseguindo desvendar o mosaico documental, dando visibilidade a segredos encobertos, desvelando o passado, clareando trajetórias, práticas e representações. A pesquisa teve como fio condutor os escritos autobiográficos de Pedro Brillas (construídos e reconstruídos ao longo de sua vida), um precioso conjunto documental composto de cartas, diários, memórias, cadernos, cadernetas, apontamentos, cartões, fotos e pequenos objetos de recordação. A esse rico acervo foram acrescentados outras fontes pesquisadas em arquivos brasileiros e espanhóis, agregando-se também histórias de vida, recuperadas pela História Oral. O diálogo entre esta ampla documentação e uma rica bibliografia possibilitou uma interpretação plena de significados.

    Estes escritos se iniciam focalizando Guerra Civil Espanhola: histórias, memórias e experiências, neste item recupera as memórias e experiências de luta do protagonista - o combatente republicano Pedro Brillas. Na sequência recobra o deslocamento dos republicanos em direção à França - La Retirada (1939) e culmina com a análise dos confinamentos dos espanhóis em solo francês, particularizando no Camp d’Argelès, onde o protagonista ficou detido por mais de sete meses; nesta etapa, descreve os dramas cotidianos enfrentados (doenças, tratamento desumano, humilhações e mortes) e a busca por alternativas.

    Na obra desponta uma exímia conhecedora do ofício de historiador, que traz contribuições significativas para desnaturalizar interpretações, observando criticamente as questões da Guerra Civil Espanhola (apesar de não se tratar de um trabalho exclusivo sobre esse conflito) enfrentou silêncios historiográficos impostos pelo totalitarismo franquista e pela produção francesa (no caso sobre os campos de concentração). Assim, em convergência com tendências recentes, Geny denunciou ocultamentos, deu vozes aos vencidos do conflito espanhol e recuperou seu papel histórico. 

    A investigação aqui produzida ilumina o passado, desvela segredos encobertos por evidências inexploradas, recupera experiências, remonta cenários, recompõe práticas de luta e resistências; recobrando o protagonismo de Pedro Brillas e de outros personagens, descobre o inesperado, não no sentido de apontar o excepcional, mas, trazendo à tona o que até então estava submerso no passado.  

    Entre outras virtudes já apontadas, o texto fluido proporciona uma leitura envolvente, fundamentada na extensa investigação e erudição da autora, que usou toda sua sensibilidade de pesquisadora e narradora. Recomendaria ao leitor deixar-se levar nesta viagem pelo tempo, tendo Geny como uma guia no desafio de visitar o passado, descobrir segredos e revelar sonhos que moveram as lutas e as agruras enfrentadas por Pedro e muitos outros combatentes republicanos. 

    Novamente, é o poeta Antonio Machado que ilumina o final deste prefácio, sintetizando os sentimentos mais profundos do seu povo.

    Yo voy soñando caminos 

    de la tarde. ¡Las colinas

    doradas, los verdes pinos,

    las polvorientas encinas!…

    ¿Adónde el camino irá?

    Yo voy cantando, viajero,

    a lo largo del sendero…

    -La tarde cayendo está-.

    En el corazón tenía

    la espina de una pasión;

    logré arrancármela un día;

    ya no siento el corazón.

    Y todo el campo un momento

    se queda, mudo y sombrío,

    meditando. Suena el viento

    en los álamos del río.

    La tarde más se oscurece;

    y el camino se serpea

    y débilmente blanquea,

    se enturbia y desaparece.

    Mi cantar vuelve a plañir:

    Aguda espina dorada,

    quién te volviera a sentir

    en el corazón clavada.

    Yo voy soñando caminos

    Boa leitura

    Maria Izilda S. Matos 

    Profª Drª Livre-docente da PUC-SP

    SP, 01.11.2017

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço primeiramente ao meu amado pai, memorialista perspicaz, detalhista e laborioso na missão a que se propôs, já na juventude, na década de 1930, narrando as suas experiências e expondo as suas sensibilidades irrestritamente, deixando-nos um precioso legado, o qual tenho o privilégio de socializar e analisar neste livro. Pedro Brillas (in memoriam) foi um jovem que lutou pelo ideário democrático e libertário e, como milhares de hispânicos, tornou-se exilado em fevereiro de 1939; a partir de então, foi levado por contingências inesperadas e adversas, com risco de morte, mas nem por isso ficou traumatizado ou neurótico – como já me perguntaram –, mantendo a lucidez até o fim da vida. Com ele tenho dialogado intensamente nos últimos anos sobre a sua história de vida e de resistência. Agradeço-lhe também pela sua dedicação ao amor da sua vida, sua amada Mia, minha mãe, que abdicou de sua família e raízes para acompanhar o seu amado em veredas estrangeiras, mesmo com risco pessoal.

    Em especial à querida, sábia e talentosa orientadora e agora amiga Profª. Drª. Maria Izilda Santos de Matos, que me acolheu, guiou-me magistralmente por caminhos e perspectivas novas e me incentivou neste desafio pessoal e acadêmico.

    Agradeço também especialmente à Tata (Dina Macip) - minha tia francesa de coração - por seu tempo, paciência e lucidez, no alto dos seus mais de 90 anos, pelas inúmeras entrevistas e diálogos informais, além dos diversos entrevistados.

    Aos familiares e amigos que compreenderam e aceitaram a minha ausência em muitos eventos familiares e sociais, a labuta madrugada adentro, em fins de semana e feriados, e a todos aqueles que, direta ou indiretamente, me apoiaram e me ouviram (muitas vezes!), especialmente ao meu querido esposo, Celso, pelo seu companheirismo e amor incondicionais ao longo desses anos e desta jornada. Dedico-lhe meu profundo amor e admiração. 

    Sou-lhes muito grata! 

    Geny Brillas Tomanik

    Dedico este trabalho ao meu querido pai, Pedro Brillas Togores (in memoriam), que lutou com armas por um ideal e com a sua caneta para que essa luta não fosse esquecida.

    SUMÁRIO

    À GUISA DE PRÓLOGO

    APRESENTAÇÃO

    CAPÍTULO I – GUERRA CIVIL ESPANHOLA: HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS

    1.1 HISTÓRIAS E HISTORIOGRAFIA: QUESTÕES EM TORNO DA GUERRA HISPÂNICA

    1.2 BATISMO DE FOGO: JOVEM ANARQUISTA

    1.3 ENTRE COMBATES E PARADAS: FRONT DE HUESCA, ARAGÃO

    1.4 MEMÓRIAS E LUTAS: FRONT DA CATALUNHA E BATALHA DO RIO SEGRE

    CAPÍTULO II – REPUBLICANOS EM ÊXODO: SOBREVIVÊNCIA NOS CAMPOS DE INTERNAMENTO

    2.1 LA RETIRADA: ÊXODO REPUBLICANO

    2.2 INTERNAMENTO EM TERRITÓRIO FRANCÊS: CAMP D’ARGELÈS

    2.3 MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DE PEDRO BRILLAS: LA RETIRADA

    2.4 ENTRE O MAR E ALAMBRADOS FARPADOS: CONFINAMENTO E SOBREVIVÊNCIA

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    APÊNDICE

    ANEXOS

    NOTAS

    LISTA DE FIGURAS E QUADRO

    Figura 1 - Pedro Brillas, 1937

    Figura 2 - Diagrama da trajetória de Pedro Brillas (1919-2006)

    Figura 3 - Pedro Brillas, 2005

    Figura 4 - Prólogo Mis Memorias (24 janeiro 1938)

    Figura 5 - Divisão da Espanha, ago. set. 1936

    Figura 6 - Cartaz ¡No pasarán!

    Figura 7 - Guernica, Pablo Picasso, 1937 (3,49 x 7,76 m)

    Figura 8 - Divisão da Espanha após a conquista da Catalunha, em fevereiro de 1939

    Figura 9 - Cartaz das Juventudes Libertárias da Guerra Civil

    Figura 10 - Diário da frente de batalha do Rio Segre, Guerra Civil Espanhola

    Figura 11 - A partir da esquerda, Pedro, a mãe (Francisca) e o irmão Andrés Brillas, na frente da caserna Pedroalbes, Barcelona (ago. 1936)

    Figura 12 - Grupo de jovens milicianos da Columna Roja y Negra acompanhados de suas namoradas, na caserna Pedroalbes, Barcelona. Pedro ao fundo, no centro, e Andrés, o primeiro da esquerda na fileira do meio (ago. 1936)

    Figura 13- Trincheira do front de Huesca na Guerra Civil. À direita,Valentin Brillas, com um cigarro na mão (out. 1936)

    Figura 14 - Esquema do front de Huesca

    Figura 15 - Seis jovens do grupo de combatentes da dezena de Pedro da Columna Roja y Negra. Da esquerda para a direita, el Larg, Andrés e Pedro Brillas e três companheiros na Plaza de Cataluña (nov. 1936)

    Figura 16 - Mapa ilustrativo da trajetória de Pedro Brillas no front da Catalunha

    Figura 17 - Cartaz convocando sapadores e minadores à guerra

    Figura 18 - Cartaz das Escuelas de Guerra

    Figura 19 - Primeira página do texto datilografado por Pedro Brillas, capítulo sobre o exílio, especificamente sobre o Camp d’Argelès

    Figura 20 - Família Gracia, 1939

    Figura 21 - Passagem dos refugiados espanhóis por Le Perthus, 1939 (recorte)

    Figura 22 - Os campos franceses de agrupamento e internamento para estrangeiros (1939-1940)

    Figura 23 - Ilustração do trajeto percorrido por Pedro Brillas em 19391

    Figura 24 - Esquema da configuração do Camp d’Argelès

    Figura 25 - Caminhões na França carregando pães a serem distribuídos aos refugiados espanhóis (recorte em 6’40")

    Quadro 1 - Campos de internamento franceses destinados principalmente aos espanhóis

    LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    La llibertat viu lluny d’aquí, i això és l’exili. ¹

    La libertad vive lejos de aqui, y esto es el exilio.

     

    Ilustração de Jordi Brillas Espinàs, 2016

    À GUISA DE PRÓLOGO

    Assim como milhões de brasileiros, sou descendente (primeira geração) de imigrantes europeus, que procuraram no Brasil um refúgio seguro para a família, ante a iminência de uma nova guerra na Europa, no início da década de 1950. Meus pais enfrentaram muitos perigos, preconceitos e tensões, inclusive culturais, para estabelecerem a sua união: inicialmente, um namoro entre um catalão anarquista, ex-combatente da Guerra Civil Espanhola, com uma jovem alemã, em plena Segunda Guerra Mundial, em território alemão – união essa que fora proibida pelo regime nazista. Contra tudo e todos, rumaram juntos para a França, onde foram delatados e presos em um campo de concentração.

    Impedido de retornar à sua pátria por motivos políticos, Pedro Brillas viveu no exílio a partir de fevereiro de 1939. No pós-guerra, a partir de 1945, com o seu novo núcleo familiar multicultural (ele espanhol, a esposa de origem alemã e o filho francês), viveu primeiramente em Paris, França, e após seis anos, em 1951, reemigraram juntos para São Paulo, Brasil. Essa é a história de vida e de luta que se busca entender e analisar, relatada pormenorizadamente pelo autobiógrafo, meu pai. Sou guardiã de um rico e exemplar legado, perfazendo sete décadas de escrita de si, iniciada durante a Guerra Civil Espanhola.

    Figura 1 - Pedro Brillas, 1937. ²

    Desde criança ouvia-o contar entusiasmadamente sobre as suas experiências e aventuras – dramáticas, pitorescas ou marcantes – das guerras (Guerra Civil Espanhola e Segunda Guerra Mundial), nas quais sobreviveu a muitos perigos. Talvez haja passagens e aspectos silenciados e supervalorizados nos seus relatos, sobretudo nas narrativas orais, pois Pedro Brillas pouco falava a respeito de questões familiares e cotidianas. Por outro lado, sempre recordava acerca da alimentação, detalhadamente, passadas tantas décadas, talvez porque tenha sido frequente a carência alimentar em sua infância e juventude, sobretudo durante as guerras.

    Contudo, preferia narrar as recorrentes estratégias de sobrevivência, até com um leve tom de picardia. Ao rememorar oralmente, não se vitimizava, mas sempre destacava os momentos pitorescos e emocionantes, fazendo certo suspense ao longo do seu discurso de horas até o desfecho, como se fosse um trovador. Quiçá devido a mecanismos de defesa³ e para prender a atenção dos ouvintes, era mais fácil relembrar e destacar as experiências adversas a que sobreviveu com desfechos inusitados do que aquelas em que o seu protagonismo tenha sido irrelevante.

    Deve-se destacar que Pedro manteve a construção da sua autobiografia ao longo de décadas, não apenas objetivando a constituição de si, mas também a dos seus descendentes, com a finalidade de que estes tomassem conhecimento da sua trajetória, experiências e sensibilidades. Ao contrário dele próprio, que desconhecia quase totalmente a história de vida e sentimentos do seu pai, já que faleceu quando Pedro tinha apenas três meses de vida, fato que o inquietava, pois representava um vazio da sua origem paterna.

    Cabe ressaltar que, tanto na leitura dos seus escritos como ao ouvi-lo contar as suas histórias, é/era possível imaginar o cenário, tamanha a riqueza de detalhes – reconhecida por um amigo, na correspondência epistolar –, possibilitando ainda projetar um filme. Esses relatos orais vivazes e a intermitente escrita das suas memórias ao longo dos anos fazem parte não apenas das minhas lembranças pessoais, mas da memória familiar, despertando a atenção e a curiosidade dos ouvintes.

    Já moça, junto com minha irmã, incentivei-o a finalizar os seus escritos. No início da década de 2000 digitei parte dessas memórias manuscritas⁴ e revisadas por ele, até o ano de 2005. Todavia, com o objetivo de publicar um livro sobre as suas experiências, pelo menos destinado aos familiares, e diante da intenção de prestar depoimento para uma televisão catalã, em Barcelona, em 2006, nas celebrações do 70º. aniversário do início da Guerra Civil Espanhola (1936), Pedro decidiu, ele próprio, retomar e finalizar a transcrição dos seus manuscritos na sua antiga máquina alemã Olympia da década de 1950, nos últimos anos de vida. Em 2005, o autor enviou ao seu sobrinho espanhol Jordi Brillas Espinàs a primeira parte⁵, relativa à Guerra Civil Espanhola, para traduzir para o catalão, cuja ortografia e gramática desconhecia.

    Infelizmente, depois de fraturar o pé seriamente, em 2006, com pouca perspectiva de recuperação, o meu pai adoeceu, portanto não pôde viajar para dar o seu testemunho e apresentar as suas memórias, e em seis meses faleceu. Entretanto, antes da sua morte, finalizou a reconstrução das suas memórias, cujo legado tenho o orgulho e privilégio de compartilhar (parcialmente) com esta obra.

    Cabe esclarecer que, de certo modo, não fui eu quem escolheu o objeto de investigação, foram as circunstâncias que me escolheram como sua pesquisadora. Apesar da relevância da fonte, reconhecida por pessoas próximas, não imaginava que pudesse ser alvo de um estudo acadêmico, por se tratar da autobiografia de uma pessoa comum. No entanto, ao ingressar no mestrado e realizar algumas leituras, tomei conhecimento de que havia pesquisas sobre e/imigração não apenas sob o viés do fluxo demográfico e das estatísticas, mas também abordando aspectos sociais, as interações e tensões culturais entre a sociedade receptora e os grupos de deslocados, ou seja, envolvendo experiências e questões subjetivas individuais, que refletem contextos sociais, políticos e culturais vivenciados pelos e/imigrantes.

    Durante o mestrado, ao apresentar um seminário fundamentado em um texto de Pollack (1992) sobre memória, e exemplificar com trechos dos textos autobiográficos de Pedro Brillas, a mestra afirmou que o material documental do memorialista era um tesouro, digno de um doutorado. Entretanto, visto que a pesquisa de mestrado já se encontrava avançada, com outra temática, não deveria ser interrompida. Foi uma grande surpresa a possibilidade de analisar academicamente as suas memórias, um privilégio pessoal, ainda mais em um doutorado. Considerando-se que o autor dedicou as suas memórias aos familiares, amigos e a todos os interessados, com certeza apreciaria a socialização acadêmica dos seus relatos. Esses escritos permaneceram guardados em malas e gavetas por várias décadas, restritos ao ambiente doméstico, fato comum das escrituras de populares.

    De certo modo, trata-se de um trabalho imbuído da memória afetiva e familiar que busca recuperar a trajetória, experiências, lutas e subjetividades de um sujeito histórico, testemunha e protagonista de eventos marcantes vivenciados por milhares de conterrâneos republicanos espanhóis, se inscrevendo na História Cultural contemporânea. Embora seja necessário certo distanciamento entre pesquisadora e objeto de investigação, paradoxalmente, a proximidade afetiva com o autor facilita a análise de determinados contextos autobiográficos, inclusive subliminares, desconhecidos ou imperceptíveis por terceiros⁶, contribuindo para isso a memória pessoal dos seus recorrentes relatos orais durante a mútua convivência.

    Minha memória pessoal remete à escrita de si de Pedro Brillas em cadernos escolares, em sua escrivaninha, nos intervalos do atendimento de clientes do seu comércio. Seus escritos são pautados na re/construção das experiências vivenciadas em sua trajetória, com recorrentes deslocamentos a partir da Guerra Civil Espanhola, no exílio europeu, levado pelas circunstâncias – com reduzido arbítrio próprio –, até o ingresso no Brasil, quando, segundo ele, pôde finalmente assumir o leme da sua vida. O diagrama a seguir destaca a compilação desses sucessivos deslocamentos de Pedro, possibilitando uma visualização geral da sua trajetória, que será apresentada ao longo deste estudo em detalhes.

    Figura 2 - Diagrama da trajetória de Pedro Brillas (1919-2006).

    Em 2005 Pedro foi convidado a contar a sua trajetória e experiências de vida para uma plateia de estudantes e professores de História do ensino fundamental (oitavas séries) de um colégio do interior do estado de São Paulo, ocasião em que narrou com desenvoltura algumas vivências marcantes, durante aproximadamente 7 horas (somando-se os dois turnos escolares). É o único relato oral do memorialista registrado em vídeo, embora captado por apenas alguns minutos. O público o aplaudiu em pé, alguns perguntaram quando seria publicado o seu livro.

    Figura 3 - Pedro Brillas, 2005.

    Cabe notar que, em alguns momentos, as memórias de Pedro Brillas e de Joaquim Macip se entrecruzam, sendo que a autobiografia de Joaquim é utilizada apenas em contextos específicos no presente estudo. A deflagração do conflito hispânico também é o assunto inicial das resumidas (39 páginas) memórias⁹ do valenciano Joaquim Macip (1917-2011), escritas aos 90 anos, no fim da sua vida, talvez influenciado pelo seu amigo fraterno Pedro Brillas, já falecido. A sua narrativa sobre os dramas das duas guerras também faz parte da memória familiar da sua esposa ítalo-francesa, Dina Macip, dos seus filhos franceses e netos. 

    Seus caminhos se cruzaram em Hagen, Alemanha, em meados de 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, onde ambos trabalhavam. Os dois conterrâneos vivenciaram a Guerra Civil Espanhola (embora Joaquim não tenha entrado em combate no conflito), cruzaram a fronteira francesa, passaram por campos de concentração na França, sofreram e sobreviveram, por vezes juntos, a bombardeios e rajadas de metralhadoras na Alemanha, reemigraram para a França. Reencontraram-se em Paris no pós-guerra, em 1946, ambos casados com estrangeiras; viveram na cidade – onde se adaptaram bem ao estilo de vida cosmopolita – até o início da década de 1950, sempre com a esperança de retornar à Espanha, da mesma forma que o seu círculo de amigos refugiados espanhóis. Todavia, o governo totalitarista de Franco não dava sinal de arrefecimento.

    Diante do ambiente da Guerra Fria e do receio de um novo conflito bélico na Europa, as famílias Brillas e Macip, com filhos menores nascidos na França, decidiram em conjunto emigrar para um país mais seguro, subsidiados pela International Refugee Organization (IRO)¹⁰, recaindo a escolha sobre a cidade de São Paulo, ou seja, os amigos ingressaram no Brasil como refugiados espanhóis de guerra.¹¹ Desse modo, Pedro e Joaquim tiveram trajetórias e experiências similares, e recorreu-se também às memórias de Joaquim em alguns momentos da pesquisa, como fonte complementar. A língua adotada inicialmente era o francês entre ambas as famílias. Essa longa e sólida amizade de décadas conserva-se ainda hoje, apesar do falecimento de Pedro, Maria e Joaquim. Dina Macip permanece lúcida e com saúde, aos 97 anos de idade, sendo a minha principal entrevistada.

    No contexto das entrevistas com a depoente, foi questionado se Pedro e Joaquim teriam em algum momento fantasiado nos seus relatos, o que ela refutou veementemente: De jeito nenhum! Não havia necessidade disto, pois o que eles vivenciaram foi extraordinário!

    APRESENTAÇÃO

    O objetivo deste trabalho é analisar a trajetória e histórias de vida de Pedro Brillas Togores¹² (1919-2006), englobando questões da memória, experiências, deslocamentos e subjetividades. Sob a perspectiva da sua autobiografia, a partir do seu protagonismo, focaliza aspectos da Guerra Civil Espanhola, La Retirada, campos de concentração na França (Volume 1); e a Segunda Guerra Mundial, o pós-guerra no exílio/refúgio e sua reorganização de vida em São Paulo (Volume 2). Assim, este estudo se propõe a outorgar visibilidade ao patrimônio autobiográfico de Pedro Brillas, cujos relatos permitem recuperar momentos históricos, estratégias de sobrevivência, cotidiano¹³, habitus¹⁴, sociabilidade e redes de acolhimento, contextos político e social, reflexões sobre as sociedades receptoras e expõem impressões pessoais, subjetividades, sensibilidades e emoções.

    Pedro Brillas pode ser considerado uma pessoa comum que deixou as suas escrituras, constituindo um amplo corpus documental, cujos primeiros escritos disponíveis consistem em diários redigidos em 1937 e 1938 em campos de batalha da Guerra Civil e Mis Memorias (24/01/1938), entre muitos outros textos produzidos/reescritos até 2006, ano do seu falecimento, perfazendo, portanto, quase sete décadas de escrituras autorreferenciais. Um acervo privado amplo, inédito, rico e de valor inestimável – com escritos não disponíveis em outros arquivos – que representa um genuíno tesouro documental da produção e de memórias populares silenciadas.

    Essas histórias adquiriram valor para os historiadores por possibilitar trazer luzes, preencher lacunas e silêncios, abrindo novas perspectivas historiográficas, permitindo a recuperação da história e de sentimentos coletivos, e também um recorte político e identitário, calcados na experiência pessoal. Além disso, permitem trazer à tona a voz oculta de pessoas anônimas, bem como transitar ou até mesmo ultrapassar fronteiras entre o privado e o público¹⁵ e entre o individual e o coletivo.

    O fio condutor e, simultaneamente, objeto de estudo é a autobiografia¹⁶ multifacetada, construída e reconstruída intermitentemente pelo memorialista ao longo da vida. Essa escrita de si abrange um amplo caleidoscópio textual, composto de cartas, diários, memórias, cadernos, cadernetas, apontamentos¹⁷, cartões, denominados escritos ordinários¹⁸. A Guerra Civil Espanhola foi o gatilho da escrita de Pedro Brillas, que se tornou uma prática durante toda a sua vida adulta, talvez como um instrumento para compreender, assimilar e incorporar experiências (durante e no pós-guerra) na busca da constituição de si.¹⁹

    As memórias não eram totalmente finalizadas, sendo retomadas ou reiniciadas diversas vezes. O autor desejava que ganhassem significância póstuma, ou um caráter de eternidade, conforme citado adiante. Ele tinha por hábito também arquivar a própria vida²⁰ e foi, portanto, um zeloso guarda-memória²¹ durante décadas, formando o seu amplo arquivo pessoal²², aqui analisado.

    Na trajetória desta pesquisa também foram realizadas algumas entrevistas, utilizando-se a metodologia da História Oral²³, primeiramente com Dina Macip, que é a única em vida que acompanhou a trajetória de Pedro desde a convivência em Paris, capaz de prestar o seu testemunho em relação às experiências. Além dessa depoente, foram colhidos depoimentos com familiares de Pedro Brillas na Espanha: os sobrinhos catalães Jordi Brillas Espinàs (15/05/2014); Josep Brillas Bovè (16/05/2014); Anna Brillas – sobrinha-neta (03-04/05/2014); além da brasileira Edith Brillas – filha do autor (04/04/2014).²⁴ Foram também realizados diálogos acadêmicos com a Profª. Drª. Mary Nash, catedrática de História Contemporânea da Universitat de Barcelona (08/05/2014), além dos responsáveis/historiadores de duas instituições catalãs – Museu Memorial de l’Exili (MUME/10/05/2014) e Memorial Democràtic²⁵ (21/05/2014) – que tratam de assuntos relacionados ao êxodo/exílio republicano espanhol e da memória republicana.

    Há evidências de que os relatos de Pedro (escritos em primeira pessoa) foram elaborados no estilo de diário, como se os acontecimentos e experiências relatados tivessem ocorrido recentemente; isso talvez possa ser explicado pelo fato de a escrita ter se tornado hábito a partir dos seus diários, a maioria destruída nas guerras. Ademais, o memorialista procurou estabelecer uma coerência²⁶ narrativa e cronológica em seus relatos, como é possível observar, sobretudo, em um apontamento avulso intitulado Capítulos, que serviu como índice para a numeração e organização sequenciais dos textos datilografados. Cabe notar que apenas esses textos foram numerados pelo autor, cuja ordem e lógica são observadas na constituição dos capítulos desta investigação. Os demais materiais documentais foram numerados sequencialmente e identificados para permitir a sua fácil localização e a sua configuração.

    Acredita-se no extravio de cadernos da década de 1970, provavelmente não finalizados. De tempos em tempos Pedro retomava a escrita das suas memórias, sendo possível contabilizar 14 cadernos sequenciais manuscritos entre a década de 1990 e início de 2000, os quais deram suporte à reconstrução das suas memórias em textos datilografados entre os anos de 1999 e 2006. Cabe ressaltar que o autor entregou uma cópia desses textos a cada um dos filhos, à medida que foram sendo produzidos, cujo acervo seria o seu legado, conforme anotado por ele.

    Com exceção dos diários da Guerra Civil Espanhola e das incompletas memórias elaboradas precocemente, aos 18 anos, datadas de 1938, as demais rememorações, produzidas a partir de 1965, podem conter novas apropriações, representações e interpretações, afinal, deve-se considerar que a memória pode falhar e é seletiva. Embora o autor procurasse retratar pormenorizadamente experiências de décadas anteriores à escrita, detalhando percursos, trajetórias, localidades, datas, horas e informações específicas – pautadas pelas suas lembranças de velho²⁷, ou mesmo pelos escritos anteriores –, supõe-se que esse sujeito histórico, na reconstrução das suas vivências, acrescentava e ampliava detalhes mediante novas referências. É possível notar, entretanto, grande parte de permanências.

    O amplo período da memória de si é justificado pela preocupação do autor não apenas em relatar os eventos históricos e experiências vividas e percebidas²⁸ a um suposto leitor²⁹, mas sobretudo com a sua intermitente manutenção e a atualização da memória³⁰, como se quisesse esmiuçar detalhes antes não contemplados. Ou mesmo pode-se questionar se simplesmente Pedro não estaria tentando refletir ou compreender o passado sob o seu olhar atualizado.

    Embora os fatos e vivências relatados sejam os mesmos, o passado não permanece cristalizado, pois a reinterpretação do que foi vivenciado é dinâmica, atualizada e reconstruída de acordo com as experiências posteriores, possibilitando novas reconstruções da memória. Algumas vezes Pedro deixou espaços em branco – preenchidos posteriormente, como é possível notar pela troca do material de escrita – e ainda pontinhos, uns completados e outros deixados em aberto, ou mesmo inseriu pontos de interrogação em parênteses, explicitando a sua dúvida. Geralmente essas complementações posteriores referem-se a nomes próprios e de localidades, ou seja, o autor procurava manter a coerência. Todavia, não há nenhum demérito dos seus registros por ele ter procurado aprimorar a posteriori a precisão dos dados apresentados.

    Faz-se necessário destacar que foram preservadas literalmente as citações dos registros de Pedro Brillas, com erros ortográficos e de pontuação, troca de letras e mesclas entre o castelhano (língua materna) e o português. A maior parte da autobiografia de Pedro foi escrita em português ou portunhol, como ele mesmo afirma, mas também constam alguns escritos em castelhano, além de alguns apontamentos em catalão. Apesar desses equívocos de linguagem, o autor possuía um amplo repertório linguístico e eloquência narrativa, evidenciando o gosto pela leitura.

    Cabe notar que, assim como a escrita de si de Pedro Brillas, esta investigação inicia-se focalizando as questões da Guerra Civil Espanhola, apesar de não se tratar de um trabalho sobre esse conflito³¹; contudo, enfrenta o desafio de buscar a historiografia do tema, muito polemizada neste momento das celebrações dos seus 80 anos. Essa produção historiográfica passou por um revisionismo recente – transpondo o silêncio de quase 40 anos imposto pelo totalitarismo franquista –, que atingiu ainda a temática dos refugiados espanhóis na França em 1939, também silenciada pela historiografia francesa. Apenas contemporaneamente (a

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