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Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)
Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)
Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)
E-book523 páginas5 horas

Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)

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Sobre este e-book

Esta obra aborda questões relevantes da nossa contemporaneidade: deslocamentos, guerra, exílio, resistências, experiências cotidianas e incomuns, memórias. Partindo das memórias do ex-combatente da Guerra Civil Espanhola Pedro Brillas (1919-2006), recupera através de envolvente narrativa experiências – como testemunha – da Segunda Guerra Mundial (na França e Alemanha); o trabalho forçado na França nas Compagnies/Groupements de Travailleurs Étrangers e recorrentes deslocamentos durante o conflito bélico; as estratégias de resistência e sobrevivência durante a guerra e no pós-guerra; a paixão avassaladora – proibida pelo regime nazista – por uma alemã; a trajetória e o cotidiano dos republicanos espanhóis exilados/refugiados na França no fim do conflito; o exílio duradouro ou permanente devido ao regime totalitarista implantado pelo General Franco na Espanha. Além disso, retrata e analisa a emigração, com esperanças renovadas, da família multicultural para o Brasil, subsidiada pela ONU; a vida na cidade de São Paulo na década de 1950; a resistência de espanhóis ao franquismo além-mar; e ainda a escrita epistolar de Pedro no exílio. Nesta obra fruto de intensa pesquisa, a autora analisa as temáticas de forma criteriosa, possibilitando um diálogo vivaz com a historiografia contemporânea, permitindo ao leitor rastrear cenários e o contexto histórico vivenciado e registrado pelo autobiógrafo de forma contundente e vívida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de nov. de 2019
ISBN9788593955563
Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)

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    Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol - Geny Brillas Tomanik

    Geny Brillas Tomanik

    Memórias, deslocamentos, lutas e experiências de um exilado espanhol: Pedro Brillas (1919-2006)

    -

    VOLUME 2

    São Paulo

    e-Manuscrito

    2019

    PREFÁCIO

    A guerra é um sofrimento íntimo demais.

    E tão infinito quanto a vida humana...

    (Aleksiévitch, 2016)

    A temática da Segunda Guerra Mundial se caracteriza pela vitalidade editorial, materializada por relançamentos de clássicos, publicações de obras de revisão e novas interpretações que renovam a historiografia desse período. A abordagem sobre o deslocamento de milhares de pessoas durante esse conflito constitui um dos enfoques contemplados nessa renovação. Enunciada em 1939, por Franklin D. Roosevelt, a escala dessa problemática desencadearia a formulação de uma política para os refugiados, bem como a criação de organismos internacionais destinados a apoiar e organizar o retorno ao país de origem ou o reassentamento em um novo país após a finalização da guerra.¹ Com perspectivas historiográficas apoiadas nas trajetórias de vida dos refugiados, em documentos produzidos por pessoas comuns, relatos de funcionários e diários de autoridades políticas, destacam-se as pesquisas de Cohen  (2012) e Shephard (2010).

    A participação das mulheres nas forças armadas soviéticas a partir de sua própria perspectiva e relatos também se inscreve nesse contexto editorial e estabelece uma narrativa feminina, constituindo uma alternativa ao cânone masculino, como destaca Aleksiévitch (2016):

    A guerra feminina tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que vivem conosco na terra. Sofrem sem palavras, o que é ainda mais terrível.

    O livro de Geny Brillas Tomanik insere-se nessa renovação da historiografia, ao recorrer aos documentos autobiográficos legados por Pedro Brillas, produzidos em diferentes contextos, desde sua trajetória na Europa em plena Segunda Guerra Mundial até o reassentamento na sociedade de acolhimento e a adaptação à cidade de São Paulo. Testemunha e autor, Brillas legou-nos diversos registros memorialísticos e documentos, sistematicamente analisados por Geny, o que requereu a árdua tarefa de lidar com os traumas narrados, a tradução e atualização dos relatos redigidos em castelhano ou portunhol, a reconstituição das trajetórias e a organização da narrativa.

    Tais memórias descortinam sofrimentos, sentimentos, emoções e vivências reelaboradas pelo tempo e conhecimento indireto que as influenciam cotidianamente. Ao rememorar, o memorialista revisita o passado a partir do presente e, embora conte o acontecido pregresso, por vezes é influenciado por sentimentos, informações recebidas posteriormente ao fato² ou pelo resultado já conhecido, o que pode contaminar a veracidade desse relato, distanciando-o do verdadeiramente ocorrido, mas aproximando-nos dos sentimentos, da intensidade do acontecimento em toda a sua extensão.

    Os relatos de Brillas são permeados de sentimentos em relação aos fatos vivenciados, por vezes cuidadosamente escondidos nas detalhadas descrições dos acontecimentos. O mesmo não se verifica, no entanto, com relação às experiências compartilhadas com amigos que constituiu tanto na Europa em guerra quanto no Brasil e à sua família. 

    A compreensão dos sentidos dessas narrativas escritas e reescritas em diferentes momentos, bem como das fotografias e dos documentos pessoais reunidos durante a vida demandou confrontos de datas e fatos mencionados, pesquisa em arquivos europeus e obras de referência, aporte de diferentes metodologias e acurada crítica na análise. Do extenso corpus documental salienta-se também a autobiografia do valenciano Joaquim Macip (1917-2011), em virtude da trajetória comum e amizade iniciada na Alemanha e que se perpetuou ao longo da vida.

    Ciosa desse acervo, Geny despertou para sua potencialidade a partir da interlocução estabelecida com Pollak (1992) muito antes de iniciar sua pesquisa. Feliz coincidência que proporciona à historiografia um estudo a partir da perspectiva de uma pessoa comum. Exilado por motivos políticos desde fevereiro de 1939, Brillas descreve as estratégias de sobrevivência durante e após a Segunda Guerra Mundial na Europa, explicitando os enfrentamentos travados para sobreviver. Discorre sobre sua condição de refugiado e imigrante, sua integração à sociedade brasileira, revela as redes de sociabilidade, as práticas associativas dos hispânicos e a resistência antifranquista aqui estabelecidas.

    Boa leitura!

    Sênia Bastos

    Profa. Dra. da Universidade Anhembi-Morumbi - SP

    São Paulo, setembro de 2019

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço primeiramente ao meu amado pai, memorialista perspicaz, detalhista e laborioso na missão a que se propôs, já na juventude, na década de 1930, narrando as suas experiências e expondo as suas sensibilidades irrestritamente, deixando-nos um precioso legado, o qual tenho o privilégio de socializar e analisar nesta obra, fundamentada na tese de doutorado em História defendida na PUC/SP. Pedro Brillas (in memoriam) foi um jovem que lutou pelo ideário democrático e libertário e, como milhares de hispânicos, tornou-se exilado em fevereiro de 1939; a partir de então, foi levado por contingências inesperadas e adversas, com risco de morte, mas nem por isso ficou traumatizado ou neurótico – como já me perguntaram –, mantendo a lucidez até o fim da vida. Com ele tenho dialogado intensamente, por meio dos seus escritos, nos últimos anos sobre a sua história de vida e de resistência. Agradeço-lhe também pela sua dedicação ao amor da sua vida, sua amada Mia, minha mãe, que abdicou de sua família e raízes para acompanhar o seu amado em veredas estrangeiras, mesmo com risco pessoal, já que, involuntariamente, perdeu a sua nacionalidade alemã ao se casar com Pedro e tornou-se refugiada espanhola, sem nunca ter pisado antes em território hispânico.

    Agradeço em especial à querida, sábia e talentosa orientadora e, agora amiga, Prof.ª Dr.ª Maria Izilda Santos de Matos, que me acolheu, guiou-me magistralmente por caminhos e perspectivas novas e me incentivou neste desafio pessoal e acadêmico.

    À querida Prof.ª Dr.ª Sênia Bastos, por me conduzir inicialmente à concepção deste trabalho, pelas relevantes bibliografias e seus perenes apoio e amizade, inclusive as preciosas observações nas bancas de defesa.

    Ao apoio primordial da PUC-SP, em conjunto com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e, finalmente, com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que me proporcionaram bolsa de estudos durante o doutorado, de grande valia para que eu pudesse me dedicar integralmente à pesquisa.

    Agradeço ainda, além dos diversos entrevistados, especialmente à Tata (Dina Macip) – minha tia francesa de coração – por seu tempo, paciência e lucidez, no alto dos seus mais de 90 anos, pelas inúmeras entrevistas e diálogos informais. Aos familiares e amigos que compreenderam e aceitaram a minha ausência em muitos eventos familiares e sociais, a labuta madrugada adentro, em fins de semana e feriados. E a todos aqueles que, direta ou indiretamente, me apoiaram e me ouviram (inúmeras vezes!), especialmente ao meu querido esposo, Celso, pelo seu companheirismo e apoio incondicionais ao longo desses anos e desta jornada.

    Sou-lhes muito grata!

    Geny Brillas Tomanik

    Dedico esta obra ao meu saudoso pai, Pedro Brillas Togores (in memoriam), 

    que lutou com armas por um ideal e com a sua caneta para que essa luta não fosse esquecida.

    SUMÁRIO

    PRÓLOGO

    APRESENTAÇÃO

    CAPÍTULO I – SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E PÓS-GUERRA: DESLOCAMENTOS, LUTAS E ESTRATÉGIAS

    1.1 TRABALHO E RESISTÊNCIA NAS COMPAGNIES/GROUPEMENTS DE TRAVAILLEURS ÉTRANGERS

    1.2 DESLOCAMENTOS E FUGA NA EUROPA EM GUERRA

    1.3 VIVENDO E SOBREVIVENDO: ENCONTROS E DESENCONTROS NA ALEMANHA NAZISTA

    1.4 A FRANÇA COMO POSSIBILIDADE NO PÓS-GUERRA: CAMP DE NOÉ E COTIDIANO EM PARIS

    CAPÍTULO II – CRUZANDO O ATLÂNTICO: BRASIL COMO TERRA DE ESPERANÇAS

    2.1 AÇÕES E POLÍTICAS DO PÓS-GUERRA: ACOLHIMENTO E REFÚGIO

    2.2 ESPANHÓIS NA CIDADE DE SÃO PAULO: PRESENÇAS E OCULTAMENTOS

    2.3 MEMÓRIAS: VIAGEM, COTIDIANO E TRABALHO

    2.4 NA BUSCA PELA MANUTENÇÃO DE ELOS: EPISTOLÁRIO

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    APÊNDICE

    ANEXOS

    LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

    AJPN - Anoymes, Justes et Persécutés durant la periode nazie dans les communes de France

    CCS - Centro de Cultura Social de São Paulo

    CIC - Conselho de Imigração e Colonização

    CIME - Comitê Intergovernamental para as Migrações Europeias

    CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

    CNT - Confederación Nacional del Trabajo

    CTE - Compagnies de Travailleurs Étrangers

    DEOPS-SP - Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo

    FIJL - Federación Ibérica de Juventudes Libertarias

    GESTAPO - Geheime Staatspolizei (polícia secreta alemã)

    GTE - Groupements des travailleurs étrangers/espagnols

    INIC - Instituto Nacional de Imigração e Colonização

    IOM - International Organization for Migration

    IRO - International Refugee Organization

    JJ.LL - Juventudes Libertarias

    MLE - Movimiento Libertario Español

    MUME - Museu Memorial de l’Exili

    OIM - Organização Internacional para as Migrações

    OIR - Organização Internacional para os Refugiados (o mesmo que IRO)

    OIT - Organização Internacional de Trabalho

    OKW - Oberkommando der Wehrmacht (Alto Comando das Forças Armadas)

    ONU - Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas

    RIC - Revista de Imigração e Colonização

    @taciodesign³

    La llibertat viu lluny d’aquí, i això és l’exili.

    (La libertad vive lejos de aqui, y esto es el exilio)

    PRÓLOGO

    Assim como milhões de brasileiros, sou descendente (primeira geração) de imigrantes europeus, que procuraram no Brasil um refúgio seguro para a família, ante a iminência de uma nova guerra na Europa, no início da década de 1950. Meus pais enfrentaram muitos perigos, preconceitos e tensões, inclusive culturais, para estabelecerem a sua união: inicialmente, um namoro entre um catalão anarquista, ex-combatente da Guerra Civil Espanhola, com uma jovem alemã, em plena Segunda Guerra Mundial, em território alemão – união essa que fora proibida pelo regime nazista. Contra tudo e todos, rumaram juntos para a França, onde foram delatados e presos em um campo de concentração.

    Impedido de retornar à sua pátria por motivos políticos, Pedro Brillas viveu no exílio a partir de fevereiro de 1939. No pós-guerra, a partir de 1945, com o seu novo núcleo familiar multicultural (ele espanhol, a esposa de origem alemã e o filho francês), viveu primeiramente em Paris, França, e após seis anos, em 1951, reemigraram juntos para São Paulo, Brasil. Essa é a história de vida e de luta que se busca entender e analisar, relatada pormenorizadamente pelo autobiógrafo, meu pai. Sou guardiã de um rico e exemplar legado, perfazendo sete décadas de escrita de si, iniciada durante a Guerra Civil Espanhola.

    Figura 1 - Pedro Brillas, 1937.

    Desde criança ouvia-o contar entusiasmadamente sobre as suas experiências e aventuras – dramáticas, pitorescas ou marcantes – das guerras (Guerra Civil Espanhola e Segunda Guerra Mundial), nas quais sobreviveu a muitos perigos. Talvez haja passagens e aspectos silenciados e supervalorizados nos seus relatos, sobretudo nas narrativas orais, pois Pedro Brillas pouco falava a respeito de questões familiares e cotidianas. Por outro lado, sempre recordava acerca da alimentação, detalhadamente, passadas tantas décadas, talvez porque tenha sido frequente a carência alimentar em sua infância e juventude, sobretudo durante as guerras.

    Contudo, preferia narrar as recorrentes estratégias de sobrevivência, até com um leve tom de picardia. Ao rememorar oralmente, não se vitimizava, mas sempre destacava os momentos pitorescos e emocionantes, fazendo certo suspense ao longo do seu discurso de horas até o desfecho, como se fosse um trovador. Quiçá devido a mecanismos de defesa⁶ e para prender a atenção dos ouvintes, era mais fácil relembrar e destacar as experiências adversas a que sobreviveu com desfechos inusitados do que aquelas em que o seu protagonismo tenha sido irrelevante.

    Deve-se destacar que Pedro manteve a construção da sua autobiografia ao longo de décadas, não apenas objetivando a constituição de si, mas também a dos seus descendentes, com a finalidade de que estes tomassem conhecimento da sua trajetória, experiências e sensibilidades. Ao contrário dele próprio, que desconhecia quase totalmente a história de vida e sentimentos do seu pai, já que faleceu quando Pedro tinha apenas três meses de vida, fato que o inquietava, pois representava um vazio da sua origem paterna.

    Cabe ressaltar que, tanto na leitura dos seus escritos como ao ouvi-lo contar as suas histórias, é/era possível imaginar o cenário, tamanha a riqueza de detalhes – reconhecida por um amigo, na correspondência epistolar –, possibilitando ainda projetar um filme. Esses relatos orais vivazes e a intermitente escrita das suas memórias ao longo dos anos fazem parte não apenas das minhas lembranças pessoais, mas da memória familiar, despertando a atenção e a curiosidade dos ouvintes.

    Já moça, junto com minha irmã, incentivei-o a finalizar os seus escritos. No início da década de 2000 digitei parte dessas memórias manuscritas⁷ e revisadas por ele, até o ano de 2005. Todavia, com o objetivo de publicar um livro sobre as suas experiências, pelo menos destinado aos familiares, e diante da intenção de prestar depoimento pessoal para uma televisão catalã, em Barcelona, em 2006, nas celebrações do 70º. aniversário do início da Guerra Civil Espanhola (1936), Pedro decidiu, ele próprio, retomar e finalizar a transcrição dos seus manuscritos na sua antiga máquina alemã Olympia⁸ da década de 1950, nos últimos anos de vida. Em 2005, o autor enviou ao seu sobrinho espanhol Jordi Brillas Espinàs a primeira parte⁹, relativa à Guerra Civil Espanhola, para traduzir para o catalão, cuja ortografia e gramática desconhecia.

    Infelizmente, depois de fraturar o pé seriamente, em 2006, com pouca perspectiva de recuperação, o meu pai adoeceu, portanto não pôde viajar para dar o seu testemunho e apresentar as suas memórias, e em seis meses faleceu. Entretanto, antes da sua morte, finalizou a reconstrução das suas memórias, cujo legado tenho o orgulho e privilégio de compartilhar (parcialmente) com esta obra.

    Cabe esclarecer que, de certo modo, não fui eu quem escolheu o objeto de investigação, foram as circunstâncias que me escolheram como sua pesquisadora. Apesar da relevância da fonte, reconhecida por pessoas próximas, não imaginava que pudesse ser alvo de um estudo acadêmico, por se tratar da autobiografia de uma pessoa comum. No entanto, ao ingressar no mestrado e realizar algumas leituras, tomei conhecimento de que havia pesquisas sobre e/imigração não apenas sob o viés do fluxo demográfico e das estatísticas, mas também abordando aspectos sociais, as interações e tensões culturais entre a sociedade receptora e os grupos de deslocados, ou seja, envolvendo experiências e questões subjetivas individuais, que refletem contextos sociais, políticos e culturais vivenciados pelos e/imigrantes.

    Além disso, durante o mestrado, ao apresentar um seminário fundamentado em um texto de Pollack (1992) sobre memória, e exemplificar com trechos dos textos autobiográficos de Pedro Brillas, a mestra afirmou que o material documental do memorialista era um tesouro, digno de um doutorado. Entretanto, visto que a pesquisa de mestrado já se encontrava avançada, com outra temática, não deveria ser interrompida. Foi uma grande surpresa a possibilidade de analisar academicamente as suas memórias, um privilégio pessoal, ainda mais em um doutorado¹⁰. Considerando-se que o autor dedicou as suas memórias aos familiares, amigos e a todos os interessados, com certeza apreciaria a socialização acadêmica dos seus relatos. Esses escritos permaneceram guardados em malas e gavetas por várias décadas, restritos ao ambiente doméstico, fato comum das escrituras de populares.

    De certo modo, trata-se de um trabalho imbuído da memória afetiva e familiar que busca recuperar a trajetória, experiências, lutas e subjetividades de um sujeito histórico, testemunha e protagonista de eventos marcantes vivenciados por milhares de conterrâneos republicanos espanhóis, se inscrevendo na História Cultural contemporânea. Embora seja necessário certo distanciamento entre pesquisadora e objeto de investigação, paradoxalmente, a proximidade afetiva com o autor facilita a análise de determinados contextos autobiográficos, inclusive subliminares, desconhecidos ou imperceptíveis por terceiros¹¹, contribuindo para isso a memória pessoal dos seus recorrentes relatos orais durante a mútua convivência.

    Minha memória pessoal remete à escrita de si de Pedro Brillas em cadernos escolares, em sua escrivaninha, nos intervalos do atendimento de clientes do seu comércio. Seus escritos são pautados na re/construção das experiências vivenciadas em sua trajetória, com recorrentes deslocamentos a partir da Guerra Civil Espanhola, no exílio europeu, levado pelas circunstâncias – com reduzido arbítrio próprio –, até o ingresso no Brasil, quando, segundo ele, pôde finalmente assumir o leme da sua vida. O diagrama a seguir destaca a compilação desses sucessivos deslocamentos de Pedro, possibilitando uma visualização geral da sua trajetória, que será apresentada ao longo desta obra (Volumes 1 e 2) em detalhes.

    Figura 2 - Diagrama da trajetória de Pedro Brillas (1919-2006).¹²

    Em 2005 Pedro foi convidado a contar a sua trajetória e experiências de vida para uma plateia de estudantes e professores de História do ensino fundamental (oitavas séries) de um colégio do interior do estado de São Paulo, ocasião em que narrou com desenvoltura algumas vivências marcantes, durante aproximadamente 7 horas (somando-se os dois turnos escolares). É o único relato oral do memorialista registrado em vídeo, embora captado por apenas alguns minutos. O público o aplaudiu em pé, alguns perguntaram quando seria publicado o seu livro.

    Figura 3 - Pedro Brillas, 2005.¹³

    Cabe notar que, em alguns momentos, as memórias de Pedro Brillas e de Joaquim Macip se entrecruzam, sendo que a autobiografia de Joaquim é utilizada apenas em contextos específicos. A deflagração do conflito hispânico também é o assunto inicial das resumidas (39 páginas) memórias¹⁴ do valenciano Joaquim Macip (1917-2011), escritas aos 90 anos, no fim da sua vida, talvez influenciado pelo seu amigo fraterno Pedro Brillas, já falecido. A sua narrativa sobre os dramas das duas guerras também faz parte da memória familiar da sua esposa ítalo-francesa, Dina Macip, dos seus filhos franceses e netos.

    Seus caminhos se cruzaram em Hagen, Alemanha, em meados de 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, onde ambos trabalhavam. Os dois conterrâneos vivenciaram a Guerra Civil Espanhola (embora Joaquim não tenha entrado em combate no conflito), cruzaram a fronteira francesa, passaram por campos de concentração na França, sofreram e sobreviveram, por vezes juntos, a bombardeios e rajadas de metralhadoras na Alemanha, reemigraram para a França. Reencontraram-se em Paris no pós-guerra, em 1946, ambos casados com estrangeiras; viveram na cidade – onde se adaptaram bem ao estilo de vida cosmopolita – até o início da década de 1950, sempre com a esperança de retornar à Espanha, da mesma forma que o seu círculo de amigos refugiados espanhóis. Todavia, o governo totalitarista de Franco não dava sinal de arrefecimento.

    Diante do ambiente da Guerra Fria e do receio de um novo conflito bélico na Europa, as famílias Brillas e Macip, com filhos menores nascidos na França, decidiram em conjunto emigrar para um país mais seguro, subsidiados pela International Refugee Organization (IRO)¹⁵, recaindo a escolha sobre a cidade de São Paulo, ou seja, os amigos ingressaram no Brasil como refugiados espanhóis de guerra.¹⁶ Desse modo, Pedro e Joaquim tiveram trajetórias e experiências similares, e recorreu-se também às memórias de Joaquim em alguns momentos da pesquisa, como fonte complementar. A língua adotada inicialmente era o francês entre ambas as famílias. Essa longa e sólida amizade de décadas conserva-se ainda hoje, apesar do falecimento de Pedro, Maria e Joaquim. Dina Macip permanece lúcida e com saúde, aos 99 anos de idade, sendo a minha principal entrevistada.

    No contexto das entrevistas com a depoente, foi questionado se Pedro e Joaquim teriam em algum momento fantasiado nos seus relatos, o que ela refutou veementemente: De jeito nenhum! Não havia necessidade disto, pois o que eles vivenciaram foi extraordinário!

    APRESENTAÇÃO

    O objetivo desta obra é analisar a trajetória e histórias de vida de Pedro Brillas Togores¹⁷ (1919-2006), englobando questões da memória, experiências, resistências, deslocamentos e subjetividades. Sob a perspectiva da sua autobiografia, a partir do seu protagonismo, focaliza aspectos da Guerra Civil Espanhola, La Retirada, campos de concentração na França (Volume 1); e a Segunda Guerra Mundial, o pós-guerra no exílio/refúgio e sua reorganização de vida em São Paulo (Volume 2). Assim, se propõe a outorgar visibilidade ao patrimônio autobiográfico de Pedro Brillas, cujos relatos permitem recuperar momentos históricos, estratégias de sobrevivência, cotidiano¹⁸, habitus¹⁹, sociabilidade e redes de acolhimento, contextos político e social, reflexões sobre as sociedades receptoras e expõem impressões pessoais, subjetividades, sensibilidades e emoções.

    Pedro Brillas pode ser considerado uma pessoa comum que deixou as suas escrituras, constituindo um amplo corpus documental, cujos primeiros escritos disponíveis consistem em diários redigidos em 1937 e 1938 em campos de batalha da Guerra Civil e Mis Memorias (24/01/1938), entre muitos outros textos produzidos/reescritos até 2006, ano do seu falecimento, perfazendo, portanto, quase sete décadas de escrituras autorreferenciais. Um acervo privado amplo, inédito, rico e de valor inestimável – com escritos não disponíveis em outros arquivos – que representa um genuíno tesouro documental da produção e de memórias populares silenciadas.

    Essas histórias adquiriram valor para os historiadores por possibilitar trazer luzes, preencher lacunas e silêncios, abrindo novas perspectivas historiográficas, permitindo a recuperação da história e de sentimentos coletivos, e também um recorte político e identitário, calcados na experiência pessoal. Além disso, permitem trazer à tona a voz oculta de pessoas anônimas, bem como transitar ou até mesmo ultrapassar fronteiras entre o privado e o público²⁰ e entre o individual e o coletivo.

    O fio condutor e, simultaneamente, objeto de estudo é a autobiografia²¹ multifacetada, construída e reconstruída intermitentemente pelo memorialista ao longo da vida. Essa escrita de si abrange um amplo caleidoscópio textual, composto de cartas, diários, memórias, cadernos, cadernetas, apontamentos²², cartões, denominados escritos ordinários²³. A Guerra Civil Espanhola foi o gatilho para a escrita de Pedro Brillas, que se tornou uma prática durante toda a sua vida adulta, talvez como um instrumento para compreender, assimilar e incorporar experiências (durante e no pós-guerra) na busca da constituição de si.²⁴

    As memórias não eram totalmente finalizadas, sendo retomadas ou reiniciadas diversas vezes. O autor desejava que ganhassem significância póstuma, conforme registrou, ou talvez um caráter de eternidade. Ele tinha por hábito também arquivar a própria vida²⁵ e foi, portanto, um zeloso guarda-memória²⁶ durante décadas, formando o seu amplo arquivo pessoal²⁷, aqui analisado.

    Na trajetória desta pesquisa também foram realizadas algumas entrevistas, utilizando-se a metodologia da História Oral²⁸, primeiramente com Dina Macip, que é a única em vida que acompanhou a trajetória de Pedro desde a convivência em Paris, capaz de prestar o seu testemunho em relação às experiências. Além dessa depoente, foram colhidos depoimentos com familiares de Pedro Brillas na Espanha: os sobrinhos catalães Jordi Brillas Espinàs (15/05/2014); Josep Brillas Bovè (16/05/2014); Anna Brillas – sobrinha-neta (03-04/05/2014); além da brasileira Edith Brillas – filha do autor (04/04/2014).²⁹ Foram também realizados diálogos acadêmicos com a Profª. Drª. Mary Nash, catedrática de História Contemporânea da Universitat de Barcelona (08/05/2014), além dos responsáveis/historiadores de duas instituições catalãs – Museu Memorial de l’Exili (MUME/10/05/2014) e Memorial Democràtic³⁰ (21/05/2014) – que tratam de assuntos relacionados ao êxodo/exílio republicano espanhol e da memória republicana.

    Há evidências de que os relatos de Pedro (escritos em primeira pessoa) foram elaborados no estilo de diário, como se os acontecimentos e experiências relatados tivessem ocorrido recentemente; isso talvez possa ser explicado pelo fato de a escrita ter se tornado hábito a partir dos seus diários, a maioria destruída nas guerras. Ademais, o memorialista procurou estabelecer uma coerência³¹ narrativa e cronológica em seus relatos, como é possível observar, sobretudo, em um apontamento avulso intitulado Capítulos, que serviu como índice para a numeração e organização sequenciais dos textos datilografados. Cabe notar que apenas esses textos foram numerados pelo autor, cuja ordem e lógica são observadas na constituição dos capítulos desta investigação. Os demais materiais documentais foram numerados sequencialmente e identificados para permitir a sua fácil localização e a sua configuração.

    Acredita-se no extravio de cadernos da década de 1970, provavelmente não finalizados. De tempos em tempos Pedro retomava a escrita das suas memórias, sendo possível contabilizar 14 cadernos sequenciais manuscritos entre a década de 1990 e início de 2000, os quais deram suporte à reconstrução das suas memórias em textos datilografados entre os anos de 1999 e 2006. Cabe ressaltar que o autor entregou uma cópia desses textos a cada um dos filhos, à medida que foram sendo produzidos, cujo acervo seria o seu legado, conforme anotado por ele.

    Com exceção dos diários da Guerra Civil Espanhola e das incompletas memórias elaboradas precocemente, aos 18 anos, datadas de 1938, as demais rememorações, produzidas a partir de 1965, podem conter novas apropriações, representações e interpretações, afinal, deve-se considerar que a memória pode falhar e é seletiva. Embora o autor procurasse retratar pormenorizadamente experiências de décadas anteriores à escrita, detalhando percursos, trajetórias, localidades, datas, horas e informações específicas – pautadas pelas suas lembranças de velho³², ou mesmo pelos escritos anteriores –, supõe-se que esse sujeito histórico, na reconstrução das suas vivências, acrescentava e ampliava detalhes mediante novas referências. É possível notar, entretanto, grande parte de permanências.

    O amplo período da memória de si é justificado pela preocupação do autor não apenas em relatar os eventos históricos e experiências vividas e percebidas³³ a um suposto leitor³⁴, mas sobretudo com a sua intermitente manutenção e a atualização da memória³⁵, como se quisesse esmiuçar detalhes antes não contemplados. Ou mesmo pode-se questionar se simplesmente Pedro não estaria tentando refletir ou compreender o passado sob o seu olhar atualizado.

    Embora os fatos e vivências relatados sejam os mesmos, o passado não permanece cristalizado, pois a reinterpretação do que foi vivenciado é dinâmica, atualizada e reconstruída de acordo com as experiências posteriores, possibilitando novas reconstruções da memória. Algumas vezes Pedro deixou espaços em branco – preenchidos posteriormente, como é possível notar pela troca do material de escrita – e ainda pontinhos, uns completados e outros deixados em aberto, ou mesmo inseriu pontos de interrogação em parênteses, explicitando a sua dúvida. Geralmente essas complementações posteriores referem-se a nomes próprios e de localidades, ou seja, o autor procurava manter a coerência. Todavia, não há nenhum demérito dos seus registros por ele ter procurado aprimorar a posteriori a precisão dos dados apresentados.

    Faz-se necessário destacar que foram preservadas literalmente as citações dos registros de Pedro Brillas, com erros ortográficos e de pontuação, troca de letras e mesclas entre o castelhano (língua materna) e o português. A maior parte da autobiografia de Pedro foi escrita em português ou portunhol, como ele mesmo afirma, mas também constam escritos em castelhano, além de alguns apontamentos em catalão. Apesar desses equívocos de linguagem, o autor possuía um amplo repertório linguístico e eloquência narrativa, evidenciando o gosto pela leitura.

    Cabe notar que, assim como a escrita de si de Pedro Brillas, esta investigação inicia-se focalizando as questões da Guerra Civil Espanhola, apesar de não se tratar de um trabalho sobre esse conflito³⁶; contudo, enfrenta o desafio de buscar a historiografia do tema, muito polemizada neste momento das celebrações dos seus 80 anos. Essa produção historiográfica passou por um revisionismo recente – transpondo o silêncio de quase 40 anos imposto pelo totalitarismo franquista –, que atingiu ainda a temática dos refugiados espanhóis na França em 1939, também silenciada pela historiografia francesa. Apenas contemporaneamente (a partir dos anos de 2000) surgiram vários museus/memoriais dedicados à recuperação da memória, das adversidades e das péssimas condições a que os republicanos hispânicos foram submetidos nos campos de concentração franceses, cujas experiências coadunam com as do memorialista. Essas instituições possuem o papel político de dar voz aos espanhóis vencidos do conflito civil, entre as memórias de outras etnias³⁷ estrangeiras exiladas e detidas na França naquele período, denunciando experiências ocultadas. Dessa forma, em alguns momentos, essas organizações de fomento ao conhecimento histórico e da memória coletiva³⁸ são utilizadas como referência, com a finalidade de adicionar reflexões e informações aos episódios apresentados.³⁹

    Os objetivos específicos propostos nesta pesquisa são: identificar a vivência exílica e o acolhimento dos republicanos espanhóis na França (Volumes 1 e 2) e na Alemanha; compreender a condição de exilado e de imigrante e suas subjetividades; e refletir sobre o acolhimento inicial como imigrante, na década de 1950, na sociedade brasileira, especificamente na cidade de São Paulo (Volume 2). Por outro lado, também se busca um adensamento da discussão historiográfica e metodológica ancorada nos estudos sobre os deslocamentos imigratórios hispânicos no pós-Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria, na década de 1950. Portanto, busca-se problematizar a e/imigração na Europa e em São Paulo, especialmente as questões envolvendo refugiados e exilados políticos espanhóis, entre eles os subvencionados pela IRO, sua vida cotidiana no Brasil, a constituição de redes, além de questionar os estudos sobre memória, história de si, bem como questões de identidade e diferenciações no país de acolhimento, a busca por novas oportunidades e as lutas pela integração na sociedade receptora. Frente ao desafio apresentado, o trabalho foi organizado em dois Volumes independentes, e estes em dois capítulos, a saber:

    Volume 1:

    Capítulo 1 – A Guerra Civil Espanhola: histórias, memórias e experiências

    Capítulo 2 – Republicanos em êxodo: sobrevivência nos campos de internamento

    Volume 2:

    O Capítulo 1 – Segunda Guerra Mundial e Pós-guerra: deslocamentos, lutas e estratégias aborda o contexto da Segunda Guerra Mundial, vivenciada por Pedro Brillas na França e na Alemanha. Serão analisadas e recuperadas as memórias e experiências de Pedro em território francês quando foi incorporado às Compagnies de Travailleurs Étrangers (CTE), sob o comando e vigilância do exército francês, e posteriormente do exército alemão, na França ocupada pelos nazistas (1940-1944). Expõem-se também as suas experiências durante a guerra na Alemanha, para onde se dirigiu, levado pelas circunstâncias. Abordam-se ainda as vivências

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