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Eu preferia ter perdido um olho
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Eu preferia ter perdido um olho
E-book180 páginas2 horas

Eu preferia ter perdido um olho

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Sobre este e-book

"Eu preferia ter perdido um olho", o mais novo lançamento da editora Alameda, nasceu da reunião dos textos publicados por Paloma Franca Amorim no jornal paraense OLiberal.

Logo na apresentação da obra, feita por Lúcio Flávio Pinto, a autora é comparada com Clarice Lispector. No prefácio, Edir Gaya aumenta a aposta e compara a jovem autora à Clarice e à Virgínia Woolf. Assim como essas duas grandes mulheres, que provocaram grandes mudanças no paradigma estético da literatura no século XX, Paloma escreve em tom confessional para uma tentativa de compreensão da vida e da realidade humana, em toda sua subjetividade. Ao mesmo tempo, passa longe da já saturada auto-ficção.
Paloma começou cedo sua carreira de escritora, aos 19 anos já publicava contos e crônicas para o grande público. E apesar de nunca ter se imaginado como romancista, como diz no capítulo Um Samba Para Maria, suas narrativas breves acabam formando um texto único e coeso.

A narração em primeira pessoa, como personagem que vive e filosofa é linha que costura todos os textos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jun. de 2018
ISBN9788579395192
Eu preferia ter perdido um olho

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    Pré-visualização do livro

    Eu preferia ter perdido um olho - Paloma Franca Amorim

    O MUNDO EM PALOMA

    Apresentação por Lúcio Flávio Pinto

    Clarice Lispector teve que arrombar a porta do gosto estabelecido no Brasil da segunda metade do século passado para fazer parte da literatura nacional. Seu estilo intimista e sua escrita apurada a obrigaram a uma batalha pela publicação e aceitação do seu primeiro livro. Com o passar dos anos e da obra, porém, e de forma surpreendente, ela se tornou um sucesso.

    Mesmo que sob um andamento mais lento do que o dos fugazes best-sellers, novas edições dos seus livros surgem quase todos os anos.Encontrando sempre um público receptivo, devoto, fiel. Este é um dos paradoxos de Clarice. Mas ela é farta na matéria. Tudo que escreveu é flagrantemente autobiográfico. Mas é pouco provável que alguém consiga em sua obra informações suficientes para um bom relato da sua vida. Ela é escassa na revelação de dados objetivos sobre si. No entanto, grande parte dos leitores a adota por ver no espelho da alma da autora um reflexo de si. A biografia vira matéria de ficção na literatura de Clarice, abstração e profundidade, aldeia e universalidade – como em toda grande literatura.

    A de Paloma Franca Amorim faz parte dessa tradição. Escrevendo sobre ela mesma nas crônicas/contos deste livro, ela fala sobre o mundo e transforma suas observações e personagens em arquétipos e tipos ideais das ciências humanas e sociais, a versão acadêmica e científica do universo da ficção (e menos precisa do que ela, apesar da pretensão de objetividade e verdade).

    Um exemplo ajuda a esclarecer essa visão. Vibrei quando li, recentemente, a crônica de Paloma sobre a sessão da Câmara Federal que recebeu o processo do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Era a mais criativa das abordagens do episódio. Paloma organizou uma antologia das declarações de voto dos parlamentares que retratava com exatidão a algaravia e a barafunda daquela sessão. Para mim, jornalista, faltava a identificação dos autores daquelas frases. Para o leitor dos grandes autores, não faltava nada.

    Não falta nada aos textos deste livro. É obra da melhor literatura. Serenamente espicaçadora, provocadora e reveladora. Abro alas ao leitor para que usufrua desse prazer e privilégio, como eu, sem mais de longas. Em frente, pois. Paloma é a aldeia universal de cada um de nós.

    FOI NUMA PEÇA DE NATAL

    Prefácio por Edir Gaya

    Eu conheci a Paloma, ela tinha uns 12 anos. Foi numa peça de Natal, no Teatro Cláudio Barradas, Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará, em Belém. Nessa época, funcionava em um espaço acanhadinho em frente ao Museu Goeldi. Era a estreia do Ícaro, meu filho. Ele devia ter uns dez, onze anos na época. Fui meio que por obrigação, antevendo clichês. Caí do cavalo. Me surpreendi. Papai Noel morria na primeira cena e o Natal ficava por um fio. Seguia-se uma sequência vertiginosa de esquetes sobre a investigação policial, para descobrir quem matara o bom velhinho, humor ácido, impagável encenação do elenco, no qual figurava por exemplo Ana Marceliano, à época uma menininha e já uma gigante no palco. Mas, principalmente, saltavam à vista a vivacidade e a leveza do texto.

    Ao final, cumprimentei a Olinda Charone, a professora responsável pela oficina, e falei da minha curiosidade pelo texto, admirável. A Olinda me informou que o espetáculo era criação coletiva. O texto era feito por eles próprios e finalizado pela Palo. E me apontou a cabeçudinha à testa daquela trupe que, ao longo de uma década, revigorou minha curiosidade e o meu interesse pelo teatro e reavivou minha fé na palavra escrita e encarnada no palco.

    Lembro que, em casa, ficamos todos fãs. Eles nos faziam rir e chorar a cada espetáculo. E sempre tinha alguém novo, uma nuance no texto, uma performance singular. Eles adolesceram no palco. Lembro bem da despedida, antes que a Palo fosse a São Paulo estudar teatro na USP: Quem Romeu Julieta?, brilhante pela forma como o espetáculo bailava sem sobressaltos entre a comédia e a tragédia, o diálogo vivaz com o texto de Shakespeare, a subversão da história clássica pelo imprevisto final feliz, tudo isso cerzido por uma escrita muito desenvolta, entre o erudito e o burlesco, a farsa encenada a partir da inquebrantável fé na realidade que a ficção exige. E houve que a Paloma se tornou amiga do Ícaro e eu passasse a lê-los pela internet, nos blogs e fotologs da vida, suas diatribes inspiradas, a experimentação da palavra sem compromisso com nada que não fosse a invenção, até que em 2006, de passagem por Belém, Paloma perde a mãe, Darcy, da forma mais estúpida que a morte pode nos privar de alguém fundamental a quem amamos e que é o próprio ar das nossas vidas. E eu presenciei como essa moça, varada pela dor do desamparo, reagiu à altura dessa tragédia pessoal com um espetáculo magistral – Cidade das Nuvens –, um acerto de contas geracional com aquela ausência despropositada. Uma história cujo texto e cena, pelas condições em que foram concebidos, poderia ter facilmente resvalado para o melodrama barato. Foi a cena em que conheci atrizes e atores memoráveis, entre os quais destaco as figuras de Karllana Cordovil, a «Desblogada» à frente do Oito Bar Bistrô, hoje exilada em Portugal para escapar à vindita policial em Belém; e de Murilo Couto, ator que optou por uma carreira nacional de humorista, entre tantos outros daquele período que esses dois artistas tão bem representam.

    Ali estava evidente que tínhamos uma jovem escritora, lidando com os temas extremos da existência – vida e morte – e traduzindo aquela dor com o melhor repertório de palavras e ações no palco, a partir de um elenco de atores adolescentes. Vi Cidade das Nuvens várias vezes. Cada uma delas foi uma revelação a respeito do que aquela geração de meninos e meninas tinha a dizer e a cobrar da minha.

    Por dever de ofício, achei por bem compartilhar aquela experiência com o público leitor. Na época eu havia voltado para o jornal O Liberal e havia dois dias vagos no espaço de crônicas diárias do Magazine, o caderno de variedades. Convidei Paloma Franca Amorim e Raimundo Sodré para escrever. O Sodré completou dez anos ininterruptos de publicações no último dia 26 de março. Paloma teve uma primeira fase, entre 2006 e 2008, da qual não há nenhum texto nesse livro. Uma pena. Entre 2008 e 2011, ela deixou de publicar após minha saída do jornal, no período em que me mudei com a família para o sul do Pará. Quando retornei ao jornal em 2011, retomamos os textos. E é esse o período abarcado por esse livro.

    Não há o que se convenciona chamar evolução no texto da Paloma. Ela começou a publicar para o grande público aos 19 anos. O fundamental já estava lá: a morte como chave mestra para uma tentativa de compreensão da vida, a estranheza, a frase subvertida, a imaginação desmedida, o tom confessional, a maestria na construção do texto, o domínio da palavra; o pensamento radical, o instinto passional de uma escritora desmedidamente lógica. Ao final, enfim, a gente se sente íntimo e com vontade de ter escrito aqueles textos que se iniciam ou são pontuados por afirmações imperativas, que de imediato projetam uma imagem de realidade, do tipo Sim, há cavalos por todos os lados ou Passei a achar que me tornaria santa depois de começar a conversar com o rio, e ainda Tu sabes que alegria demais me põe sifilítica; e ao pai e a um amigo dele, pequeno samurai que ele conheceu na clínica psiquiátrica onde se cuida: Vocês parecem dois beija-flores a dois metros do chão, a dois mil anos luz de mim. Eu preferia ter perdido um olho é extremo e intransigente como o nome sugere e também é delicado, mesmo na sua visceralidade, na melhor tradição da literatura à Virgínia Woolf, Clarice Lispector, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Eneida de Moraes, Maria Lúcia Medeiros.

    EU PREFERIA TER PERDIDO UM OLHO

    No final de toda queda tem um coice. No caso de estupro é a mesma coisa: na hora em que acontece parece que o mundo está terminado, nós sequer suspeitamos que o julgamento moral do dia seguinte (se conseguirmos sobreviver) pode ser pior do que a própria violência do ato.

    Vivi duas experiências de estupro: na primeira eu tinha seis anos. Fui levada para um banheiro em uma festa de amigos de minha mãe pelo filho adolescente do casal. Guardei aquele segredo durante semanas, por vergonha. Quando resolvi contar, minha mãe prontamente foi falar com a mãe do rapaz que, ao ser questionado por ela, negou o ato. Passei por mentirosa, minha mãe várias vezes deu a entender que acreditava ter sido o episódio fruto de minha imaginação. Segundo o rapaz e os adultos envolvidos na trama eu, que amava imaginar e era elogiada por ser tão criativa, havia me tornado vítima de minhas ficções.

    Na mesma época, um vizinho com quem eu costumava brincar jogou uma pedra em meu olho direito que quase me deixou cega. Lembro-me de quão desesperada minha mãe ficou, dizia que ele poderia ter acabado com minha vida. Um dia falei: e aquela vez que me levaram para o banheiro? Foi grave também.

    Ela respondeu: perder um olho é mais grave, esquece essa história.

    Eu preferia ter perdido um olho.

    Com vinte e cinco anos vivi uma dessas tragédias que acontecem de onze em onze minutos nas ruas da cidade, porque as vias públicas não são feitas para mulheres que andam sozinhas.

    Mais uma vez culpabilizada, agora pela delegacia da mulher: a escrivã tanto me constrangeu que eu até pensei em não fazer o boletim de ocorrência, só insisti no assunto porque estava acompanhada de uma amiga e não podia abrir mão do caríssimo tratamento preventivo de gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis, garantido pelo Estado em casos de comprovação da violência sexual.

    Solidão é o nome que dou para a dor psicológica de um estupro.

    A situação atroz que ocorreu com a jovem de dezesseis anos no Rio de Janeiro revela o quanto a cultura do estupro ainda é naturalizada. Os trinta e três agressores não manifestaram nenhum constrangimento ao postar o crime nas redes sociais. Esses rapazes antes de serem monstros são homens. Muitos deles inclusive são trabalhadores, pais, irmãos, primos, pessoas de bem. Digo isso não para diminuir sua responsabilidade sobre a violência, mas para

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