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Ninhos de cobras: uma história mal contada
Ninhos de cobras: uma história mal contada
Ninhos de cobras: uma história mal contada
E-book213 páginas5 horas

Ninhos de cobras: uma história mal contada

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Sobre este e-book

Um dos maiores clássicos do romance em língua portuguesa ganhou nova edição. A obra magistral lançada pelo alagoano Lêdo Ivo em 1973 retorna aos leitores num volume assinado pela editora da Imprensa Oficial Graciliano Ramos. A história da raposa que percorre as ruas de Maceió é o pano de fundo para o enredo que descortina relações humanas enviesadas na capital alagoana das décadas de 1930 e 1940. Ao texto extasiante do escritor - um marco da literatura brasileira, a atual edição acrescentou artigos escritos por Ivan Junqueira, Gilberto Araújo e Gonçalo Ivo. Imperdível
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de mai. de 2016
ISBN9788594650306
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    Ninhos de cobras - Lêdo Ivo

    Governo do Estado de Alagoas

    Governador

    José Renan Vasconcelos Calheiros Filho

    Vice-governador

    José Luciano Barbosa da Silva

    Secretário de Estado do

    Planejamento, Gestão e Patrimônio

    Carlos Christian Reis Teixeira

    Imprensa Oficial Graciliano Ramos

    Diretor presidente

    Marcos José Dantas Kummer

    Diretor Comercial

    José Otilio Damas dos Santos

    Diretor Administrativo Financeiro

    José Queiroz de Oliveira

    Coordenador Editorial

    Célio Gomes

    Editor de Arte

    Thiago Oliveira

    Av. Fernandes Lima, s/nº, km 7, Gruta de Lourdes – Maceió – Alagoas

    Tel.: (82) 3315.8300 | Fax: (82) 3315-8342

    www.imprensaoficialal.com.br

    Ninho de Cobras

    Lêdo Ivo

    Organização e edição de textos

    Gonçalo Ivo

    Janayna Ávila

    Revisão

    Giuliano Porto

    Capa

    Werner Salles

    Miolo

    Roger Ferraz

    A Imprensa Oficial Graciliano Ramos agradece ao poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Carlos Secchin, pela colaboração nesta edição.

    Catalogação na Fonte

    Departamento de Tratamento Técnico da Imprensa Oficial Graciliano Ramos

    Bibliotecária Responsável: Maria Katiuscia Gonçalves Rolins

    Ivo, Lêdo

          Ninho de Cobras / Lêdo Ivo – Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2015.

          270p.

          ISBN 978-85-62030-68-0

    1.Ditadura. 2.Maceió. 3. I Lêdo Ivo.

    CDU 321.6

    A Raposa

    O Professor

    A Escada

    O Roupão

    O Homem do Balcão

    O Cemitério

    A Festa

    O Intruso

    A Janela

    A Noite e os Navios

    A PROPÓSITO DE UMA RAPOSA

    NINHO DE COBRAS

    VIDAS ALAGADAS

    TASMÂNIA

    A Raposa

    Naquela madrugada, uma raposa havia descido até o centro da cidade.

    Viera das matas que, mesmo à noite, guardavam nos ramos secos o calor do verão e, depois de atravessar arbustos aleijados, se afastara dos troncos e galhos que, às vezes, crepitavam surdamente no escuro.

    Perto do tabuleiro onde os norte-americanos tinham, no início da guerra, construído o aeroporto, ela estacou, e seus olhos refratários aos sonhos e à desolação se fixaram, por um instante, nas luzes vermelhas do campo de pouso. Após um momento de espreita, escolheu a estrada mais larga e veio descendo contra a cidade. Esgueirou-se junto à cerca de um sítio, quando um velho caminhão arquejante, que deixava escapar óleo, clareou a estrada poeirenta, de barro batido, e logo continuou o seu caminho, atravessando avenidas de bangalôs engolfados em jardins sombrios e ruas desertas. Só as luzes dos postes brilhavam. A queda de um oiti ocupou, por um instante, o silêncio da noite, como se o fragmento de uma estrela tivesse caído sobre a terra. E uma lacraia se refugiou num monte de madeiras podres, diluiu-se no negror do cascalho.

    A raposa atingiu a primeira rua de paralelepípedos, cruzou obliquamente uma linha de bonde, desceu a Ladeira dos Martírios, e começou a vaguear pelas ruas estreitas do centro da cidade. Na escuridão, parecia um cachorro vadio. Mas desde o momento em que surgira num atalho das matas rígidas até aquele em que atingira a Rua do Comércio, nenhum olhar humano a divisara ou se demorara nela, nem mesmo para confundi-la com um pulguento cão sem dono. E não se saberia dizer se ela revelava espanto, astúcia ou curiosidade.

    As casas dormiam, e pareciam ainda mais acachapadas, mesmo as que possuíam mais de um pavimento. Os homens e mulheres dormiam. Cheirando a suor, a esperma, ao açúcar que há séculos escorria da paisagem, a uma secreção qualquer, eles dormiam na noite vidrada, e sonhavam e se agitavam, enquanto morcegos balançavam como lâmpadas nos caibros dos telhados e mosquitos zuniam, e ratos e baratas se movimentavam desembaraçadamente na escuridão.

    E, fora, na rua sem aragem, embora não estivesse longe das ondas, a raposa espreitava, ia e vinha. Como se o esponjoso cheiro do mar a tivesse atraído, continuou descendo ruas até atingir a beira da água. Pela primeira vez suas patas conheceram a doçura da areia da praia.

    Aproximou-se do oceano, deixou que um rastilho de onda lhe umedecesse as patas, sem enxergar a brancura azulada das nuvens, e sentiu nas unhas secas o estonteante refrigério da água viva. Curvando o focinho, estendeu para as águas a sua vibrante língua sedenta, mas logo a retirou, num movimento de vertigem e náusea. A detonação das vagas parecia conturbá-la.

    Afastou-se do mar e seguiu pela praia até os trapiches negros que, cheirando a açúcar mesmo à noite — quando todos os armazéns estavam fechados e não havia nenhum trabalho de estiva — avançavam para o mar, apoiados em estacas verdenegras que, presumivelmente, jamais apodreceriam e haveriam de entrar para a eternidade com a sua imemorial solidez.  (Perto, debaixo de uma daquelas casas, estavam sepultados os marinheiros ingleses. Havia muitos anos, um navio ancorara no porto de Jaraguá, com peste a bordo. Os cadáveres dos marujos mortos de febre amarela tinham sido desembarcados e enterrados na praia que, com os tempos, se converteu numa avenida, suprimindo-lhes os túmulos. E, em certas noites, quando há navios ingleses ancorados no porto, as almas desses marinheiros vagueiam pelas ruas desertas de Jaraguá, procurando barqueiros que os levem para bordo e os façam repousar sob a mesma bandeira que os cobria nos dias em que, embarcando no navio perdido, eles sonhavam com um verde trópico de coqueiros, papagaios, canários e mulheres morenas). A raposa deteve-se junto a uma barcaça, possivelmente farejou o casco que, dias antes, tinha sido pintado de novo, e cheirava a alcatrão. Um caranguejo roçou nela a sua pata dianteira da esquerda.

    Momentos depois ela parava junto aos degraus da Associação Comercial, contemplava as colunas brancas do edifício que se projetava na negridão da noite, como uma sombra leitosa e virginal. Chegou a subir dois ou três degraus. A alguns metros dali, no escritório da Western, um telegrafista estava acordado, e sua vigília era doce como o próprio sono e se mantinha levemente no ar amarelecido de uma sala, enquanto ele, o olhar fixo na ilustração de uma folhinha, esperava os sinais fortuitos que, através dos cabos submarinos, atravessavam a noite granulosa das águas, onde nenhuma estrela fulgia.

    Num movimento rápido, a raposa mudou de direção, e veio pela rua que cheirava a açúcar e a cebola. (Atrás das portas cerradas das fachadas leprosas, que o vento do mar fora ulcerando, jaziam sacos de açúcar de banguê e de cebola, fardos de algodão, aguardente, milho, coco, fibras têxteis).

    Apesar da proximidade do mar tumescente que projetava nas ruas próximas o odor de evasão e maresia — a desnorteante mistura de viagem e de podridões que, situando-se numa linha indecisa e flutuante, tanto podia ser de lixo acumulado como o fedor de poliédricas e gosmentas dejeções marinhas —, apesar dessa vizinhança de sal e navio, musgo e marisco, as ruas possuíam uma pesada e mortiça qualificação terrestre. Era como se ali, naqueles sobrados de gradis ferrugentos e nas calçadas tortas e em declive, o homem se tivesse empenhado em construir o seu primeiro e mais resistente baluarte contra o mar e a evasão, levantando um monumento que, mesmo à noite, cheirava a mercancia e a lucro. E as janelas fechadas escondiam o amor e o ódio, a expiação e o terror, o adultério e a sodomia. E, dia e noite, os relógios marcavam o fluir do tédio e da espera insensata.

    A raposa parou mais uma vez, reconhecendo no ar um vago e vaporoso cheiro de couro, depois mudado no de melaço. Talvez se estivesse lembrando, naquele momento, de certa hora de sua vida em que lhe entrara pelas narinas o odor dos rios perenes que fertilizavam as várzeas do lugar onde ela nascera. Mas nunca poderia dizer se esse instante em que herdara o sentimento de seu ambiente natal transcorrera de dia, sob o sol que fazia com que as carnaubeiras fremissem, ou se fora à noite, quando a terra bebe a claridade das estrelas. Também não lhe seria possível discernir se, naquele momento remoto, ela morava na Zona da Mata, onde os canaviais haviam crescido no lugar das imemoriais florestas varridas a fogo, e os caetés perseguidos pelos colonizadores se haviam esvaído, ou se esse minuto já defunto se diluíra de si mesmo em outra paisagem, entre mandacarus e coroas-de-frade. Agora, sentia em seu dorso a carícia do vento do mar, e todos os seus instantes antigos se confundiam e se dispersavam.

    Numa mescla de astúcia e desnorteamento, a raposa voltou ao centro da cidade, entrando por outros becos. E decerto esse ziguezagueante pervagar num horizonte fuscalvo lhe deu uma visão geral de Maceió, apesar de não ter ido até as margens da lagoa e nem mesmo ter chegado às proximidades dos dois cemitérios. Ao descer a ladeira, depois dos sítios, das casas ajardinadas e dos bangalôs, a raposa vira, do outro lado da igreja, o Palácio do Governo. O cartaz dilacerado do cinema Rex (era o antigo cinema Floriano onde, há muitos anos, comerciantes, advogados, médicos, funcionários estaduais comidos de dívidas, fazendeiros e assassinos riam, após o jantar, assistindo às comédias de Carlitos e vendo as banhistas de Mack Sennett sumirem-se, evanescentes, nas dunas de um mar quase sépia, quando não se deslumbravam com o espetáculo de um campo de neve, todavia escurecido), a tabuleta de um cartório, o trem da Great Western já parado na estação, à espera dos passageiros que ao amanhecer partiriam para o Recife, o quartel da polícia, o Sovaco da Ovelha, a cadeia, o Hospital de São Vicente, o Teatro Deodoro, as estátuas dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto — que incutiam nos alagoanos o sentimento glorioso de que o País lhes devia não só a proclamação como a consolidação da República —, a Rua da Lama (onde as putas dormiam finalmente, em quartos que cheiravam a loção), tudo isto ia desfilando pelos olhos da raposa, e era admissível que ela sentisse, na área mais intelectual e deslumbrada de seu instinto, que estava percorrendo uma cidade, a primeira e única cidade que haveria de conhecer em toda a sua vida.

    No quartel da polícia, uma sentinela, que bocejava de sono, viu a raposa movendo-se ao longe, mas em nenhum instante lhe passou pela cabeça que tratasse de outro bicho que não fosse um cão vadio. No Hospital de São Vicente algumas janelas estavam iluminadas. Uma se abriu exatamente no momento em que ela atingia a calçada oposta, mas a freira que a descerrou para espreitar por um momento a hirta desolação da noite, paralela à sua vigília, não viu o animal que se esgueirava em direção à esquina. A freira sofria de insônia. De madruga, abrira por uns instantes a sua janela (como costumava dizer para si mesma) e ficara a contemplar aquela escuridão lavada e, contudo, opressiva que antecipava a aurora. A brisa vinda do mar próximo, que lhe refrescava o rosto, parecia libertá-la de tudo o que, nela, era aceitação e espera, renúncia e perplexidade — vazio pessoal que se enchia, diariamente de rostos lívidos, humilhados pelas doenças.

    Minutos depois, a raposa sentia nas narinas um cheiro de sangue e carne crua. Estava atravessando exatamente o largo diante do qual se erguia o Mercado Municipal, que cheirava a frutas e matadouro. De repente, porém, esse odor nauseante era substituído por um longínquo, mas, discernível cheiro de oceano. E, de muito longe, dos recifes de areias e corais, dos mangues e maceiós onde os goiamuns dormiam, dos coqueirais surrados pertinazmente pela ventania, dos canaviais que avançavam até a beira do mar, das várzeas cobertas de tiririca, vinha um aroma que, pelas frestas dos telhados, penetrava nas casas e se filtrava no sono das criaturas. E ao sono de cada um, à fração inconfessável de sonho, acrescia-se esse aroma da noite que agonizava. Era talvez um perfume de cajueiro florido, ou de folha de ouricuri batida ritmadamente pela brisa. E esse cheiro, vindo de todos os lugares, dos estuários dos rios, dos tabuleiros e barradas, do fundo dos recôncavos, das dunas e rios, das praias nuas, dos campos brejados, dos vales e lagoas, misturava-se ao sono dos homens, ao que neles era mais especificamente humano, terrestre e vital, como a ambição, a mendacidade, o adultério, ou certa crueldade mais ostensiva durante o mormaço, como se a nutrisse a cega luminosidade do dia mole e pleno.

    A raposa, que se recordava confusamente de um rio jamais seco, observava que a escuridão se ia diluindo. Um jasmineiro fremia, escondido por um muro. Bananeiras ruflavam. Vinha dos quintais o amiudar dos galos. Galos cantavam. Tornavam-se mais claras as fachadas das casas, que os aguaceiros lavavam em vão. Até mesmo o muro do necrotério, onde só havia um cadáver — o de um carroceiro que morrera afogado e o mar vomitara, monstruosamente redondo e inchado de uma turbilhonante vida de água —, prometia uma claridade radiosa, assim que a aurora viesse. Cães latiam. E ela espreitava, e era como se sondasse menos a perspectiva que se desdobrava baçamente diante de seus olhos do que a substância espessa do próprio presente. Seus olhos cinzentos, vivamente animais, que não tinham o dom da lembrança, mas apenas o do reconhecimento, não se recordavam do forno para o fabrico de cal, que vira certo amanhecer perto da casa-grande de um engenho, nem da raiz de mandioca encontrada ocasionalmente num chão calcário e farejada com indiferença. De nada se lembrava — e diante dela estava o instante, hialino como um quartzo, matéria que talvez tivesse o poder de ferir-lhe as patas e a cauda. Agachou-se, à maneira dos cães, para urinar, junto a um muro onde, na noite anterior, fora garatujado um protesto: Abaixo o Estado Novo. Abaixo a ditadura.

    Naquele átimo de tempo em que o mijo da raposa borrifava uma nesga da parede da casa e escorria pela calçada, o professor Serafim Gonçalves não sonhava, na larguíssima cama que lhe abrigava o corpo tornado ainda mais gordo pelo sono. Apenas dormia, a sono alto, roncando, e era como se não existissem nem a sua gordura nem os recursos extraordinários que há anos estavam no Supremo Tribunal Federal, nem o rosto de seus clientes e alunos. Ao seu lado, magra, fina, o corpo acusando-se em ossos e músculos, sua mulher ressonava, abraçada ao travesseiro de macela. Ela sonhava, mas era uma informe garatuja de sonho, que jamais poderia alçar-se à categoria de uma narrativa.

    Com a bexiga aliviada, a raposa prosseguia em seu vaguear através da cidade escura e deserta. O céu se envermelhava, os contornos das janelas e portas e das varandas fuligentas se faziam mais nítidos nas fachadas esborcinadas pelas chuvas.

    Calendários toscos do tempo, as coisas proclamavam, na semiescuridão, o século, o ano, o dia. Nos cartórios fechados jaziam as histórias de papel da cidade: nascimentos, inventários, casórios, toda a empoeirada e infindável crônica de milhares de destinos sedentários que o tempo esvaziara, fieiras de nomes sem rumor e significação, sem rostos e sem vozes como as pedras das ruas e os azulejos despregados das platibandas que as intempéries iam puindo. E da polpa de um oiti dilacerado pela queda no pátio do colégio evolava-se um perfume penetrante, rival da infância.

    A raposa, que tinha do fluir das horas apenas uma noção obscura, apesar de cadenciada pelo ininterrupto suceder-se dos dias e noites, sabia que a aurora estava rompendo. O recrudescimento dos cantos dos galos e as manchas cor de lavareda que listravam o horizonte e avançavam pelas paredes decrépitas anunciavam o arraiar da manhã. Sentindo sede, parou e bebeu a água suja de uma poça que refletia o palor de um céu de vidro. Tendo contornado o muro de um colégio, subiu a rua, do lado esquerdo, contrário ao muro que guarnecia o jardim do Palácio do Governo.

    E, no silêncio, o galo cantou. Era um galo de plumagem dourada, resplandecente, e sua crista rubra rivalizava com a vermelhidão da aurora. Magnífico, exultante, cantou, jubilosamente, no esplendor da manhã nascente, acordando o interventor e os magistrados, as putas e as beatas, proclamando a glória do dia, enquanto suas esporas aguilhoavam a terra inteira.

    Foi então que, no posto policial, um guarda descobriu a raposa com os seus olhos bugalhados e a reconheceu como se ela fosse a preciosa e jamais conseguida relíquia de sua infância. Chamou por um companheiro e a apontou. O outro, limpando com os dedos a remela dos olhos, ainda duvidou. Mas era uma raposa! De repente, o animal sentiu-se ameaçado e perseguido. Caíra numa armadilha, às suas costas e à sua frente se levantavam paliçadas. Como todos os animais, não acreditava em sua própria morte; julgava-se imortal, não obstante admitir a sua imortalidade com a morna indiferença dos seres sem metafísica. O certo, porém, é que estava acossado, na cidade que despertava pouco a pouco, e em cujo silêncio nativo se incrustavam os rumores mais diversos (e águas ferviam em chaleiras ou escorriam de torneiras recém-abertas, e pães saíam de fornos crepitantes, e a freira

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