História de Dois Patifes e Outras Prosas
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Sobre este e-book
História de Dois Patifes e Outras Prosas procura recuperar o legado de Fialho enquanto ficcionista. Recolhem-se aqui vários contos representativos da obra do escritor, bem como dois textos não-ficcionais, demonstrativos da versatilidade da sua escrita. Do divertido conto que dá nome à antologia, a história de dois gatos rebeldes e malcomportados, até ao delírio fantástico de «O sineiro de Santa Ágata», passando por histórias tocantes e profundamente humanas, como «Sempre amigos» ou «O filho», ou a descrição assombrosa da ceifa alentejana.
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História de Dois Patifes e Outras Prosas - Fialho de Almeida
História de Dois Patifes e Outras Prosas
Título: História de Dois Patifes e Outras Prosas
Autor: Fialho de Almeida
© Guerra e Paz, Editores, Lda, 2022
Reservados todos os direitos
A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.
Revisão: André Morgado e Marília Laranjeira
Design: Ilídio J.B. Vasco
Isbn: 978-989-702-788-8
Guerra e Paz, Editores, Lda
R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.
1150-105 Lisboa
Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489
E-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt
www.guerraepaz.pt
Índice
Nota a esta edição
Contos
História de dois patifes
Sempre amigos
Abandono do pombal
O filho
O anão
O sineiro de Santa Ágata
Outras Prosas
Manhã no Tejo
Ceifeiros
Anexos
Eu – Autobiografia
Cronologia biobibliográfica de Fialho e sua época
Nota a esta edição
O Autor
Fialho de Almeida, um dos escritores mais importantes da literatura portuguesa, está hoje esquecido. Contudo, em vida, era um nome incontornável nas letras e no jornalismo, amigo de muitas figuras importantes da literatura e da política, como Raul Brandão, Guerra Junqueiro ou Manuel Teixeira Gomes, entre outros. Mesmo depois de morto, continuou a despertar interesse: sendo analisado pela crítica universitária, reeditado ou editado postumamente. No entanto, pouco a pouco, o esquecimento instalou-se. Será necessário redescobri-lo?
De origens humildes, filho de um mestre-escola, nasceu em 1857 em Vila de Frades, no distrito de Beja. Finda a instrução primária, segue para Lisboa ainda criança, aos nove anos, entrando como aluno interno no Colégio Europeu. Em 1871, devido a problemas financeiros, abandona o colégio e emprega-se como praticante numa farmácia, ali permanecendo vários anos. Mais tarde, retoma os estudos e, em 1879, matricula-se na Escola Médico--Cirúrgica de Lisboa, onde se licencia em Medicina, em 1885. No entanto, a sua vocação é a literatura, e só exercerá a profissão de médico em raros momentos.
Ainda adolescente, publica crónicas em jornais de província, estreando-se, aos dezassete anos, no Correspondência de Leiria. A partir de então, escreve para vários periódicos e inicia-se na literatura, dando à estampa, em 1881, o primeiro livro, Contos; seguido, em 1882, por uma nova recolha de ficções, A Cidade do Vício. Em 1889, sai o primeiro número do seu trabalho mais conhecido, Os Gatos – Publicação Mensal de Inquérito à Vida Portuguesa. Em 1893, casa-se e muda-se para Cuba, Alentejo, mas a mulher morrerá pouco depois. Fialho herda-lhe os bens e mantém-se nessa localidade até à morte, dedicando-se à lavoura. Morreu em 1911, aos 53 anos, sem nunca ter deixado de escrever e de publicar.
A obra de Fialho é vasta, múltipla, fragmentária e influente. Na ficção, cinge-se ao conto, publicado, essencialmente, em quatro recolhas, Contos, Cidade do Vício, Lisboa Galante e O País das Uvas. Nunca escreveu um romance, no entanto, projectou fazê-lo (como Os Decadentes ou Cavadores, projectos anunciados, mas nunca publicados). Além do conto, cultivou sobretudo o jornalismo – crónicas, artigos, crítica literária, de arte, teatral, etc. Desta lavra, destaca-se a já referida publicação Os Gatos, série de opúsculos (cinquenta e sete, ao todo, editados depois em seis volumes) de crítica, reportagem e comentário, publicada entre 1889 e 1894, inspirada por As Farpas, de Ramalho Ortigão.
Em Fialho, avulta o interesse pelos desvalidos, os marginais, os pobres. Em suma, a gente anónima, esquecida por muita da literatura, mas resgatada por ele nas suas páginas. E é também um escritor do fantástico e do horror, apontando-se, por isso, como influência E. T. A. Hoffmann ou Edgar Allan Poe, além do português Álvaro do Carvalhal, entre outros. No jornalismo, criticou tudo e todos; sarcástico, por vezes foi justo, outras cruel. Desenvolveu um estilo rico, multifacetado, original, inspirado em diversas fontes. Recorre ao regionalismo, ao estrangeirismo (nomeadamente ao galicismo), ao glossário médico e científico da época (fruto, talvez, da formação em Medicina) e a uma enorme criatividade, com a qual cria novos vocábulos.
Muitos autores de renome debruçaram-se sobre a escrita de Fialho, damos agora nota de alguns deles. Segundo Óscar Lopes e A. J. Saraiva, ele é «o mais importante prosador na transição dos dois séculos» (in História da Literatura Portuguesa). Para Jorge de Sena, «o pior defeito do Fialho é, de facto, o seu imenso talento» («Glorificação de Fialho», in Estudos de Literatura Portuguesa, Vol. 1). Jacinto do Prado Coelho considera-o «um dos mestres do conto português», cuja personalidade livre e original era capaz de «provocar reacções extremas, de quente adesão ou indignada repulsa». E considera ainda ser ele o «autor de uma centena de páginas que entraram no tesouro da língua, notáveis pelo dinamismo da visão
interior, pela verdade humana da confidência directa ou simulada, na revolta como na fraterna piedade – e enfim pelo sortilégio com que transmitem agudamente sensações, das mais violentas às mais complexas e subtis» («Fialho e as correntes do seu tempo», in A Letra e o Leitor). Ou ainda Teixeira de Pascoaes: «Fialho excedeu todos os pintores. Ultrapassou a luz e apropriou-se do próprio fogo que a dimana! As tintas são de fogo na sua paleta elevada ao rubro. É um demónio a pintar!» (Os Poetas Lusíadas, apud António Cândido Franco, «Apresentação», Fialho de Almeida Cem Anos Depois).
O talento de Fialho foi, pois, reconhecido. Não obstante, a sua obra é desequilibrada – opinião quase unânime entre quem a analisou (José Régio, Óscar Lopes, A. J. Saraiva, Andrée Rocha ou Jacinto do Prado Coelho, por exemplo). Talvez seja por isso útil relembrar as palavras de Guerra Junqueiro, também uma figura ímpar das letras portuguesas, seu amigo. Citamos, por isso, o pequeno texto que escreveu para o livro de homenagem a Fialho, In Memoriam, editado em 1917: «Em Fialho de Almeida há um poeta genial e um noticiarista sacrílego. Sacrílego, porque gastou uma parte do seu génio, isto é, da sua imortalidade, a contar coisas fúteis e ruins, que viveram instantes ou que nasceram mortas. Da metade de um bloco de mármore fez Beleza. A outra metade estilhaçou-a e converteu-a em pó.» Ler Fialho hoje é, portanto, resgatar do esquecimento este «poeta genial» e descobrir, entre o pó da sua obra, a «Beleza» de que fala Junqueiro.
esta antologia
Antologiar um escritor é sempre uma tarefa difícil, pela subjectividade dos critérios, pela eventual vastidão da obra e pelas necessárias escolhas, e consequentes recusas, deste ou daquele texto. Antologiar Fialho levanta os mesmos problemas. É uma tarefa árdua, pelo muito que escreveu, pelos variados géneros cultivados, enfim pelas constantes dúvidas na hora de seleccionar os textos.
Nesta antologia, breve e dirigida ao grande público, decidimos restringir a escolha aos contos, por julgarmos ser esse o género mais representativo da sua arte e que mais interesse provocará no leitor. Contudo, Fialho pregou-nos uma partida, e vimo-nos obrigados a abrir duas excepções, incluindo, além dos seis contos, as prosas «Ceifeiros» e «Manhã no Tejo», de cariz não-ficcional, cuja qualidade mais do que justifica a leitura. De fora, terão certamente ficado muitos textos de grande beleza (como, por exemplo, «Madona do Campo Santo» ou muitos dos artigos d’Os Gatos). O nosso desejo é que a antologia desperte no leitor a vontade de descobrir essas pérolas da nossa literatura.
História de Dois Patifes e Outras Prosas recolhe os contos «História de dois patifes», «Sempre amigos», «Abandono do pombal», «O filho», «O anão» e «O sineiro de Santa Ágata»; bem como os já referidos «Manhã no Tejo e «Ceifeiros», além de «Autobiografia – Eu», este último como anexo.
A abrir o livro, numa toada menos séria quando comparado com os outros textos, o conto «História de dois patifes», um engraçado retrato de dois gatos que se dedicam a várias patifarias e se recusam a abdicar da liberdade face às vontades da sua pequena dona. Segue-se «Sempre amigos», sobre dois meninos que se mantêm amigos apesar de o pai de um ter matado o pai do outro, abordando-se vários temas, como a violência doméstica ou a miséria; e, mais à frente, «O filho», a história de uma mãe à espera do regresso do filho há muito emigrado. Óscar Lopes e A. J. Saraiva vêem nestes dois contos «situações colhidas com uma flagrância que sugere a palpitação humana e o ritmo de sopro vital» (in História da Literatura Portuguesa). Ainda sobre «O filho», Jacinto do Prado Coelho qualifica-o como «pungente conto» e «um dos mais belos de Fialho» («Fialho e as correntes do seu tempo», in A Letra e o Leitor).
D’A Cidade do Vício, antologiámos «Abandono do pombal», belíssima história, embora simples, da doença e morte de uma jovem. Um texto em que sobressaem os imensos recursos estilísticos do escritor, criando uma aura de mistério, numa prosa sugestiva de sensações e imagens, imersa numa imensa sensibilidade e imaginação.
Com «O anão», regressamos ao Alentejo e lemos um conto de fundo popular, cómico e trágico, sobre Carrasquinho, a sua vida e a sua morte. É um texto magnífico, com fortes marcas da oralidade, tratando do preconceito, da superstição e da dificuldade em ser diferente. Julgamos essencial mencionar as palavras de Óscar Lopes e A. J. Saraiva: «encontramo-nos perante qualquer coisa que prenuncia um não menos importante desenvolvimento do expressionismo germânico: a fantasia mitificadora de Kafka. Sentimos com efeito que Carrasquinho, o pobre anão, simboliza, como o célebre homem-insecto de Metamorfose, todos aqueles que, por qualquer contingência, parecem condenados a todas as arbitrariedades, e as aceitam, sem as compreender, como um destino, embora debatendo-se ainda em vão e por mero impulso vital» (in História da Literatura Portuguesa).
Para fechar a parte dedicada aos contos, escolhemos «O sineiro de Santa Ágata», no qual o autor embarca num delírio onírico, passeando entre as ruínas de um antigo convento. Para Óscar Lopes e A. J. Saraiva, «o expressionismo abeira-se aí de um exercício de fantasia autenticamente livre, como só virá a ser atingida nos melhores textos reivindicados, desde 1924, pela estética surréaliste» (in História da Literatura Portuguesa). E Jacinto do Prado Coelho acrescenta: «todo ele um sonho vertiginoso, um turbilhão de mostrengos e de serafins, que exprime a luta subjectiva entre misticismo poético
e a alma pagã da natureza
» («Fialho e as correntes do seu tempo», in A Letra e o Leitor).
Como já explicámos, seleccionámos ainda dois textos não-ficcionais, pela beleza literária e pelo exemplo dos variados géneros cultivados por Fialho. A crónica «Manhã no Tejo» é um impressionante exemplo de descrição paisagística, em que o autor, estando no Barreiro, pinta de cores vivas e exaltantes a paisagem que vê, o Tejo e a Margem Sul. Em «Ceifeiros», escreve sobre a vida dura dos trabalhadores rurais alentejanos, tema diversas vezes retomado por muitos dos grandes escritores portugueses do século xx. Mais uma vez, continuamos a seguir Óscar Lopes e A. J. Saraiva, que consideram ser este o melhor exemplo do apuro do autor em «avançar para além das fronteiras da percepção sensível», tentando «adivinhar a sensibilidade dos segadores numa seara alentejana, com a sua agudeza sensorial elevada, sob o aguilhão da luz e do calor, até a um registo de dor e de confusão dos sentidos ou sinestesia». E referem ainda que neste texto não é tanto o «drama social» a estar em foco, como se imaginaria sabendo o tema. Mas antes a «exploração até ao limiar superior das sensações definidas até à dor já insuportável, à consciência em delíquio, percorrendo metodicamente toda a gama das qualidades e das intensidades críticas nos sentidos externos» (in História da Literatura Portuguesa).
Por último, anexámos à presente antologia um texto de cariz autobiográfico «Autobiografia – Eu» (publicado originalmente no n.º 60 da Revista Ilustrada, 1892); fundamental para descobrir um pouco mais da vida e da personalidade de Fialho de Almeida. Páginas que espelham todo o ressentimento do autor, seja pelas origens, seja pelo difícil percurso de vida; e falam também da sua obra literária, do seu estilo e das dificuldades por que passa um escritor. Páginas que, enfim, condensam uma vida. Segue-se uma cronologia biobibliográfica de Fialho, incluindo as datas de publicações póstumas, bem como alguns dos acontecimentos políticos