Profissão: poeta: Perfil, poemas, entrevistas
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Sobre este e-book
Porta de entrada para o universo poético e íntimo de um dos nomes centrais da poesia moderna brasileira. Labirinto da mente e do coração do artista.
Prevendo a tentação de oferecermos este livro como uma espécie de "Armando por ele mesmo", o poeta avisa: "Não se fie muito em quem introduz o seu próprio conteúdo nesses tempos contaminados e perigosos."
Fica o convite para que o leitor se arrisque nessas páginas de registros e tempos múltiplos.
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Pré-visualização do livro
Profissão - Armando Freitas Filho
Sumário
Capa
Rosto
Introdução e aviso
Poemas
Entrevistas
Perfil
O dever do poeta
Sobre o autor
Copyright
INTRODUÇÃO E AVISO
Nas dezenas de entrevistas que concedi, que Cristina Barros Barreto coligiu e selecionou, nesta longa vida, mas não tão longa o bastante, ela acertou no alvo pretendido. Evitou o que pôde as repetições inevitáveis de um poeta que não tem heterônimos; que não tem, porque não acreditaria na autonomia deles. Sou filho único, incrédulo, incapaz dessas fantasias. Outros mais habilidosos e ou manhosos conseguiram e conseguirão tenho certeza, seduzir ou enganar os leitores nesse quesito.
Portanto, relevem as revelações, que sem farsa ou magia, acabam aqui e ali se repetindo, apesar de todo o cuidado de quem as escolheu. Pulem a parte que já leram é o que posso aconselhar. E para dizer a verdade, talvez por ser gago, gosto de repetir-me a fim de ver se conserto o que saiu titubeante ou incompleto.
As entrevistas ocupam um arco de tempo que começa em 1998 e chega a 2013. Ufa! Se me canso ao reler-me por tanto tempo, imagine os outros tão apressados e digitais como agora, com suas tecnologias de ponta, de poucas palavras e nenhuma digressão.
Os poemas escolhidos são do livro inédito, Numeral / Nominal que abriu, em 2003, a reunião da minha poesia até então, em Máquina de escrever. Ele não passou em branco, mas, a meu ver, talvez por causa dos doze outros que compunham o volume, paradoxalmente, não foi devidamente notado, embora novo em folha, sendo um dos meus melhores livros até hoje.
Finalizando, acrescento: é uma sensação nova não estar impresso em papel que, segundo dizem, aceita tudo, assim como o espaço virtual. Além do mais não posso negar que há uma concordância, existencial digamos, em quem daqui a pouco vai ser inconsútil e etéreo, como um e-book.
Por último, aí vai o aviso: não se fie muito em quem introduz o seu próprio conteúdo nesses tempos contaminados e perigosos. E assim me encerro, ainda sem pedir socorro.
Armando Freitas Filho
Poemas
Seleção: Armando Freitas Filho
LIVRO
ler
A partir de um desenho de Seurat
entrecerrado, entre o preto
e o branco, a claridade que vaza
é a de que quando amanhece.
É a do halo mais do que da lâmpada.
É a da primeira página aberta
pelos olhos à luz de quem mergulhou
na leitura e na espécie de água
que o pensamento para e agita.
escrever
Sofrer o livro. Entrever o trançado
de caneta e dicionário, e o desvio
que o sentido impôs à linha
em cada folha nova e úmida
que passa, vira, no vento do sol
do dia aberto, seca, e se volta
para sempre, para trás – para
contra a cal viva, o papel vazio
contra a noite dos olhos fechados.
BORRÃO
Escrever em cima do que
já estava escrito copiando
não tanto a letra mas a sensação
que bate perto do coração selvagem
de Clarice, da nudez de Drummond
das vidas secas de Graciliano
do tema e voltas de Bandeira
no cão de João, nas bananas podres
de Gullar, no delírio de Brás Cubas
no tiro ao alvo ao sol de Michel
aliás, Laszlo Kovacs, na grossa fuga
de Humbert Humbert, América adentro
através do grande vidro de Mutt, R.
aka Rrose Sélavie, ou pela via expressa
das séries de desastres de carro
de Andy, até o engarrafamento
de week-end, com Lautréamont
berrando ao fundo contra a barra
do acompanhamento furioso da bateria
até o assalto à fronteira
, de K.
ao som de agon, de Igor Stravinski.
TRÊS SERTÕES
Ler Os sertões é tão árduo e áspero
quanto atravessá-lo, por isso paro
na seca de cada parágrafo farpado:
os olhos ardem, morto de sede e fé
sem ar, no árido, onde o sol anda
de ceca em meca, e cai na chapada
enrugando a lixa do texto cerrado
encarando a guerra de preencher
cabralmente, a nova página branca
da mesma paisagem idem, dura, letra
por letra, passo a passo, e o preto
vai ficando mais fechado. Graciliânico
esforço manuscrito de léguas e laudas
e se aproveita todo espaço, de margem
a margem, escrevendo por camadas
com lógica empedernida, geológica
respirando a custo, no Grande sertão:
veredas, onde se delibera o rosa
em meio à rocha e à ruína, da flor
que pega fôlego na terra do sol, vinga
onde Deus e o diabo olham pelo mesmo
olho parado de caveira do boi morto:
só – entre cactos de palavras – fracasso.
MÓVEL
Mesa seca, no osso, sem o viço de origem.
Com os quatro pés de esqueleto, já sem raízes
pisando na terra, prestes a se quebrarem.
A madeira é quase lenha que não lembra mais
quando ousou folha flor fruto, vergou sua copa
o tronco, com os ramos estalando sob o vento.
Quando deu sombra e intervalo ao sol.
Quando foi árvore de onde a ave deriva.
10 ANOS
para Carlos
Flor masculina do meu bosque
seu cheiro começa a ser íngreme
árduo – de cabelo e músculo –
de dias ardidos de escalada.
Subsiste o primeiro suor da noite
inodoro porque em repouso
a pele lisa que a barba e a acne
ainda não contrariam, o ar de entrega
que se mantém embalsamado
pelo sono ou por algum sonho
de maldade, com mulher de celofane.
Mas a infância já se feriu, inevitável
ao entrar na casa de dois dígitos para sempre.
A dor de alterar-se, de altear-se
estala, e a inocência também é de sangue.
Uma e outra se quebram e reanimam-se:
têm o mesmo comportamento, prazo
bravio e breve, das ondas no mar.
URCA
para Cri
em casa
No quintal, abrupta, primária
a rocha aflora – é o pé no chão
do Pão de Açúcar, pronto, sentido!
Sentinela batendo no céu, em continência.
Parado, atrás da casa, equilibrado
para não dar um passo a mais, para não pisar
na vida do pequeno jardim, no bosque de ráfias.
na rua
Cheiro de chão de cerâmica molhada
e de grama recém cortada rente.
O mar sempre beirando as pedras, mas
às vezes, raro, em ressaca, no paredão.
O rumor arranhado das folhas secas na rua
a nota só, aguda, repetida, retomada
do rap ardente da trilha das cigarras
e a percussão breve das amêndoas
quando caem na calçada, e meio abaulada
quando batem no teto e no capô dos carros.
CDA NO CORAÇÃO
Drummond é Deus. Pai inalcançável.
Não reconhece os filhos. A mão ossuda
e dura, de unhas rachadas, não abençoa:
escreve, sem querer, contudo, a vida
de cada um, misturada com a sua.
Sangue da mesma família, carne
igual – de milagre e tigre – continua
a se emendar, ferida após ferida.
Mas não cessa. Não para, ainda que a dor
ameace interromper a veia, do que só sob
pressão se articula inteligível, do que só
funciona sozinho, pessoal, mas transparente
contra a vontade do coração medido.
Óculos, binóculos, luneta metafísica
aproximam o que já é próximo:
o que respira colado à pele sem que
o pensamento passe a limpo o calor
do que quase inaudível é inaudito
e íntimo, do que é subterrâneo
mas não quer outra existência
ou apogeu: do que sem luz natural
ilumina para dentro, para baixo
e cresce – raiz sem flor no fim.
Sem o desperdício do suor da cor.
Sem ser surpreendida, sem flagrante
sequer de sua fragrância imaginada.
Boca de traço reto. Face litográfica
riscada em poucas linhas, a carvão.
O corpo está em jogo desentranhando-se
das paredes urbanas que atravessa
a passo automático, com sua fala seca
datilografada depressa, que transforma tudo
em linguagem; o sub-reptício, o explícito –
o vulto e o vulcão – acontecendo em dois tempos:
calculado e sem contagem, dentro da mesma voz
que imprime, minuciosa, no verso
o revérbero, e no rosto da folha
da natureza, as suas variações
sob o olhar azul-céu de longo alcance.
SOBRE UMA FOTO DE EDWARD WESTON
Nua, anônima, 1923. Vinte anos presumíveis
branca, em decúbito dorsal, com o tronco
arqueado (talvez pela respiração presa
no instante único da foto, ou melhor:
foi a foto que a sustou, a suspendeu
para sempre), e mais o cheiro, parado
do grosso cabelo preto do púbis
do pouco que aparece nas axilas não raspadas
que saboreio, degusto, engulo em seco
sinto o gosto, agora, porque a pele
do corpo é de hoje, setenta e oito anos depois
e brilha, lisa, morena de sol, sem nenhum sinal
de vida, porém. Teus olhos fechados te encerram.
MONROE
Marilyn, de memória, 1949
clicada pela mão de Tom Kelley
em local desconhecido, sem nada
exceto o rádio ligado
, sem nem
o futuro véu de chanel nº 5, nua
absoluta, sobre veludo vermelho molhado:
mancha de leite elástica, corpo veloz
em ascensão, muito antes de depois
da queda, boca aberta, chama
despenteada, extática no vento da música
com os cabelos, entre o louro e o cobre.
SOBRE UMA FOTO DE ANA C.
para Helô
O verbo colear cabe aqui, justo
em todas as suas flexões, e cola
exato, no músculo puro e nu
que se movimenta assim, escaldante
na velocidade de cobra ou de mercúrio:
de zero a cem, cobre o espaço do corpo
sem sentir a força da aceleração
nem a volta, serpentina, à inércia
do anel inicial. Nos dois estágios
cai como uma luva, veste-se somente
de si, com sua pele mais fina e final.
CALOR
Cheiro de carro novo, de mulher.
Couro, verniz, visgo, esmalte.
É depressa. Coração de cabeça:
bate, pensa, acelerado e aberto.
Praia de deus, desmesurado.
Dias