Desejo e Solidão: Uma Leitura do Romance de Clarice Lispector
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Desejo e Solidão - Gilson Antunes da Silva
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA
A
Severiana Antunes e José Coimbra, meus pais,
pelo esforço incansável na manutenção de meus estudos,
em tempos de muitas adversidades.
AGRADECIMENTOS
Aos familiares, pelo apoio incansável. Gratidão especial a Manoel Antunes, pelo auxílio importante na leitura dos mitos.
À professora doutora Antonia Torreão Herrera, por confiar em minhas potencialidades, por acreditar na possibilidade deste trabalho e por me acompanhar durante a jornada acadêmica.
Às professoras Lígia Telles e Verbena Cordeiro, pelo diálogo profícuo na defesa do mestrado e pelas sugestões aí oferecidas.
Aos colegas, por tudo que construímos e desconstruímos juntos, pela amizade e pelo apoio em todos os nossos momentos da caminhada. Um obrigado especial a Mariana Rocha, Dislene Cardoso e Andréa Borde.
Aos amigos, pela parceria nos momentos de desânimo e pela compreensão nos meus instantes de deserto.
À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), pela bolsa de estudos ofertada na época em que escrevi esta obra.
PREFÁCIO
Entrar no universo literário de Clarice Lispector é como entrar num terreno pantanoso e iluminado apenas pelo reflexo lunar, que nos dá a sentir a força de cada elemento ao invés de perceber racionalmente sua existência como nos é dada pelo conhecimento solar estabelecido pelos parâmetros do Ocidente. A escrita de Clarice entranha-se pelas frestas e pelos desvios de uma linguagem, para dizer o que ela própria não está apta a dizer. Daí o sentimento de fracasso da linguagem, de insatisfação de seus personagens, de busca incessante dos seus narradores pelo real da escrita.
Gilson Antunes se arma de um grande aparato teórico para desentranhar da escrita de Clarice Lispector, notadamente de Perto do coração selvagem, os movimentos do desejo, marca mais premente da personagem Joana, em busca de afirmar seu ser para além da ordem pré-estabelecida pelo jugo da família e seus imperativos e do social e seus condicionamentos. Partindo de conceitos da psicanálise de Freud e de seu discípulo mais eminente, Jacques Lacan, Gilson desenvolve argumentos precisos em sua leitura do desejo nas configurações da personagem Joana e de Perto do coração selvagem e personagens de alguns contos e romances.
Para acercar-se do coração selvagem do texto clariciano, o autor divide sua obra em três momentos centrais. Inicialmente contextualiza o romance em estudo, apresentando ao leitor sua gênese e sua recepção crítica. Aí Gilson Antunes apresenta as principais leituras feitas da obra inaugural de Clarice Lispector sob o viés crítico da Psicanálise para inserir seu estudo na continuidade dessa crítica. Em seguida, oferece ao leitor um denso material teórico sobre os conceitos que irá manipular na análise dos textos. O passo seguinte consiste nas leituras do romance tomado como corpus, o que ele faz com muita sutileza e perspicácia, adentrando ao mundo pantanoso das personagens claricianas para trazer à luz a matéria desejante pela qual são construídas.
Como afirma o autor na apresentação de sua obra, este livro é resultado de suas travessias ao redor do mundo incompleto de Clarice Lispector e do seu texto que, como o real da Psicanálise, nos joga de encontro a nossas angústias e nos desestabiliza em nossas acomodações subjetivas. Entretanto, esse mal-estar também nos possibilita novos começos, novos arranjos ou rearranjos.
. O livro de Gilson Antunes, portanto, insere-se no âmbito da crítica clariciana como texto que oferece novos caminhos de leitura, novos horizontes interpretativos, novas formas de penetração no corpo textual dessa grande escritora.
Que o leitor, também movido pelos mesmos desejos de Joana, encontre nesta obra vias de acesso ao coração selvagem do texto clariciano, às frestas da linguagem por onde a autora deixa escapulir fragmentos da legião estrangeira que mobiliza seus personagens numa errância sem limites.
Antonia Torreão Herrera
Universidade Federal da Bahia
APRESENTAÇÃO
A obra de Clarice Lispector, desde a sua fulgurante estreia
, tem inquietado seus leitores, impondo-se de modo desafiador diante dos olhos da crítica. Ao longo dessas sete décadas, diversos têm sido os caminhos de acesso ao texto selvagem clariciano. O que me inquieta na escrita dessa autora é a maneira como ela lê o humano, revelando-nos o sujeito em seus sentimentos mais primitivos e verdadeiros. Clarice desnuda o homem para nos mostrar, como em um espelho invertido, a matéria da qual somos constituídos.
Foi desse encantamento primeiro que nasceu o projeto de investigar, ainda no mestrado, na obra da autora, as representações do desejo e a maneira como a personagem lida com essa falta. Apostei na hipótese de que Joana, de Perto do coração selvagem, em seu desamparo, perfaz e refaz seus percursos com o objetivo de alcançar o prazer e atingir aquela meta que, segundo Aristóteles, é a razão da existência de todo ser humano: ser feliz. Nesse sentido, a felicidade aparecia no horizonte da realização do desejo e na ausência de sofrimento. Descobri que essa conjunção não se realiza na escrita clariciana, ela mesma, campo de tensão, jogo de forças em que Apolo e Dionísio se digladiam ininterruptamente. Diante da descoberta dessa disforia presente tanto no plano da escrita quanto no âmbito subjetivo das personagens, vieram-me alguns questionamentos. É possível ser feliz nesse campo de batalha? Como se posicionariam as personagens claricianas diante da constatação de que a vida é esse puro vir-a-ser? Haveria uma escrita resignada frente ao impossível do real e da falta?
Para compreender essas indagações, investi, inicialmente, no estudo das representações do desejo no romance de estreia da autora. Isolei três elementos para investigação: o desejo infantil, o desejo diabólico e o desejo em desordem. Acompanhei a trajetória da heroína, no seu processo de formação-deformação no qual sua subjetividade vai ganhando e perdendo traços identitários. Nesse percurso, Joana se torna fragmentos desejantes em devir e, como tal, pura dispersão.
Ao investigar essas formas informes com as quais o desejo se traveste ao longo do texto, percebi que, para além do desejo de ser feliz (satisfazer-se), sempre acontecia uma pequena coisa que a desviara da torrente principal
. Era como se o sujeito não pudesse tocar a coisa, qual a raposa de Esopo. Entretanto, se na fábula há uma desistência e uma detração do objeto faltoso, em Perto do coração selvagem, há a insistência, a labuta e a valorização desse mesmo objeto que sempre falta em sua totalidade. Isso me levou a perceber que a tensão estava mais além do princípio do prazer e mais além da força do desejo. Havia um princípio disjuntivo que mobilizava as ações de Joana, colocando-a sempre perto do coração selvagem. A Coisa não pode e nem deve ser atingida. É preciso manter o desejo sempre em exercício para que o sujeito não feneça.
A atitude da heroína diante dessa impossibilidade é vacilante e afirmativa. De início, Joana resiste frente à castração que se lhe impõe no final da narrativa. Como sujeito que toma sobre suas mãos as agruras da frustração, ela vacila, sofre, desiste, para, em seguida, levantar-se forte e bela como um cavalo novo
. Aí há a aceitação da vida na condição mesma de puro estado de continuidades e rupturas. Joana e eu descobrimos, nessa travessia, que a felicidade não consiste apenas na satisfação dos desejos ou no estado contínuo de prazer. A felicidade está também no devir, no combate diário, no próprio movimento contínuo em que o sujeito se lança sempre nos caminhos do desejo, mantendo-o vivo e, por isso, insatisfeito.
Este livro, portanto, é resultado dessas travessias ao redor do mundo incompleto de Clarice Lispector e do seu texto que, como o real da Psicanálise, joga-nos de encontro às nossas angústias e nos desestabiliza em nossas acomodações subjetivas. Entretanto esse mal-estar também nos possibilita novos começos, novos arranjos ou rearranjos. Espero que a leitura desta obra vos auxilie na desestabilização necessária e na construção de novas organizações subjetivas. Que os desejos de Joana nos ajudem a refletir o nosso próprio campo passional e a entender que a despeito de toda dor, de todo sofrimento, é preciso sustentar o desejo, suportar a falta e fazer da existência um contínuo e alegre labor.
O autor
Sumário
1
INTRODUÇÃO
2
A ESTRANHA E SELVAGEM OBRA DE CLARICE LISPECTOR
2.1 OS (DES)CAMINHOS DA CRÍTICA
2.2 PERTO DO CORAÇÃO DO TEXTO
3
DO DESEJO: TEORIAS E REPRESENTAÇÕES
3.1 FRAGMENTOS TEÓRICOS
3.1.1 A Trama da Falta
3.2 OS DESEJOS DE JOANA
3.2.1 O Desejo Infantil
3.2.2 O Sujo Querer de um Pequeno Demônio
3.2.3 O Desejo em Desordem
4
O MESMO IMPULSO DA MARÉ E DA GÊNESE
4.1 PERTO DO FIM DO DESEJO
4.2 O DESEJO AFIRMADO A TODO CUSTO
4.3 O DESEJO E O ETERNO RETORNO
5
PERTO DO FIM: OUTRAS CONSIDERAÇÕES
REFERÊNCIAS
1
INTRODUÇÃO
Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo que isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha desintegração?
Clarice Lispector (A paixão segundo G. H.)
A literatura de Clarice Lispector (1920-1977) privilegia a representação das paixões humanas em sua intensa nudez, em sua pulsação primitiva, nas fronteiras do instintual. Essa representação torna-se, muitas vezes, assustadora, porque desmascara o lado perverso da alma humana em suas vicissitudes e potencialidades e expõe a face grotesca da subjetividade. Lispector põe às claras, por meio de suas personagens, um universo humano, marcado por conflitos pulsionais, por desejos reprimidos e recusados, por uma força dionisíaca prestes a rebentar-se em jorro espesso de vida, vida em excesso. Sua ficção acentua a natureza humana agonizante diante da vida em sua intensidade, entre o excesso por ela exigido e a frágil possibilidade ofertada pelas verdadeiras condições reais. Nesse entrelugar da agonia, suas personagens, como todo sujeito de desejo, encontram mecanismos para criar uma forma alternativa de satisfação, a fim de mitigar suas demandas pulsionais, de apaziguar seus instintos vitais. Quer seja por meio do devaneio ou da fantasia, quer seja por meio da violência/gozo sobre o outro, as criaturas claricianas buscam vazão para os subterrâneos interiores, fazendo de suas existências uma verdadeira travessia que se configura em uma aventura em direção à coisa, rumo ao objeto de gozo. São seres em árdua e contínua peregrinação.
A representação dessa travessia inicia-se no primeiro romance, Perto do coração selvagem (1943), com sua protagonista, Joana, que tem na procura o sentido de sua existência. Toda a narrativa constrói-se em torno dessa demanda da heroína que procura, a todo custo, atingir um coração selvagem impossível. Semelhante a Íxion e a Tântalo em seus suplícios, a protagonista lispectoriana move-se entre um desejo e outro, sem jamais encontrar algo definitivo capaz de aplacar sua fome ilimitada. Discípula de Dionísio, Joana é a representação da própria inquietação. É a imagem do devir, do relançar-se contínuo de uma força que se sustenta nessa própria condição, gozando no gesto que se dá entre a ruptura e a continuidade.
Segundo Benedito Nunes,¹ nesse romance, evidencia-se a peregrinação do desejo insatisfeito, convertido em um movimento de errância, em uma intérmina busca. Isso faz de sua personagem central um emaranhado de eus desorganizados, dispersa em si mesma, um ser errante em sua falta, enfim, um esboço aberto a um preenchimento impossível.
²
De acordo com Camille Dumoulié,³ o desejo desde sempre foi – por excelência – uma questão da filosofia. Cabe aqui acrescentar também à ideia do estudioso, o fato de ser também o desejo uma questão da literatura desde seus primórdios. Ora, o que conduzia Ulisses em sua peregrinação de volta a Ítaca senão o desejo de retornar ao seio da família? O que levara Eva a comer a maçã e dá-la também a Adão senão o desejo de transgressão, de diferenciação? O que fizera Páris e Helena transgredirem as convenções, provocando a guerra de Tróia senão um desejo arrebatador? Além disso, a própria literatura nasce, segundo muitos estudiosos, do desejo insatisfeito, de uma falta estrutural, como aponta Leyla Perrone-Moisés:
Na sua gênese e na sua realização, a literatura aponta sempre para o que falta, no mundo e em nós. Ela empreende dizer as coisas como são, faltantes, ou como deveriam ser, completas. Trágica ou epifânica, negativa ou positiva, ela está sempre dizendo que o real não satisfaz.⁴
O desejo, como todo conceito, possui várias acepções que lhe foram impressas por pensadores importantes nos mais diversos contextos. É uma palavra que eclode em múltiplos sentidos, desdobrando-se em infinitos deslizamentos conceituais. De Empédocles a Lacan, quantos semas usados para compreendê-lo! Quantos significados tomados para defini-lo! De acordo com Camille Dumoulié⁵, há duas correntes na tradição ocidental que se opõem naquilo que concerne ao conceito de desejo. De um lado, uma tradição que se estende desde Platão à Psicanálise, cuja noção negativa do desejo está associada à carência, à falta, ou até ao demoníaco. De outro, pelo contrário, uma vertente que, voltando-se para a Grécia, valoriza a potência positiva do desejo, como o fazem Hobbes, Spinoza e Nietzsche.
Para Freud, o desejo está preso à noção de retorno a uma experiência mítica um dia vivida pelo sujeito, atado a uma ideia de reminiscência da primeira experiência de satisfação. Nascido da perda irreparável do objeto, o desejo se define como a busca indefinidamente repetida dessa ausência que não cessa de ser presentificada por outros objetos, sob aspectos aparentemente irreconciliáveis, em um deslizar contínuo entre a satisfação e a falta, em uma plenitude sempre adiada e jamais atingida. Uma vez marcado pelo desejo, o sujeito jamais cessará de repetir a busca de satisfação primeira, encontrando na realidade apenas substitutos precários de seu objeto disperso. Garcia-Roza, leitor de Freud, nos ajuda a esclarecer esse deslizamento metonímico quando afirma:
O desejo desliza por contiguidade numa série interminável na qual cada objeto funciona como significante para um significado que, ao ser atingido, transforma-se em novo significante e assim sucessivamente, numa procura que nunca terá fim porque o objeto último a ser encontrado é um objeto perdido para sempre. Toda satisfação obtida coloca imediatamente uma satisfação que mantém o deslizamento constante do desejo nessa rede sem fim de significantes.⁶
Assim, tal desejo, que se refere a esse objeto mítico e que funda a dinâmica do psiquismo, é por natureza inapreensível e indestrutível, uma vez que tem a falta como motor. É em torno deste objeto que falta que o sujeito faz gravitar seu desejo e toma sua orientação subjetiva apelando à fantasia que constitui na tentativa de responder a esta lacuna
.⁷ Toda tentativa do sujeito em reviver o momento da primeira experiência de satisfação e atingir o objeto absoluto do desejo traduz-se, em termos lacanianos, em vontade de atingir a Coisa, das Ding. "Das Ding deve, com efeito, ser identificado com o Wiederzufinden, a tendência a reencontrar, que, para Freud, funda a orientação do sujeito humano em direção ao objeto." ⁸. E é nessa busca sempre renovada que o