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Identidades em narrativa: Práticas e reflexividades na periferia
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E-book363 páginas4 horas

Identidades em narrativa: Práticas e reflexividades na periferia

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Sobre este e-book

Podemos encontrar reportadas em abordagens teóricas de diferentes matizes, caracterizações da ambiência na qual situamos nossas vivências sociais do incerto e do múltiplo, materializadas na ampliação da necessidade de escolha e renúncia e no esmaecer do que antes era "regra"; experiências de sujeitos que, ademais, poderíamos conceber em buscas por inscrever seus passos mesmo quando o terreno se mostra oscilante. Fica, no entanto, a pergunta curiosa pela experiência de tais dinâmicas nas periferias de nossas cidades, em cenários nos quais as "certezas modernas" nem sempre foram consensualmente instauradas; onde, de outra forma, certa condição de travessia, como sugerida a nossa cultura por Guimarães Rosa, estaria já presente, a compor cotidianos e pertenças desde outras nuances. Eis aí o desafio de uma análise contextualizada ao se pesquisar identidades, práticas e reflexividades.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de abr. de 2016
ISBN9788546201259
Identidades em narrativa: Práticas e reflexividades na periferia

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    Identidades em narrativa - Leandro Rogério Pinheiro

    libro.

    Apresentação

    Os temas que compõem minha escrita neste livro me chegaram em diferentes momentos, e são combinados a partir de minha sintonia às condições e aos modos de viver em localidades de periferia. Escrevo sobre e desde as relações que integrei pesquisando, sendo a maioria dos textos, aqui, resultantes de um olhar retroativo, que rearranja experiências em pesquisas realizadas entre 2006 e 2014, em pelo menos cinco dos bairros mais vulnerabilizados da cidade de Porto Alegre.

    Poderia defini-las por não mais que incursões de quem gosta de andar e conhecer, que resultaram, cada uma a seu tempo, em narrativas sobre contextos específicos. Contudo, os diferentes espaços em análise trazem também temas que vemos discutidos recorrentemente na atualidade. Além das desigualdades de ordem econômicas e culturais ostensivamente presentes, a escrita carrega conexões com pautas ambientais, questões de gênero, usos de tecnologias informacionais, práticas juvenis e processos de individuação, tratados, entretanto, desde produções e apropriações de sujeitos atuantes nas periferias.

    Destarte, as motivações da escrita deste livro conectam-se igualmente ao cenário de incertezas que vivenciamos na atualidade, que podemos encontrar reportadas em abordagens teóricas de diferentes matizes. As repercussões do uso intensivo de tecnologias de informação e comunicação, da produção de relações econômicas globalizadas, da intensificação de apelos de consumo e de ritmos de trabalho, da crise ambiental e da fragilização dos grandes projetos societais e/ou da diversificação de interpelações identitárias são alguns dos fatores citados como conformadores da ambiência na qual situamos nossas experiências sociais do incerto e do múltiplo, materializadas na ampliação da necessidade de escolha e renúncia e no esmaecer do que antes era regra; experiências de sujeitos que, ademais, poderíamos conceber em travessia, em buscas por inscrever seus passos mesmo quando o terreno se mostra oscilante.

    Tratando-se, na maioria das vezes, de abordagens do eclipsar de parâmetros modernos consolidados no pós-guerra europeu, cabe questionar, no entanto, como as periferias de nossas cidades viveriam tais dinâmicas, já que configuram contextos nos quais as certezas modernas nem sempre são consensualmente instauradas; onde, possivelmente, a condição de travessia, sugerida à nossa cultura por Guimarães Rosa e realçada, depois, por José de Souza Martins, estaria já presente, a compor cotidianos e pertenças desde outras nuances. Eis aí o desafio de uma análise contextualizada quando pesquiso identidades, práticas e reflexividades.

    Nos limites deste livro, procuro dispor esboços da diversidade encontrada nas localidades de periferia que conheci, elaborada na forma de espaços de ação e produção identitária, que perpassam diferentes cenários citadinos e distintas ambiências socioeconômicas e culturais. Faço-o, além disso, desde experiências de pesquisa atentas à caracterização de cotidianos e das formas encontradas pelos sujeitos para fazer seus dias entre o que lhes chega e o que logram produzir.

    Nesse sentido, devo assinalar que atravessam minhas narrativas as relações centro-periferia que carregam consigo aqueles que, como eu, vão até lá para atuar e intervir; está em minhas escritas uma pequena amostra da pluralidade de apropriações que compõe os contextos que, usualmente, definimos pelas precariedades de quem os habita; fazem parte de meus diálogos a tentativa de compreender e o desacomodar provocado em campo, procurando, quem sabe, compor reflexivamente os itinerários com meus interlocutores.

    Vejamos, pois, como tomo posição no conjunto de propósitos que me animam, mesmo que sejam apenas na forma de provocações de percurso.

    Em Entre identidades e narrativas: inspirações e potências de noções em contraste, procuro alinhavar minhas inspirações teórico-metodológicas, de modo a apresentar a maneira como interpreto e problematizo os espaços de ação que narro nos capítulos subsequentes. As noções de identidades, reflexividade, narrativa e campo são centrais neste intento, tratadas desde as relações que concebo entre elas e que me ajudam a pronunciar o que percebia em minhas incursões. O formato do texto é o de uma exposição de concepções associada ao contexto de mudanças sociais que presenciamos especialmente nos últimos três decênios, tendo por base, dentre diferentes autores, as provocações por vezes contrastantes de Alberto Melucci, Paul Ricoeur e Pierre Bourdieu. Muito antes de pretender uma revisão bibliográfica ou teórica, esse foi o caminho para destacar articulações na construção de uma forma de abordagem e de uma maneira de narrar.

    Sobre com quem se fala: reflexões para ir às periferias foi elaborado a modo de introdução, com o intuito de anunciar a realidade caleidoscópica desde a qual tento trazer a análise de espaços de ação, pertença e reflexividade que formarão os cinco textos posteriores. Faço um recorrido bastante breve de formas de olhar para aqueles que lá estão, naqueles lugares que distinguimos física e simbolicamente mas que também nos constituem, para ventilar elementos da diversidade que tenho encontrado.

    O capítulo Entre educadoras e educadores sociais, tensionamentos de quem deseja emancipar narra o primeiro dos contextos que abordo, iniciando as narrativas por um espaço educacional. Abre reflexões sobre várias pertenças dessa prática social, destacando vetores prováveis de tensionamento e reflexividade de um cotidiano que integra ação estatal e não governamental, e cujos profissionais tomam posição na assistência a pessoas socialmente vulnerabilizadas. Sendo o único texto em que as interlocuções são ambientadas em locus explicitamente institucional, lança provocações sobre a relação deste conjunto relacional de fronteiras historicamente demarcadas e aqueles que o acessam sob a denominação de usuários ou educandos. Narrativamente, foi concebido, aliás, como o ponto de partida para se seguir aos outros espaços de ação nas periferias, aludindo, aqui, a posição daquele que chega e tenta compreender e participar.

    Na sequência, Catadoras, catadores e suas práticas: para um esboço de táticas e expectativas aborda um cenário de informalidade e precariedade, analisando as inserções de trabalho e as condições de vida de pessoas em situação de elevada vulnerabilidade social. De outra parte porém, realça suas prioridades e algumas de suas táticas na feitura dos dias e na relação com os enunciados do campo ambiental. É um texto que se relaciona com as problemáticas ambientais que nos consternam na atualidade, mas se orienta às perplexidades relativas à inquietante articulação da reciclagem e do ambiental com dinâmicas de inclusão precarizada no capitalismo, indiciando distintas e contrastantes formas de apropriação.

    Em Mulheres, sociabilidades e política no cotidiano: reflexões de um encontro, dou destaque à atuação de mulheres trabalhadoras em cotidianos de periferia. Por intermédio de iniciativas de economia solidária, chego ao cenário das práticas de quatro mulheres, abordando a forma como configuram seus afazeres no empreendimento, à medida que se articulam laços de reciprocidade comunitários e condição de gênero. As questões que o cotidiano colocava, neste caso, levaram-me a analisar as peculiaridades das pertenças predominantes entre minhas interlocutoras no singularizar de sua ação política. Algo, por certo, com muito a aprofundar ainda, mas que sinaliza para a diversidade que compõe o campo da Ecosol e, além disso, destaca a ação feminina em espaços empobrecidos.

    Abordo as produções de um movimento social constituído por moradores e ativistas de localidades de periferia em Para divergir e enunciar, as identidades no Hip Hop. Com o objetivo de conhecer as atividades do Hip Hop em Porto Alegre, dialoguei com jovens moradores de diferentes bairros e atuantes em distintos elementos da cultura. Desta forma, esboço as redes sociais que fundamentaram sua apropriação e as frentes de ação desenvolvidas na produção artística e na mobilização de participantes. Em congruência, analiso as práticas do movimento desde suas ênfases, ao tomar as identidades como pauta e a fruição como eixo de táticas, em articulação a relações de poder que não se filiam apenas à dimensão econômica e assumem a informação, os enunciados e o espetáculo como arena de disputa. E, então, elaborações acadêmicas acerca das práticas juvenis contemporâneas foram também discussões concernentes neste sentido.

    As dinâmicas abordadas em "Aos passos com bboys: identidades e individuações na prática do break" guarda forte consonância com as análises do capítulo anterior. A pesquisa se vincula à cena Hip Hop de Porto Alegre, mas se detém às práticas em um dos elementos por intermédio do diálogo com dançarinos de break. Após uma contextualização da origem do grupo com que interagi, percorro as atividades que produzem em seus treinos, ensaios e apresentações, para discutir as potências para identificação e individuação nas atividades desenvolvidas pela crew, incluindo aí repercussões para outras instâncias das vidas de seus integrantes, quando criam modos de produzir saberes, participam na produção de capital cultural pertinente a sua realidade e conquistam inserções profissionais.

    Por fim, em Ensaio sobre as dúvidas – Reflexividades e narrativas no redesenhar do itinerário, busco tecer reflexões adicionais observando panoramicamente os densos contextos que narro a cada capítulo. Trata-se de um esforço de mirada ulterior, elencando eixos analíticos para o conjunto e, em articulação, pontos para futuras incursões. Desde categorias que me são caras, como reflexividade e narrativa, retomo as identidades narradas para realçar aspectos que via nas entrelinhas e que merecerão mais atenção: expressão de perplexidades e dúvidas sobre o que me parece potente para compreensão dos encontros nas e com as periferias; e, ademais, o enunciar das expectativas de quem segue caminhando.

    No mais, concluindo este que foi o último dos textos, nutro a esperança de que as escritas condensadas aqui sejam palco de novos encontros, no conectar de quem comunga curiosidades e indignações, ou no mirar a quem pode estar acolá, mas inquietantemente nos constitui.

    Capítulo 1: Entre Identidades e Narrativas – Inspirações e Potências de Noções em contraste

    Tem dias que a gente se sente Como quem partiu ou morreu A gente estancou de repente Ou foi o mundo então que cresceu A gente quer ter voz ativa No nosso destino mandar Mas eis que chega a roda-viva E carrega o destino pra láChico Buarque

    Enquanto escrevia e reescrevia os textos que, agora, compõem este conjunto, preocupava-me em esclarecer as escolhas do itinerário. Nos entrelaces entre a expectativas supostas aos leitores e minha necessidade de encontrar articulações (sempre limitadas) nas escritas de diferentes momentos, decidi elaborar algumas tomadas de posição. Este é o teor deste texto: alinhavar um modo de pesquisar e, para isto, comentar como me apropriei de noções e reflexões de autores que influenciaram minhas incursões. Não teria condições de fazer uma revisão sobre os usos de conceitos; preferi tentar elucidar apropriações desde as potências que os conceitos me representavam.

    Minha opção por pesquisas em localidades de periferia urbana guarda relação virtual com minhas vivências de infância e juventude, contextualizando e atualizando as perplexidades e curiosidades que me movem. Quando em campo, em meio a conversas com pessoas de diferentes localidades, sentia-me instigado de várias maneiras. Difícil mesmo não me perder navegando pelo que sentia e pelo que me chegava em algo que observava, em um causo contado ou em uma opinião diferente. Era como se aquelas informações, que me provocavam e, muitas vezes, desconsertavam-me, avivassem meu desejo de conhecer mais do jeito de viver, da maneira de crer e compreender as vivências que meus interlocutores professavam.

    Creio, a partir deste exercício reflexivo ulterior, que as questões que me acompanham se orientam às peculiaridades (socialmente situadas) de meus companheiros de itinerário e ao que dizem à minha curiosidade e à difícil tarefa de andar lado a lado com a alteridade. Eis que no curso dos encontros, a noção de ‘identidades’, dita, assim, no plural, acabou significando muito de meus sentimentos e buscas. E o que está posto na sequência é, neste sentido, o modo pelo qual venho organizando meu esforço de interpretação dos espaços de ação e construção de sentidos das pessoas com quem dialoguei, associando noções que comunicam minhas percepções e intuições no itinerário.

    Apresento-o de uma forma não tão original quanto necessária, como uma análise do método, ou, inspirando-me em Morin (2005), como uma tentativa de explicação de meu sistema explicativo. Acredito que a potência do diálogo passa pelo compromisso da compreensão e, para tanto, passo importante é pronunciar o jeito de narrar.

    1. Identidades, descentramentos e diferença

    O tema da identidade se torna manifesto na ocorrência de sua crise. Bauman (2005) conta que, pouco antes da segunda guerra mundial, foi realizado um censo populacional na Polônia. Para a surpresa dos funcionários treinados pelo Estado, em muitos dos casos, poloneses não sabiam o que significava ter uma nacionalidade, respondendo apenas somos daqui. Por este exemplo, caracteriza-nos o arbitrário da produção das identidades nacionais, referindo os esforços do Estado moderno em construir vínculos entre indivíduos e nação sob a ficção de uma relação imediata entre esta e o nascimento.

    O intento de recriar a realidade a semelhança da ideia (p. 26) presente no exemplo histórico, provoca-nos a assumir que o pertencimento, como base referencial para significação e de delimitação do que nos mobiliza, é produção social, e que a questão pela identidade também o é, quando a identificação é colocada como tarefa e/ou como objeto. Nas palavras de Bauman (2005),

    perguntar ‘quem você é’ só faz sentido se você acredita que possa ser outra coisa além de você mesmo; só se você tem uma escolha [...] só se você tem que fazer alguma coisa para que a escolha seja real e se sustente (p. 25).

    O que se instaurara como demanda poderia ser vivenciado, então, como estranhamento. Neste ínterim, vale considerar que a produção desta que seria uma das ênfases da modernidade comporia as experiências de indivíduos e comunidades conforme se estabelecem aparatos e se infiltram as condições de poder estruturantes do enunciar de auto definições (individuais e/ou coletivas) como prática. No curso da desincorporação e reincorporação de formas sociais tradicionais, conforme nos inspira Beck (2012) em sua análise do que define como modernidade simples, o que fora signo de um processo de dissolução convertera-se em prática instituída (ou ao menos pretendente à universalização), corporificada em diferentes afiliações, em geral, concebidas desde certa unidade e estabilidade (raça, posições de gênero, nação, família, classe).

    Entretanto, a partir de diferentes perspectivas, vários autores parecem confluir na compreensão de que as bases estruturais que sustentavam a unidade e a estabilidade das afiliações identitárias modernas estariam sofrendo mudanças rupturantes, especialmente nos últimos 40 anos¹⁰. Para tanto, não raro recorrem a clássicos da sociologia como reflexão inicial, lembrando as problematizações de Max Weber sobre o processo de racionalização ou as análises de Marx e Engels sobre as dinâmicas perturbadoras das relações sociais próprias ao capitalismo.

    Então, com o fim específico de ambientar os argumentos que apresento (ainda que sob o risco de recair em reducionismo), elencarei algumas esferas de mudança a partir de uma leitura transversal de diferentes perspectivas. Meu intuito reside em indicar bases interdependentes de tensionamento e perplexidade construídos socialmente e que diferentes autores analisam. De forma alguma, pretendo resumir as densas contribuições destes. Trata-se de esboçar o cenário para que o tema das identidades fosse colocado em pauta de maneira contundente.

    A primeira delas concerne às mudanças no mundo do trabalho, por conta do uso intensivo de tecnologia informática e por medidas de reestruturação produtiva orientadas à flexibilização da produção, que se associam também a uma diversificação de produtos e apelos de consumo, atentas à ampliação e/ou manutenção de margens de acumulação capitalista. No cerne de tais mudanças, que tiveram emergências em diferentes períodos nas regiões do globo, concentrando-se especialmente entre os anos 1970 e 1990, encontram-se a fragilização de pertenças às coletividades de trabalho e a responsabilização individual pelos resultados laborais e pelas planificações relativas a desempenho e êxito¹¹.

    Um segundo ponto diz respeito ao papel do Estado em um cenário globalizado, com destaque às relações engendradas pela ampliação de circuitos migratórios (de capitais, trabalhadores, etc.), pela reorganização geopolítica de diferentes países (em parte, associada à crise das nações do socialismo real) e pela disseminação do uso de tecnologias de informação e comunicação a partir dos anos 1990. Contexto com implicações no controle estatal de fluxos interterritoriais, na configuração de forças para decisões nas relações internacionais e nas possibilidades de interpelação dos cidadãos pelas narrativas identitárias nacionais, já que estes passam a ter à frente (mesmo que virtualmente) diversas formas da alteridade a contrastar com as comunidades nacionais imaginadas.

    O terceiro item nos remete às discussões relativas à crise ambiental, que, visibilizadas crescentemente a partir dos anos 1970, lançaram-nos a questões sobre os limites de nossos modelos de produção e consumo, os usos que fazemos do conhecimento e os danos gerados desde uma noção de progresso que dissimula os riscos à sustentabilidade da vida. No que pode ser o indício de uma crise civilizacional, para usar os termos de Leff (2009), estão as perguntas pelo que fazemos com as possibilidades que a ciência e a tecnologia nos aportam, potencializando a intervenção deliberada sobre aspectos da natureza (socializando-a) em diferentes âmbitos (cirurgias plásticas, geração de fetos, manipulações de alimentos, uso de nanotecnologias, energia nuclear, etc.), incluindo aí a possibilidade de extinção de nossa presença sobre a terra. Para além das desiguais condições de participação neste campo de ação, cabe aventar que o infiltrar destas perplexidades no cotidiano podem ter consequências sobre a maneira como somos sensibilizados na fruição do tempo, dedicamo-nos a uma ocupação e/ou nos deixamos interpelar por um futuro imaginado.

    O quarto fenômeno que poderia elencar concerne às práticas engendradas na apropriação de tecnologias de informação e comunicação. É comum entre os autores a menção à alteração da noção de espaço, em decorrência dos fluxos de interação globais oportunizados. Os versos de Gilberto Gil traduzem bem a sensação: antes, o mundo era pequeno porque a terra era grande; hoje o mundo é muito grande porque a terra é pequena. Conforme nossos mundos são invadidos pela diversificação (mesmo que, na maioria das vezes, por uma mediação virtual), está posta a potência para um redimensionamento da produção identitária. Podemos falar de processos de identificação que descentram a proximidade física e virtualizam a localização comunitária, recaracterizando-a interativamente ao estendê-la a diferentes locus. De outra parte, temos à mão bases informacionais que ampliam as condições de individuação, na navegação hipertextual e na personalização de registros na rede.

    Ademais, a compressão do espaço faz com que a temporalidade se redimensione. No correr da liberação (parcial) de nossas atividades em relação aos limites e ciclos naturais, tendemos a vivenciar o tempo como produção sociocultural de maneira mais cabal (situação em que forma de contagem do tempo por tecnologias digitais é signo, quando interpõe leitura temporal com sinais não analógicos). Neste sentido, o argumento de Bauman (2001) é exemplar, quando afirma que o tempo (gasto) tende a deixar de ser a referência do esforço para se superar a distância, crescentemente dominada em razão dos avanços técnicos, incitando-nos à busca pela instantaneidade, conforme nossa experiência combina multiplicidade de opções/acessos e ausência de apego. De outra parte, porém, Melucci (2004) nos lembra que o tempo puntiforme representa também uma riqueza: reativar o horizonte da presença, em resistência, por exemplo, à hipertrofia do futuro como colonizador do presente. De uma forma ou outra, fica patente a produção de tensionamentos à experiência do tempo.

    Por fim, cabe referir as mudanças operadas no campo das discussões de gênero e sexualidade. As instabilidades instauradas pela inserção da mulher no mercado de trabalho (conforme demandas do capitalismo) ou, de outra parte, pelas reivindicações de movimentos feministas os quais tiveram influência nas composições familiares e nos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, além de constituir novas arenas de confronto político. O feminismo, além disso, deve ser considerado como uma das expressões do que se convencionou chamar novos movimentos sociais (reunindo lutas étnicas, pautas antibelicistas, demandas de reconhecimento de gays e lésbicas...), que trouxeram ao debate a ‘identidade social’ e a cotidianidade como temas e campo de ação e disputa, questionando a unidade da classe como categoria de mobilização preponderante, as noções de desenvolvimento que nos regem e as posições de gênero que naturalizamos.

    O conjunto de fatores resenhados acima serve para contextualizar a desestabilização de categorias da modernidade, que orientavam os processos de caracterização e significação que o termo identidade nomina reflexivamente. Sinaliza para a diversificação de bases mobilizatórias da mesma forma que para a produção de dinâmicas tensionadoras da capacidade de interpelação à pertença. Nos termos de Castells (1999), podemos aventar como resultante, segundo se consolida o arranjo dos fenômenos elencados, certo distanciamento entre identidades e papéis, como delimitações estruturalmente estabelecidas (trabalhador, mãe, sindicalista, etc.), certa autonomização de processos de identificação em relação à ação de instituições consolidadas.

    Num cenário de questionamento da pertença e visibilização do diverso, as identidades são questão patente. As contribuições de Hall (2001; 2012) terão lugar de destaque, então, ao afirmar a condição contingente e conflituosa da identificação tributária de sua relação com a diferença; as narrativas identitárias são denotadas por sua condição histórica e relacional, o que significa dizer que leituras essencialistas são criticadas em favor de uma interpretação da identidade como produção cultural circunstanciada¹².

    Na mesma perspectiva, citando Lacan, Woodward (2012) narra a produção da identidade a partir da falta primária vivenciada pelo indivíduo, quando percebe o Outro como ser separado, diferente de si. Então, no momento em que se dá a primeira apreensão subjetiva (para Lacan, na fase do espelho), inicia-se a busca de unidade, que, por sua vez, necessita de algo fora de si para consolidar-se a diferença. A partir daí, a identificação configura-se como esforço (infindável) de busca de unidade na relação com o Outro, efetivado desde sistemas culturais e simbólicos que nos constituem. Mais que assumir a totalidade das proposições lacanianas, a autora procura realçar argumentos pelo que entende ser a composição tensa e aberta das identidades.

    Para Hall (2012), as identidades seriam produzidas numa espécie de encontro, na articulação entre práticas discursivas (no sentido foucaultiano) que buscam nos constituir como sujeitos sociais e o processo de elaboração da subjetividade, em atenção à falta e ao desejo que a movem, suturando-a ao discurso e, ao mesmo tempo, instigando desencontro e potência de identificação outra¹³. Tal movimento estaria associado a um esforço narrativo que, apropriado de recursos históricos, culturais e linguísticos, mantém-nos em curso na elaboração significativa de um itinerário e de um conjunto de características (ainda que estas sejam mutáveis e descontínuas).

    Elas [identidades] têm tanto a ver com a invenção da tradição quanto com a própria tradição, a qual elas nos obrigam a ler não como uma incessante reiteração, mas como o mesmo que se transforma. Elas surgem da narrativização do eu, mas a natureza necessariamente ficcional desse processo não diminui de forma alguma sua eficácia discursiva, material ou política... (Hall, 2012, p. 109)

    Se com os interacionistas simbólicos podíamos conceber a identidade como integração entre individualidades e mundo público, como se operasse uma mediação interativa (e relativamente estável) entre o indivíduo e os papéis socialmente reconhecidos que este vem a conhecer/adotar, a perspectiva dos Estudos Culturais assinala que as estruturas simbólicas que ancoravam posicionamentos predominantes são deslocadas e atravessadas por pertencimentos outros. Mais além, resquícios de um sujeito centralmente racional, que interpretasse o teatro cotidiano desde uma interioridade essencial, são deixados de lado: o ‘sujeito’ é observado desde uma composição tensa, aberta e de identidades múltiplas, evocadas conforme diferentes contextos e relações de poder. Não só o campo político é adensado por uma série de vetores de embate (étnicos, de gênero, ambientalistas, etc.), conforme assinala Hall (2001), mas a própria identificação se constitui arena de disputa.

    2. Identidades e reflexividades

    Do cenário descrito e da perspectiva apresentada por Stuart Hall, gostaria de passar às provocações de Alberto Melucci. Neste caso, se a realidade esboçada antes pode ser assumida, a identificação não é analisada na relação com discursos sociais ou com o devir-outro da diferença (Silva, 2002). Pelo menos não como ênfases. Sob a proposição de um jogo do eu que construímos na atualidade, este autor muda o foco e se orientará a compreender como, em

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