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Cooperação, diversidade e criatividade: Transformações sociomateriais em territórios latino-americanos
Cooperação, diversidade e criatividade: Transformações sociomateriais em territórios latino-americanos
Cooperação, diversidade e criatividade: Transformações sociomateriais em territórios latino-americanos
E-book520 páginas6 horas

Cooperação, diversidade e criatividade: Transformações sociomateriais em territórios latino-americanos

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Sobre este e-book

Neste livro, o leitor vai se deparar com uma riqueza de casos de estudo, nos quais a sociomaterialidade ocupa lugar de destaque. Eles nos conduzem a olhar para os territórios para além de uma unidade administrativa ou uma escala geográfica, nos instigam a entendê-los como composições vitais que emergem das práticas dos atores em sua criatividade, que expande cotidianos e nos inspira a explorar a potencialidade de contra desenvolvimentos na América Latina.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de mai. de 2023
ISBN9788546221714
Cooperação, diversidade e criatividade: Transformações sociomateriais em territórios latino-americanos

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    Cooperação, diversidade e criatividade - Flávia Charão Marques

    APRESENTAÇÃO

    A publicação deste livro faz parte da evolução de uma agenda de trabalho que busca explorar novas potencialidades da pesquisa sociomaterial, favorecendo uma reflexão crítica sobre a mudança social. Os estudos de caso que compõem cada um dos capítulos registram e analisam diferentes propriedades emergentes de processos de cooperação, nos quais estão envolvidas a recomposição e a circulação de conhecimentos, práticas e materialidades.

    Esta publicação, junto com outras produções¹, foi desencadeada pelo projeto de pesquisa intitulado Cooperação, Criatividade e Sociobiodiversidade: uma questão de gênero, desenvolvido com recursos da chamada CNPq/Sescoop Nº 007/2018 (Linha 1 - Impactos econômicos e sociais do cooperativismo). Os editores reconhecem o fundamental apoio dessa chamada para os avanços teóricos, metodológicos, práticos e de formação de recursos humanos a partir dos trabalhos desenvolvidos.

    Também, distinguimos o apoio da Capes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Faculdade de Agronomia, através do Programa Institucional de Internacionalização (Print), por favorecer avanços teóricos e metodológicos que reverberam neste livro, e que foram desenvolvidos em estadia de pesquisa junto à Wageningen University & Research (Países Baixos), especialmente com os grupos Rural Sociology e Sociology of Development and Change, durante o ano de 2020.

    É importante anotar que o desenvolvimento do referido projeto trouxe para o Grupo de Pesquisa Inovação, Sociedade e Eco-Territorialidades (Grist), no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), a oportunidade de refletir sobre a cooperação de forma transversal às suas próprias diretrizes de trabalho, na direção do estabelecimento de potencialidades teórico-metodológicas que apontam para a superação do foco exclusivamente discursivo nos estudos do desenvolvimento. Dessa forma, os temas relacionados ao cooperativismo se beneficiaram de estudos e análises que entregam melhor visibilidade aos relacionamentos específicos entre práticas sociais e as materialidades, com especial atenção para a ontogênese de territórios e como se constitui o público na América Latina.

    A maioria dos autores é constituída por jovens pesquisadores que, em seus trabalhos de mestrado e doutorado, incorporaram a preocupação de abordar as problemáticas ligadas ao desenvolvimento, aceitando o desafio de escapar, simultaneamente, das análises tipo causa e efeito e da generalidade de modelos prescritivos de pesquisa. O livro traz uma abundância de evidências empíricas de experiências, práticas e contingências dos atores, que se atualizam em relação ao cuidado das formas de vida nos territórios, à manutenção da sociobiodiversidade com geração de renda e à ampliação de espaços de vida de mulheres rurais, de populações afrodescendentes e de povos originários, assim como de agricultores que habitam distintos territórios no Brasil, na Colômbia, na Bolívia e no México.

    Um propósito importante que assumimos ao elaborar esta publicação foi o de qualificar o debate sobre o cooperativismo com estudos críticos e atuais sobre questões cruciais, como a (re)existência política, a diminuição de desigualdades, as reconfigurações de modos de vida e a emancipação das mulheres. Essas situações incluem processos de exclusão e instabilidade gerados pelo comércio justo do café; resistência e existência de mulheres em sua experiência com a agroexportação de frutas; a precarização do empreendedorismo agroalimentar; alianças políticas de cooperação pela água; produção de inhame como cooperação e desejos de paz; mulheres e uma rede de cooperação sociomaterial no alcance de uma semiautonomia territorial; mulheres e cacau como identificação e cooperação no surgimento de um território; a participação da mandioca na criação de espaços de cooperação; a corporalização de palmeiras e mulheres na composição da vida territorial; ovelhas, lã e mulheres na atualização de um território.²

    As diversidades social, biológica e meio ambiental se apresentaram como diferenciais fundamentais para entender a organização das trajetórias de cooperação territorializadas, tornando importante evidenciar as configurações sociomateriais dos diferentes territórios para descrever e analisar as múltiplas formas de cooperação, que se apresentam como parte da experiência dos atores sob circunstâncias de mudanças socioambientais significativas.

    Para ampliar a noção de cooperação, realizamos análises situacionais considerando dez estudos de caso [estendido], com a intenção de visibilizar relacionamentos do local para o local. Em outras palavras, lançamos mão de uma metodologia transindutiva, de maneira a gerar perspectivas e analogias a partir do cotidiano da vida para propor a cooperação territorial. Isso corresponde a direcionar os holofotes sobre formas inovadoras de interações sociomateriais, reconhecendo a relevância das práticas dos atores, de processos de individuação e de individualização reflexiva como forma de abordar processos transindividuais, que desenvolvem formas diversas e semiautônomas de organização.

    O leitor encontrará, em cada um dos capítulos, diferentes aspectos da orientação metodológica enfatizados pelos autores, sendo que alguns dão mais importância ao processo de individuação, outros à individualização reflexiva e, ainda, há os mais dedicados à organização dos atores no território. Porém, em seu conjunto, complementam-se para constituir uma aproximação à cooperação territorial. Nossa contribuição, no sentido de esclarecer tal aproximação, está delineada no Capítulo 1, como precedente conceitual aos casos estudados nos diferentes territórios; e, no Capítulo 12, como forma de conclusão deste trabalho coletivo.

    A expectativa é de que esta renovação analítica e conceitual, desenvolvida a partir de estudos empíricos, possa inspirar novas pesquisas, gerar debates e alimentar diálogos sobre a relevância do cooperativismo para o desenvolvimento territorial, reverberando sobre cursos de ação política com reflexos sobre a sociomaterialidade dos modos de vida em território latino-americanos.

    Flávia Charão-Marques e Alberto Arce

    Porto Alegre, setembro de 2022.


    Notas

    1. Ver: https://bit.ly/3WvWdMk. Acesso em: 13 dez. 2022.

    2. Todos os estudos, sobre os quais estão apoiados os capítulos, valeram-se de conversas e entrevistas registradas durante as pesquisas de campo. Neste sentido, nos trechos que reproduzem as falas dos nossos interlocutores, buscamos respeitar as formas próprias de expressão e seus modos de falar.

    CAPÍTULO 1

    A SOCIOMATERIALIDADE DA COOPERAÇÃO: ATORES, PRÁTICAS E TERRITÓRIOS

    Flávia Charão-Marques

    Alberto Arce

    A orientação sociomaterial surge de algumas apreciações conceituais, e a primeira delas se refere a como os indivíduos se constituem em atores que compõem e recompõem reflexivamente seus territórios, atualizando recursivamente suas habilidades e destrezas, isto é, suas práticas. Uma segunda apreciação recai sobre as práticas, que são ações e performances centrais para a constituição dos atores e de suas orientações, e surgem da interação dos indivíduos com a concretude (bio)física das coisas que existem e conformam o meio ambiente territorial.

    As realidades situadas estão plenas de práticas emergentes, com as quais contribuem as diferentes experiências dos atores. Dessa forma, as transformações territoriais são, em parte, criações dos próprios atores, seja a partir de suas interações com múltiplas materialidades, ou de suas interfaces com intervenções das políticas institucionais, da influência do mercado e dos setores não governamentais. Dessas interações e interfaces surgem emaranhados de relações que nos desafiam a ampliar a noção de cooperação, de maneira a incluir coletivos transindividuais que desenvolvem formas diversas e semiautônomas de organização que, por sua vez, participam do surgimento, atualização ou fortalecimento de diferentes territórios.¹ O esforço de elaboração deste livro passa, então, por estender o olhar para as formas inovadoras de relações sociomateriais que emergem das práticas dos atores e que nos instigam a descrever, analisar e reconhecer a relevância da cooperação territorial.

    Dar margem à potencialidade e à visibilidade de formas criativas e situadas de cooperação territorial contribui para suplantar a noção de que o desenvolvimento está apenas vinculado a processos de superação da escassez econômica. Contemporaneamente, superar a escassez parece cada vez mais transformar-se em um agir racionalmente para encontrar e dominar novos recursos (e.g., sociobiodiversidade ou o trabalho de mulheres rurais), gerando eventos situados nos quais estão envolvidos os atores e as materialidades que os cercam, de forma a produzir valor que beneficie ao capital. Muitas vezes, isso implica em conflitos territoriais, mas também em negociações e no surgimento de alianças, novos arranjos organizacionais, e um sem-fim de compostos sociomateriais com reverberação sobre diferentes modos de vida nos territórios.

    A diversidade das experiências de cooperação se relaciona com as práticas dos atores como parte das contingências territoriais. Tais experiências podem ser apreendidas como campos de força e de ação (arenas de conflitos e negociação, interfaces, interações, criaturizações, redes); tudo isso como parte de rizomas² organizacionais de sociomaterialidade, que são manifestações (bio)físicas das coisas que são compostas, decompostas e recompostas pelos atores com suas ações. Tais performances constantemente desafiam os mitos da matéria como não maleável ou estática. Em outras palavras, os atores estão diretamente envolvidos em desdobramentos no tempo e espaço, em expansões e contrações territoriais, afastando-nos de um estado permanente que pode ser considerado estável ou normal.

    Tomar a materialidade como parte ativa dos processos que envolvem a cooperação nos permite uma aproximação ao cooperativismo a partir de uma visão diferenciada e de sua potencialidade transformativa, que escapa de uma proposta de homogeneização organizacional e não encapsula exclusivamente as experiências em relações técnicas e/ou de gestão. Indo além dessa reificação administrativa do cooperativismo, apresentamos estudos com foco nas diversidades, heterogeneidades e potencialidades da cooperação territorial. Essa orientação, como se verá nos estudos de caso, inclui, ao mesmo tempo que extravasa, a noção abstrata de cooperativismo e de cooperativa, remetendo-nos a reconectar esses conceitos com a existência dos atores e do mundo material com o qual interagem, criando múltiplas relações de cooperação.

    Aproximações teórico-metodológicas para uma abordagem sociomaterial

    A matéria, os materiais, a materialidade e as práticas de atores humanos e não humanos compõem, decompõem e recompõem territórios. Esse fluxo constante é parte de processos que materializam o conhecimento, e pode ser percebido em um estilo ou forma de ver, sentir, tocar, cheirar, escutar, degustar ou de habitar o mundo. É, também, por meio desse fluxo que os afetos, a agência e os processos de ensamblagens³ organizam e interconectam as sensações e os momentos somáticos das corporalidades. Com isso, se assume como fundamental considerar a preponderância da experiência vivida, das práticas e das ações dos indivíduos como aquilo que situa e permite a descrição das interações sociomateriais. Tais interações se apresentam como uma fatualidade multidimensional que excede e transborda o cognitivo individual⁴, expressando-se como relações de um estado de realidade de entidades multifacéticas e transindividuais que podem (ou não) impulsionar processos de criaturização e de atualização de interações sociomateriais nos territórios.

    As criaturas, como entidades sociomateriais mistas que conformam territórios, emergem da circulação do conhecimento, das práticas dos atores e das interações com (e entre) os materiais existentes. Assim, sugerimos que o processo de criaturização, sendo algo que existe, surge como um constante fluxo de interações e experiências mentais e sociomateriais, que questiona e é (quase) independente das identidades e categorias existentes. A contingência provoca momentos e/ou espaços de heteronomia, dos quais emerge a criaturização como força que libera a potencialidade da criatividade e da cooperação entre atores situados, de forma a obter o que ainda não se conseguiu materializar como parte de suas existências territoriais (por exemplo, uma maior equidade de gênero na tomada de decisões sobre o desenvolvimento territorial).

    Nesse sentido, a criaturização é a corporalização situada das interações sociomateriais, que podem ser entendidas como os bens ativos da sociomaterialidade de um território.⁵ Essas são expressões de valorização que compõem e tornam visível a importância das interações e intercâmbios, organizando a produção, a circulação e o consumo das corporalidades territoriais. Tais corporalidades contribuem para a identificação de modos de vida, diferente de um escrutínio somente das economias de exploração de recursos naturais e humanos que favorecem a acumulação de riqueza e a reprodução de capitais financeiro, humano, social, político, natural etc.

    A interface entre os atores, e entre estes e os objetos, faze emergir definições, ideias e representações discursivas e/ou esquemáticas da realidade do mundo. Essas são explicações cognitivas – imaginadas – sobre o mundo que, no entanto, não são o mundo em si, em suas corporalidades sociomateriais maleáveis e ativas. Dessa forma, iremos encontrar alguns objetos que resistem, e outros que aceitam as intervenções cognitivas e práticas dos atores em termos de seu conhecimento e reconhecimento.

    O ponto chave é considerar que os encontros (bio)físicos geram a possibilidade de estabelecer uma crítica às corporalidades sociomateriais do mundo, questionando a totalidade e a unificação sistêmica (fechada ou aberta) para potencializar a divisibilidade, o complementar, o suplementar e as recomposições do ser múltiplo,⁶ levando a reconceitualizações e a novas formas de observar, sentir, descrever e narrar, que não seriam possíveis mantendo-se as identidades estáticas e as categorias imutáveis. Dar importância à materialidade não é colocá-la em oposição ao cognitivo. Mais que isso, trata-se de criar a possibilidade de identificar realidades diferentes, vitalidades emergentes e descobrir a potencialidade das contingências em propiciar mudanças – atualizações – em práticas sociomateriais, com as quais contribuem as alianças entre atores humanos e não humanos na direção de transformar os modos de vida territoriais.

    A análise detalhada e aprofundada de relações sociomateriais de competição, parasitismo, simbiose, solidariedade e cooperação transborda o cognitivo individual, gerando uma visão crítica transindividual que, ao mobilizar entidades humanas e não humanas, pode promover mudanças cognitivas e performáticas (ações) importantes, por exemplo, afastando-nos de determinismos do tipo causa e efeito, bem como da superioridade do sujeito sobre o objeto, orientando-nos a descrever e analisar as relações como mesclas que situam a individualidade isolada, criando a possibilidade para uma sociabilidade compartilhada pelos atores na composição de seus modos de vida.

    Do ator social às materialidades: alguns antecedentes e propostas

    Essa orientação tem seus antecedentes na antropologia social da Escola de Manchester (Inglaterra), nos trabalhos de Van Velsen (1967), Gluckman (1958; 1964), Mitchel (1956; 1969; 1973) e Turner (1968), que, ao abordar o processo de descolonização na África, começam a propor uma sociologia das transformações sociopolíticas e da potencialidade das inovações (Long, 1968). Nessa proposta, é a materialidade dos eventos – como a inauguração de uma ponte – que permite uma etnografia dos fatos situados e uma aproximação a valores que, ao serem descritos e não assumidos previamente, informam acerca da desigualdade racial, da importância da participação política, da introdução de novos conhecimentos, da relação entre grupos com diferentes identidades e da alocação de recursos econômicos em processos histórico-políticos de descolonização.

    Isso leva Long (1977) a incursionar por uma nascente sociologia do desenvolvimento rural, na qual o indivíduo, a desigualdade, o subdesenvolvimento, o Estado e suas políticas (intervenção) não podem reduzir-se conceitualmente a uma universalização abstrata para conformar uma epistemologia no campo do desenvolvimento. Posteriormente, através de estudos sobre o desenvolvimento regional no Peru, Long estuda a importância das associações regionais na pequena atividade empresarial familiar (1973; 1977; 1979). Long e Roberts (1979; 1984) culminam esse trabalho estudando a cooperação e a expansão capitalista dentro de uma região influenciada pela mineração, pelo campesinato e pelo empreendedorismo familiar.

    Essa sociologia/antropologia do desenvolvimento rural continua na Universidade de Wageningen (Holanda), com a incorporação do conhecimento local como agência e ação frente às intervenções do Estado e das políticas públicas com seus projetos e programas (Arce, 1984; 1985; 1986; 1993; Arce; Long, 1988; Long; Ploeg, 1989; Long; Long, 1992). Tal orientação passa a concentrar-se nos encontros ou interfaces de conhecimentos que ocorrem entre especialistas, técnicos, camponeses e pequenos proprietários em espaços rurais onde se implementam programas e projetos de desenvolvimento (Arce, 1987; Long, 1989).

    Arce e Long (2000), ao trabalhar com os conceitos de contratendência, contradesenvolvimento e contratrabalho, introduzem a potencialidade da exploração da sociomaterialidade como parte relevante das diversas experiências do desenvolvimento. Essa orientação na direção de uma consequente aproximação do desenvolvimento, das materialidades e do ator social em suas interações territoriais se ampliou com estudos na América Latina, em trabalhos como Sherwood et al. (2013); Umans e Arce (2014); Blanco, Arce e Fisher (2015); Sherwood, Arce e Paredes (2017).

    Arce e Charão-Marques (2021), mais recentemente, propõem que aproximações às transformações vividas pelos atores, em territórios latino-americanos, é distintiva e instrutiva. Elas provocam a atualização de perspectivas sobre os atores e sua agência, privilegiando o foco nas práticas sociomateriais.⁸ A proposta de reposicionamento dos atores como humanos e não humanos, e da agência como uma capacidade e habilidade, extrapola o cognitivo, e leva a uma aproximação às corporalidades das sociomaterialidades que participam dos territórios. Assim, são as sociomaterialidades que trazem à tona a diversidade de modos contemporâneos de existência e o reconhecimento de como emerge sua valorização política nos territórios, especialmente, no que se refere às performances, sempre ligadas ao rendimento, ao desempenho, à operacionalidade e ao funcionamento do trabalho cooperativo e de outras práticas situadas em processos de contradesenvolvimento.

    Parece-nos oportuno, aqui, atualizar o contradesenvolvimento como a possibilidade de extravasar o desenvolvimento (territorial) para além do exclusivo aumento da produção, do consumo e da exploração dos recursos naturais e do trabalho; assim como atualizar a noção de trabalho cooperativo a partir de uma nova dimensão, a afetiva.

    O contradesenvolvimento rompe com a expectativa de que um aumento de renda em um espaço de existência é a potencialidade única do desenvolvimento propiciado pela modernização. Quando o desenvolvimento começa a relacionar-se com a orientação dos atores e suas interações com as materialidades territoriais, se torna visível que é um processo que vai além da economia e da política, dado que as desigualdades sociomateriais dos territórios são sentidas na constante precarização e deterioração das formas e modos de vida⁹, das relações sociais, no esgotamento do meio ambiente e das instituições. Esses efeitos negativos são parte constituinte do desenvolvimento e, ainda que gerem conflitos, deslocamento e despojo de populações, é possível atualizar o desenvolvimento territorial pelo conceito de contradesenvolvimento. Assim, a partir das interações de atores e materialidades, se visualiza o que emerge na forma de conhecimentos, práticas, organização e inovação para resolver problemas vitais.

    As maneiras pelas quais surgem as sociomaterialidades de um território são complexas e particulares. O contradesenvolvimento, ao não ser um conceito que resulta de projeções de cálculo exclusivamente racional, abre a observação e a análise ao indeterminado da lógica da contingência e da ambiguidade das práticas (situadas). Isso nos permite identificar as particularidades da existência territorial e as margens de manobra nos interstícios dos processos de desenvolvimento.

    Esse foco do contradesenvolvimento, que entende o desenvolvimento como algo além do êxito, fracasso, subordinação ou resistência, é uma orientação acadêmica que permite entender o desenvolvimento territorial como uma situação ou um evento que está aberto à experiência dos atores em seus esforços de reversão de realidades negativas produzidas pelo desenvolvimento; ainda que isto signifique reconhecer que não existe o desenvolvimento perfeito. A experimentação é a marca do contradesenvolvimento, sendo cruciais as interações entre atores sociais e as materialidades, que fazem surgir uma multiplicidade de agenciamentos e de criaturas. As sociomaterialidades resultantes assumem formas muito diferentes dos objetivos de planos e programas das instituições, das políticas públicas e das utopias discursivas, muito embora esses elementos também estejam presentes nas ensamblagens territoriais emergentes.

    As pessoas se organizam de forma criativa (e afetiva) por meio das variadas práticas e se orientam por motivações objetivas e pragmáticas (ver Schatzki et al., 2001). Entretanto, as experiências materializadas nos territórios também se referem a interações e relações afetivamente identificáveis, como o cuidado. Sendo assim, convém ter presentes as possíveis diferenças entre o trabalho entendido como ação que termina unicamente com a geração de um produto, e como ações que a condição humana exige com o propósito de garantir existências, de satisfazer necessidades vitais e de continuidade social em um dado lugar.¹⁰ Isso equivale a dizer que os atores, ao cooperarem entre si, não necessariamente reproduzem formas de trabalho ligadas à extração de excedente e acumulação baseada no mercado (ver Hardt, 1999). O trabalho cooperativo é uma oposição às relações do estado nacional e do mercado, que tendem a reduzir todas as interações sociomateriais a relações de intercâmbio comercial, como se nossas relações com o território, com a noção de sociedade e, inclusive, com nossa visão cosmológica, pudessem ser imaginadas e sonhadas em termos de transações mercantis, contratos de negócios e/ou empreendedorismos do imaginário de um capitalismo populista.

    O trabalho cooperativo necessita ser rastreado territorialmente para distingui-lo de outras formas de trabalho, o industrial manufatureiro ou o integrado agroindustrial, por exemplo. Isso nos coloca certos desafios etnográficos, sendo que um deles é apresentar, em estudos de caso implicados por diferentes contingências, como o trabalho potencialmente gera outros relacionamentos que, mesmo sem deixar de lado a produção, o comércio e o consumo, mobilizam emoção e afeto (ver Sherwood et al., 2018). Tal fato nos leva a sugerir que o trabalho cooperativo é uma relação territorialmente específica e que, constantemente, emerge das contingências territoriais particulares, a partir das quais os atores humanos e não humanos fazem surgir a potencialidade da igualdade e das diferenças. É fundamental ressaltar que esses atores, por serem diferentes entre si, fazem surgir a potencialidade da igualdade, permitindo ao trabalho cooperativo dar corporalidade à sociomaterialidade de um território.

    Um propósito importante que estamos nos colocando é o de qualificar o debate sobre questões cruciais de como as práticas dos atores contribuem ou não para a diminuição de desigualdades, para a emancipação das mulheres, para a visibilidade de certos grupos sociais e para a composição da alteridade em suas formas de vida. Essas composições sociomateriais, geralmente, implicam em uma distribuição ou redistribuição da agência entre os diversos atores territoriais, suas práticas, performances e o trabalho cooperativo. A expectativa é de que uma renovação analítica e conceitual possa reverberar sobre propostas de políticas públicas com reflexos sobre as limitações do mercado. Por sua vez, o mercado, controlado por grupos de poder corporativos ou cooperativos, não permite, dificulta, ou mesmo aniquila processos inclusivos e democráticos em um dado território.

    Estudar empiricamente as práticas e as alianças sociomateriais permite apreciar criticamente as modificações nas formas de conhecer a potencialidade dos diferentes modos de vida. O desafio está, então, em integrar o conhecimento às narrativas e práticas existentes, seja para reproduzir ou modificar as teorias que pretendem explicar o mundo. As teorias, como registro das interfaces do cognitivo com a sociomaterialidade do mundo, são importantes. Todavia, não são nada além de reações temporárias e relativamente ordenadas de um mundo problemático em constante transformação, e que alguns representam como caótico (Guattari, 1996 [1992]). Essas teorias não podem legislar sobre o que é ou não importante para os atores, pois a experiência sociomaterial para recompor seus mundos de vida é mais importante como contingência vital do que as teorias existentes (ver Reed, 1996). Essa é a magia de existir no mundo.

    Aproximações à cooperação

    A literatura relacionada ao cooperativismo é abundante e tem várias vertentes e influências, desde seus primórdios, com os socialistas utópicos Robert Owen, Saint-Simon e Charles Fourier, ou os anarquistas Pierre-Joseph Proudhon e Piotr Kropotkin; passando pelos críticos antissocialistas, Léon Walras e Maffeo Pantaleoni. O interessante é que a cooperação (a ação de cooperar) figura como importante em qualquer dessas vertentes fundacionais, ainda que, para Owen, isso signifique negar o individualismo para fazer frente à empresa capitalista pelo coletivismo, e que, para Walras, a adesão às cooperativas seja o primeiro passo para os indivíduos das classes populares (os cooperados) participarem do capital, sendo o crédito às organizações cooperativas o principal antídoto às ameaças revolucionárias da classe trabalhadora (Hérbert, 1988; Paula, 2002; Tedesco, 2018).

    No longo trajeto do cooperativismo, iniciado com as caixas de crédito na Alemanha, ainda no século XIX, ele adquire um significativo poderio econômico, assumindo disputas de mercados com grandes conglomerados capitalistas, ao mesmo tempo em que se coloca como parte de alternativas às formas de exploração do trabalho e de organização da produção e consumo.¹¹

    O cooperativismo como forma organizacional institucionalizada¹² normalmente está voltado para a atuação no mundo econômico-produtivo, assumindo diferentes esquemas e funções, se estendendo para diversas áreas de atuação (produção de bens e serviços; crédito; agricultura; mineração; saúde, educação, dentre outras). Em geral, está associado a princípios e valores que sublinham a mutualidade e a coletividade, bem como, a participação, a equidade e a sustentabilidade; sendo central o evocar de uma ideia de cooperação que, com alguma frequência, aparece como algo natural no estabelecimento das relações e práticas.

    Entretanto, Rios (2009) critica posições que tomam cooperação como um conceito dado e abstrato, sugerindo que se trata de uma prática, e que, embora as palavras cooperação e cooperativismo tenham uma mesma raiz, isso não corresponde a uma espécie de vocação natural. Assim, as cooperativas, como organização institucionalizada, não são uma expressão direta dessa suposta qualidade humana universal. O autor, ainda, sugere que é muito comum confundir um nível mínimo de convergência objetiva, coroado por uma superestrutura legal cooperativa, com um processo social de cooperação (Rios, 2009, p. 6).

    Ideias de cooperação e de ajuda mútua também estão nos fundamentos da economia social, instaurando uma espécie de solidarismo pelo qual seria possível a abolição do capitalismo e do proletariado sem sacrificar a propriedade privada ou outras liberdades. Essa linha se consolida com Charles Gide, na França, ainda no final do século XIX. Contemporaneamente, a economia social se posiciona entre o Estado e o mercado, de forma a atuar no sentido da concretização das ações que o Estado não pretende resolver, ou naquilo em que a economia privada não tem interesse de lucro. Em que pese certo caráter normativo das definições e afirmações de princípios e as expressões das variantes que vão de socialistas a liberais, é importante sublinhar que a cooperação figura como um princípio central, capaz de orientar transformações sociais que incluem os pluralismos político e cultural que caracterizam a economia social desde os primórdios (ver Caeiro, 2008).

    Veronese et al. (2017) indicam que a economia social europeia é comumente citada como uma das origens da Economia Solidária atual, na medida em que se opôs às tendências de redução da economia capitalista ao princípio do mercado e da acumulação privada. Por outro lado, os autores lembram que, na América Latina, podemos encontrar antecedentes e influências de práticas de solidarismo em formas autóctones pré-colombianas e em sistemas coletivos adotados por escravos libertos.¹³ Na atualidade latino-americana, um estudo realizado pelo Grupo EcoSol, coordenado por Gaiger (2014), aponta que existem associações, cooperativas, grupos informais, empresas de autogestão, iniciativas locais nas áreas de serviços sociais, finanças solidárias e comércio justo, que compõem um leque de iniciativas que almejam gerar trabalho e renda com maior qualidade de vida e reconhecimento da cidadania.

    Gaiger (2020) demonstra que os chamados empreendimentos solidários estimulam o surgimento de espaços de mobilização social e política, que não refletem apenas uma atitude altruísta e, muito menos, diletante, mas constitui uma via efetiva de resolução de problemas concretos. O autor evidencia que, em tempos recentes, se ampliam as causas e frentes de atuação relacionadas, principalmente, aquelas dos povos tradicionais, dos artesãos e das mulheres. Segundo Ferrarini et al. (2018), na base da Economia Solidária está a ideia de uma socialização dos recursos produtivos e a adoção de princípios de equidade, o que entrega primazia à solidariedade que, segundo Laville e Gaiger (2009, p. 162), é promovida entre os membros dessas iniciativas ao estabelecerem entre si um vínculo social de reciprocidade como fundamento de suas relações de cooperação.

    A reciprocidade aparece reiteradas vezes na literatura sobre Economia Solidária como um princípio fundador de projetos (empreendimentos, iniciativas) coletivos baseados na solidariedade, que aparece como um vetor importante de transformações sociais na direção de maior justiça e redistribuição. Considerando que a reciprocidade nem sempre é uma categoria positiva (pode ser coercitiva, por exemplo), há uma convicção de que, se ela for voluntariamente instituída, estará garantido o caráter igualitário e democrático dos processos (Ferrarini et al., 2018). Não cabe, aqui, aprofundar o debate sobre a reciprocidade em si, mas sim, anotar que, embora estejamos de acordo com a noção de que a reciprocidade na vida cotidiana pode provocar a criação de alianças (Gaiger, 2016) e vínculos de cooperação (Laville; Gaiger, 2009), é importante desfazer-nos de algumas idealizações ligadas a uma espécie de dever ser de tom normativo para gerar aproximações à vida territorial e ao seu potencial devir.

    O esforço, fundamentalmente, é o de afastar a cooperação de um pensamento abstrato que circunscreve esse processo social a um esquema descorporalizado, desvinculado das continuidades e descontinuidades das ações e performances situadas dos atores. De igual maneira, temos a preocupação em desviar-nos da visão equivocada de desenvolvimento da cooperação como uma equiparação a um estilo de gestão do trabalho e/ou da produção. Nesse sentido, nossa posição é de que tanto uma perspectiva puramente cognitiva (abstrata), como uma abordagem de ajuste de esquemas organizacionais (exclusivamente instrumental) tendem a ocultar a potencialidade, a criatividade e a espontaneidade humana. Esse ocultamento deriva, por um lado, de uma hipotética estabilidade da reprodução econômica e social fornecida por uma administração racional e eficiente dos recursos; e, por outro, de uma suposta vantagem em assumir identidades forjadas por uma homogeneidade que essencializa a caracterização de coletivos humanos.

    Superar limitações no reconhecimento das possibilidades de novas relações entre as pessoas e seu entorno material é o potencial que podemos visibilizar ao evidenciar formas e práticas situadas de cooperação, que instauram novos campos de ação nos territórios, e, com isso, a emergência de novos valores de teor político e existencial. Portanto, é necessário trazer à tona a combinação e interação de muitas práticas – que estamos propondo como sociomateriais. À medida que consideramos a materialidade do território como parte ativa dos processos de cooperação territorial, vai ficando evidente a vitalidade que surge da adaptação, da seletividade, da produtividade e da corporalização da sociomaterialidade.

    Diversas e criativas expressões territoriais de processos de cooperação apontam para a ampliação de potencialidades para além do econômico. Com essa amplificação, interações na forma de redes, grupos, movimentos, diferentes formas de associação e alianças emergem em defesa da paisagem, da produtividade, do consumo, de modos de vida e do conhecimento local, rompendo com as formas isoladas de existência. O território como diversas formas de cooperação, sem subtrair os conflitos e as contradições, entrega relevância e nos faz colocar atenção aos casos que se apresentam neste livro.

    Diversidade e criatividade: os estudos de caso que dão vida a este livro

    Considerando que a diversidade social e biofísica é um elemento fundamental para as trajetórias de cooperação territorializadas, se tornou importante potencializar e evidenciar configurações sociomateriais de diferentes territórios, formas e modos de vida, identificando suas atualizações. Seguindo esses traçados, os estudos de caso (Figura 1) que inspiram as contribuições dos autores partem do reconhecimento de múltiplas formas de cooperação. Tais colaborações se apresentam como parte da experiência das mulheres e outros atores sob circunstâncias de mudanças produtivas, de consumo e socioambientais significativas.

    Figura 1. Localização relativa dos estudos de caso na América Latina

    Fonte: Elaborada pelos autores, set./2022.

    É uma indagação relevante para este livro como processos de cooperação participam da vida sociomaterial de um território, sem desconsiderar que ela é resultante das relações entre contingências e conflitos. Elucidar processos identificados com a cooperação, também, passa por reconhecer e entender como forças desestabilizadoras do território exercem influências sobres eles, ora incitando dinâmicas de aproximação, ora desencadeando eventos desagregadores. Esses movimentos de aproximação e afastamento, de colaboração e de individualismo provocam o surgimento de compostos de diferentes atores, entidades e materialidades. Tais compostos constituem um entrelaçado de objetos, interesses, ações e crenças, que acabam por fazer surgir os próprios territórios de cooperação.

    Nosso primeiro caso trata do comércio justo na Colômbia, onde a larga trajetória da poderosa Confederação do Café e suas cooperativas regionais, como a Cooperativa Regional de Caldas, entenderam o Comércio Justo como uma oportunidade para que as comunidades camponesas e indígenas ingressassem na produção de café especial. Isso aconteceu quando chegou à região a Fundação Max Havelaar, instituição holandesa que encontrou comunidades indígenas em um estado de vulnerabilidade frente às flutuações de preços do café no mercado internacional. Esse encontro estabeleceu um curso de ação de cooperação que levou à união comunitária indígena-camponesa na formação de uma associação (Asprocafé). O capítulo analisa as diferentes interpretações que levaram a um conflito entre a cooperativa regional, que buscou o aumento do volume de produção do café especial, e o conselho indígena, que, em conjunto com Max Havelaar, inicialmente entendia o comércio justo como parte de uma estratégia de resistência global frente às injustiças do comércio internacional e às desigualdades socioeconômicas em Caldas. Esse processo gerou instabilidade e terminou por excluir o resguardo indígena da aliança pelo Comércio Justo, reestabelecendo a hierarquia tradicional, que controla a comercialização, administração, logística e financiamento para qualquer participação nos mercados de exportação.

    O interesse e os valores do mercado internacional também afetam a experiência do segundo caso tratado no livro. Tal caso se desenrola no Vale do São Francisco, cujos investimentos do Estado brasileiro transformaram essa região em um polo de produção de frutas. A partir da década de 1990, o vale desse importante rio passou a ser caracterizado por uma agricultura empresarial, comprometida com as cadeias internacionais de comercialização de frutas. As mulheres trabalhadoras rurais se tornaram as mais envolvidas com certas funções na fruticultura, nas quais a informalidade e os contratos temporários de trabalho são uma constante. O capítulo vai explorar essas situações, que acabam levando as mulheres a encontrar formas mais colaborativas e saudáveis de viver, especialmente pela entrada na produção e inserção na comercialização de alimentos, ações que surgem associadas à reforma agrária e

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