"Todos na produção"
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"Todos na produção" - Luana Zambiazzi dos Santos
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Revisão: Márcia Santos
Capa: Wendel de Almeida
Projeto Gráfico: Bruno Balota
Edição em Versão Impressa: 2017
Edição em Versão Digital: 2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Conselho Editorial
Profa. Dra. Andrea Domingues (UNIVAS/MG) (Lattes)
Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi (FATEC-SP) (Lattes)
Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna (UNESP/ASSIS/SP) (Lattes)
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Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes (UNISO/SP) (Lattes)
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Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt (UNIPAMPA/RS) (Lattes)
Prof. Dr. Eraldo Leme Batista (UNIOESTE-PR) (Lattes)
Prof. Dr. Antonio Carlos Giuliani (UNIMEP-Piracicaba-SP) (Lattes)
Paco Editorial
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AGRADECIMENTOS
Compatível com o título deste livro, a pesquisa que o originou envolveu tantas entidades e afetos que, em muitos momentos, parecia colocar todos na produção. Desde sua versão como tese de doutorado até o lançamento como livro, estes escritos, sons e imagens foram mobilizados pelo acionamento de minha rede familiar, de amigos, das vivências do trabalho de campo, além das interlocuções próprias da vida acadêmica e profissional, especialmente na minha alma mater, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e meu local de trabalho, a Universidade Federal do Pampa. Por isso, meus agradecimentos:
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por ter acolhido esta cohabeira por dez anos ininterrumptos, motivando a busca por uma educação de qualidade e justa. Ao Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS, pois, através de seus professores, servidores técnicos e bolsistas, propiciou um ambiente de profícua interlocução acadêmica, além de me indicar à bolsa de estudos do CNPq, que financiou todo o curso de doutorado e a da Capes, durante o estágio-sanduíche na Austrália. Mais recentemente, devo também ao PPGMus/UFRGS a indicação para a Edição Especial do Prêmio de Produção Crítica da Funarte, o que tornou esta publicação possível.
Aos amigos e colegas do GEM (Grupo de Estudos Musicais – GEM/UFRGS), mais que especialmente à sua coordenadora, minha orientadora de mestrado e doutorado, Profa. Dra. Maria Elizabeth Lucas. Muito obrigada, profe, por ter me permitido desfrutar do seu exemplo intelectual e criatividade, suas experiências transnacionais, da convivência durante projetos colaborativos do GEM e, muito especialmente, por ter me ensinado tanto, deixando marcas vívidas e significativas na minha formação – permanentes e presentes no meu cotidiano como professora universitária. À colega gemista Maria Andrea Soares, pela motivação para tornar a tese em livro e pelas leituras a este texto e valiosas contribuições.
Aos professores e colegas doutorandos do MMCCS da Macquarie University, que me acolheram tão gentilmente nas terras australianas, durante o período sanduíche. Meus agradecimentos especiais ao Prof. Dr. Denis Crowdy, meu tutor de sanduíche, pelas pertinentes sugestões etnomusicológicas que certamente contribuem para esta obra; ao Prof. Dr. John Scannel, por seu exemplo de inspiração e paciência ao me iniciar nos estudos deleuzianos; aos professores doutores Tony Lewis e Andrew Alter, por me iniciarem em práticas musicais tão inspiradoras (de música de Papua Nova Guiné ao grupo de gamelão); à Rachel Gunn, por sua acolhida e amizade.
Às professoras doutoras Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha. Por terem me acolhido tão gentilmente – e com tanta paciência – em suas disciplinas no PPGAS/UFRGS, além de propriciarem tantos aprendizados. Às professoras doutoras Cornelia Eckert e Jusamara Souza agradeço também as valiosas contribuições a esta obra, quando compuseram a banca do exame de qualificação da tese que a originou.
À banca que fez parte da defesa da referida tese: Prof. Dr. Samuel Araújo, Profa. Dra. Cornélia Eckert e Prof. Dr. Leonardo Winter, pelas leituras atentas e generosidade ao partilharem de suas impressões, comentários e sugestões na defesa.
Já em contexto unipampeano: à Lúcia Teixeira, por compartilhar de tantos insights sobre as teses (minha e sua) e pela parceria; à Adriana Bozzetto, pela sensibilidade e compreensão enquanto coordenadora do Curso de Música quando da minha chegada, em plena escrita da tese, na Universidade Federal do Pampa; a André Reck, pela paciência e parceria na coordenação de curso, compartilhada comigo, como substituto, já em 2017; aos licenciandos bolsistas Antoniel Lopes e Paula Pedrotti e aos já graduados Niandra Lacerda e Nilton Vargas, por motivarem propostas etnomusicológicas que dialoguem diretamente com suas formações, como educadores musicais.
Aos meus colaboradores de pesquisa, cohabeiros e cohabeiras, que generosamente aceitaram a proposta desta obra. Agradeço a acolhida e receptividade na escola de samba Imperatriz Leopoldense e na fanfarra da escola pública estadual da Cohab, Haydée Mello Rostirolla. Sou imensamente grata ao grupo Mesclã, especialmente a Curumi, Dédi, Preto-Fumaça, Jonathan Teilor, e Maurício, pela confiança ao compartilharem comigo suas perspectivas, seus sons, suas músicas; à Daniela Lopes, por sua acolhida que se tornou amizade; ao Rudi, por sua receptividade e engajamento com a pesquisa.
À minha família e aos meus amigos, que acompanharam minhas ausências, silêncios, crises, pela paciência e carinho. À Fabiane Behling Luckow, por suas palavras encorajadoras, sua presença sempre tão motivadora e por seus comentários a partir da leitura preliminar desta obra. Já em Bagé, a Alessandro Mattos e Letícia Cantiliano, pelas good vibes; a Tulon Fontoura e Aline Reinhardt, pela amizade; a Aline Reinhardt agradeço também o seu olhar atento, quando aceitou realizar a leitura desta obra em uma primeira versão, e pelos seus comentários. À minha sogra e ao meu sogro, agradeço imensamente a paciência, carinho e compreensão com todas as fases/projetos que atravessaram minha trajetória, especialmente o acolhimento que lhes é tão especial. Aos meus pais, não posso deixar de reconhecer o quanto minha vida acadêmica deve ao incentivo e importância que sempre atribuíram aos estudos, impulsionando-me nos meus projetos de vida profissional.
A meu marido, Fabrício, faltam-me palavras para expressar minha gratidão. Amor da vida, companheiro de sempre, seus papéis na produção desta obra são múltiplos e dos mais profundos. Fica para sempre o meu débito e admiração a esta pessoa que torna a definição de amar muito mais profunda e visceral do que dar e receber.
Para Fabrício.
SUMÁRIO
Folha de rosto
Agradecimentos
Lista de arquivos de áudio
Prefácio
Apresentação
Fade In
Forma, estilo e estrutura
Capítulo 1
Metamorfoses em campo: movências na escuta
A moradora-pesquisadora escutando os sons da Cohab (ou a demanda da fluidez metodológica)
A etnomusicóloga interpretando a dimensão sônica (ou o lugar do som no caminho teórico da Etnomusicologia)
Capítulo 2
Uma etnografia sônica
Um percurso através da dimensão sônica: consistências rítmicas
Os ritmos do deslocamento: situações de passagem
Entidades sônicas como constituintes narrativas do cohabeiro
Desenhos do som: espaço sônico cohabeiro
Pontos de escuta: narradores urbanos
Dani e a Cohab sônica como forma de vida urbana
Rudi e a Cohab sônica na sua voz: transformações na cena carnavalesca
Curumi e a Cohab sônica das tonalidades afetivas
Uma rede em uma mescla
Capítulo 3
Narrativas da diversidade cultural: os sons da escala
Que escala é esta? Uma narrativa nem só de fora
, nem só de dentro
Todo lugar faz parte da escala
Uma versão musical
da diversidade cultural: operacionalizando a identidade da cidade
(ou a sua escala?)
Uma outra versão
para a diversidade cultural: desconstruindo a narrativa da imigração (ou repensando algumas notas da escala)
Uma outra versão
para a etnicidade: breve reflexão sobre a desconstrução da perspectiva da pesquisadora (ou repensando a emissão das notas da escala)
É possível falar, então, em escala local? Constrangimentos na esfera musical
Capítulo 4
Das mesclas sônicas
O lugar da favela
Narrativas sônicas para o mundo
: iconicidade e criatividade nos raps do Mesclã
A força do Bãh na energia da pista
Não confio: da tessitura da tragédia
Aprendendo a ser produtor enquanto se é trabalhador
Todos na Produção
Capítulo 5
Por uma Etnomusicologia do Ethos Sônico (cohabeiro)
Ethos sônico popular (e cohabeiro)
Mesclando imagens e sons
Fading Out
Referências
Página Final
LISTA DE ARQUIVOS DE ÁUDIO
Faixa 1 – Crônica Sônica
Faixa 2 - Todos para o Alto, Prefacios MCs, c. 2012 (trecho do refrão)
Faixa 3 – Me deixa, Mesclã, 2014 (refrão)
Faixa 4 – Me deixa, Mesclã, 2014 (refrão e primeira estrofe)
Faixa 5 – Das Vilas, Pacificadores RS, c. 2002 (primeira estrofe)
Faixa 6 – Das Vilas, Pacificadores RS, c. 2002 (refrão)
Faixa 7 – Abalo Sísmico, Pacificadores RS, 2008
Faixa 8 – Bãh, Pacificadores RS, regrav. 2008 (refrão)
Faixa 9 – Bãh, Pacificadores RS, regrav. 2008 (primeira estrofe)
Faixa 10 – Bãh, Pacificadores RS, regrav. 2008 (segunda estrofe)
Faixa 11 – Bãh, Pacificadores RS, regrav. 2008 (introdução)
Faixa 12 – Bãh, Pacificadores RS, c. 2003 (introdução)
Faixa 13 – Não confio, Pacificadores RS, 2008 (primeira estrofe e refrão)
Faixa 14 – Revira, Mesclã, c. 2012 (refrão)
Faixa 15 – Revira, Mesclã, c. 2012 (primeira estrofe)
Vídeo 1 – Todos na Produção, Mesclã, 2014
PREFÁCIO
Todos na produção
: etnografia de narrativas sônicas e raps em espaços urbanos populares propicia, às leitoras e leitores, o feliz encontro com um texto que foi elaborado inicialmente como uma tese acadêmica – requisito para o doutoramento em Música/Etnomusicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – e, posteriormente, contemplado com o importante Prêmio de Produção Crítica
da Funarte/MinC de incentivo a jovens pesquisadores. É fruto, pois, de um longo período de estudos e de engajamento em uma pesquisa de campo que demonstra o talento de sua autora como etnomusicóloga, musicista e mais recentemente como professora universitária. Dedicada, entusiasmada e persistente na busca do alargamento de horizontes intelectuais, Luana nunca se intimidou diante dos desafios metodológicos de deslocar-se da familiaridade do seu campo de pesquisa, nem dos desafios de novas interlocuções, como, por exemplo, durante seu estágio intercalar em uma prestigiosa universidade australiana e de transformar todas estas experiências em um novo fluxo de interações dentro e fora da academia.
Encontram-se assim presentes, em todo o processo de elaboração da pesquisa e de sua versão escrita, o diálogo com a literatura nacional e internacional da área, bem como, pelas exigências do enfoque da temática, os aportes teóricos interdisciplinares indispensáveis para o tratamento e interpretação adequada de seu objeto de estudo, qual seja, o de descrever a partir de um olhar e de uma escuta etnográfica o ethos sônico de um bairro popular. Seu espaço de observação e escuta, de onde se cruzam múltiplas vozes dos interlocutores a expressarem suas maneiras de viver, sofrer, trabalhar e manifestar suas angústias, in/conformidades, alegrias e frustrações em formas sonoras várias, emerge em sincronia com sua posicionalidade reflexiva como moradora-pesquisadora, como mulher, como universitária.
Do que trata então este livro? Contextos urbanos estigmatizados, culturas juvenis como o Hip Hop/Rap, práticas sonoro-musicais que desafiam classificações e interpretações tipificadas têm recebido cada vez mais atenção dos cientistas sociais mundo afora: eis que representam uma parcela significativa, mas um tanto ignorada, de posicionamentos socioculturais, identitários, políticos em constante emergência nas sociedades contemporâneas. Do conhecimento adequado deles depende cada vez mais a configuração, com a merecida contundência, de novas propostas acadêmicas, que traduzam em diferentes registros a complexa interseccionalidade de classe, gênero, raça, geração, etnicidade no mundo globalizado sob a égide de um sistema capitalista altamente excludente, concentrador de riqueza e poder. A partir de uma escuta atenta de múltiplas sonoridades combinada com uma etnografia de rua, pautada por um dialogismo cuidadoso, somos apresentados a um mosaico de narrativas que compõem um quadro humano e sensível do que é ser morador/a, trabalhador/a ou jovem nas periferias urbanas no Brasil e, em última análise, do que é tentar projetar um futuro em meio a potencialidades negadas. Que este projeto etnomusicológico de tradução das dimensões sônicas contemporâneas em bairros populares possa frutificar e reforçar a luta por políticas públicas focadas em segmentos jovens, a luta por políticas educacionais, em todos os níveis, mais inclusivas e erradicadoras de desigualdades sociais, garantindo cidadania plena a todos.
O livro de Luana situa-se, portanto, entre essas contribuições de uma nova geração de pesquisadores formados na interface das artes e das humanidades, como campo experimental de novos cruzamentos entre ações de ensino, pesquisa, performance musical e projetos socioculturais. E criativo, dinâmico, sem deixar de tocar em temas e problemas que são cruciais na formação, reflexão e práxis acadêmica, artístico-cultural de novas gerações universitárias no Brasil do século XXI: o foco na inclusão educacional, na reversão de exclusões étnico-raciais, na resistência a quaisquer tentativas de desmantelamento do sistema de ensino público em todos os seus níveis. Daí a sua sintonia com microrrealidades de um cotidiano em nossas cidades médias que se agita, que se move, que se faz ouvir em espaços marginalizados, estigmatizados pelo senso comum, mas no qual circulam pessoas com suas aspirações, seus sonhos artísticos, seus projetos de vida ainda que ignorados, invisibilizados, inviabilizados. Enfatizemos, assim, as inúmeras pautas que se abrem com a divulgação desta pesquisa nos cursos de graduação em música, nas ações formativas de novos professores, nas estratégias de pesquisa e delineamento de projetos inclusivos, transversais em sala de aula, nas escolas e nas comunidades.
Em suma, que seja muito bem-vinda essa contribuição da docente-pesquisadora Luana Zambiazzi dos Santos para uma etnomusicologia construída no Brasil, aberta ao diálogo internacional e interdisciplinar, porém sensível a toda uma gama de questões sociais e educacionais prioritárias entre nós. A estridência das narrativas sônicas que nos é desvelada em cada linha, através dos percursos por ruas, praças e becos de um bairro popular, com suas particularidades, mas também com suas conexões com tantos outros onde pulsam a vida de milhões de brasileiros, atesta, como bem diz a autora, as potencialidades de nossas pesquisas em nos instigar a pensar em movências, em transformações no mundo social
.
Maria Elizabeth Lucas
Professora Titular
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
APRESENTAÇÃO
Apenas pouco mais de dois anos se passaram desde que defendi minha tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Naquele momento, me adaptando à condição de professora universitária na qual estava ingressando, impactada pelo desafio da escrita da tese, não percebia que revisitá-la posteriormente seria um exercício de reflexão sobre o campo de estudos do qual faço parte, as potencialidades de nossas pesquisas e que caminhos podemos traçar para pensar em movências, em transformações no mundo social. Felizmente, boa parte dessas reflexões advém da atuação como docente, a partir da demanda de caminhos pedagógicos criativos mediante cenários de dificuldade na educação brasileira, ao fazer parte de um curso de licenciatura em Música dos mais recentes no país; de trabalhar com Etnomusicologia no sul (do sul) do Brasil – sul este não apenas geográfico, mas epistemológico; e de me encontrar pensando nos lugares da Etnomusicologia na formação de estudantes de graduação em Música. Estas transformações encontram um lugar importante na constituição deste livro que o(a) leitor(a) tem em mãos: se, por um lado, assumo seu rápido envelhecimento, desde a defesa da tese, com a imensa quantidade de estudos e propostas teóricas em torno dos ditos estudos do som
; por outro lado, pude neste tempo reconhecer seu compromisso com as populações populares e, principalmente, a sua potência entre um público não apenas do campo da Etnomusicologia, mas das Ciências Sociais e Humanas e entre os(as) colegas de profissão, professores(as), principalmente da educação básica.
Esses dois pontos basicamente resumem os motivos das alterações que fiz (e as que não fiz) à versão tese
, ao assumir o desafio de transformá-la em livro. Também é preciso explicar que mesmo a ideia de alterar a tese só emergiu após esta ter sido contemplada na Edição Especial do Prêmio de Produção Crítica da Funarte, o que permitiu custear esta publicação. Entre a defesa da tese e o recebimento do prêmio, a circulação acadêmica, apresentando trabalhos em eventos dentro e fora da área de Música, e as vivências na Universidade Federal do Pampa (Unipampa) como professora, notando o quanto a Etnomusicologia pode mobilizar experiências da sociedade com a universidade (ainda mais pensando no caso de universidades localizadas em região de interior), ajudaram-me a perceber que as narrativas sônicas cohabeiras podem motivar reflexões não apenas sobre outros bairros populares, ou seja, entendê-las como mais do que meras homologias estruturais, mas também sobre como narrativas sônicas (e, entre elas, raps) podem ser uma forma de duração da vida popular, aquelas dentre as experiências urbanas que mais preparam habitantes para as adversidades (algumas delas já prefaciadas por alguns de meus interlocutores), como tentarei chamar a atenção nesta obra.
Desde a defesa da tese, a conjuntura política nacional se alterou contundentemente, considerando todos os afetos em torno do impeachment da presidenta Dilma Rousseff e decorrentes impactos (para resumir em apenas um par de linhas). Enquanto isso, habitantes da Cohab, bairro popular da região metropolitana de Porto Alegre e locus para a etnografia que o(a) leitor(a) inicia contato, sinalizavam momentos mais turbulentos, principalmente por um de seus principais indicativos: o silêncio. Quando a Cohab tá quieta, alguma coisa vem vindo
, dizia Dani, uma de minhas principais interlocutoras cohabeiras, quando eu entregava a ela a versão final da tese. O(a) leitor(a) certamente se deparará com Dani e outros(as) tantos(as) personagens ao longo deste livro, o que permitirá, acredito eu, entender melhor inclusive as suas posicionalidades enquanto sujeitos. Cabe ressaltar, por ora, que, para este estudo, Dani é uma das narradoras sônicas, abrindo as portas de sua pequenina casa e compartilhando comigo suas memórias sonoras, musicais do bairro popular onde por toda a vida – e não troca por nada
– residiu. Sendo conhecedora profunda da Cohab, o silêncio apontado por Dani precisa ser entendido como muito mais do que uma metáfora. É um novo espectro sonoro…
Neste sentido, lembrando que o campo etnográfico encerra também suas temporalidades, considerei importante manter as referências teóricas e revisões bibliográficas que atravessam este texto de forma semelhante à tese que o origina. Afinal, foi um certo corpo teórico e etnográfico que me permitiu lançar algumas proposições; o acréscimo de diálogos com a literatura mais recente, se, por um lado, seria certamente valioso, por outro, não estaria em sintonia com o contexto de produção desta etnografia. Contudo, considerando a conversão de formato, optei por enxugar momentos de revisões bibliográficas mais exaustivas, confiando que o(a) leitor(a) que desejar se aprofundar mais nos diálogos poderá recorrer à própria tese, que segue disponível on-line. Sobretudo, os cortes tiveram o intuito de correr mais rapidamente às questões centrais desta obra e, adicionalmente, permitiram que eu trabalhasse com mais calma
alguns conceitos e proposições teóricas que me atrevi modestamente a fazer.
Principalmente no que se refere às questões metodológicas, estes anos pós-defesa foram altamente significativos, pois intensificaram para mim reflexões já presentes na tese de forma bastante tímida, especialmente no que se alinha às perspectivas pós-sociais
antropológicas. Ora – e aproveito para fazer o anúncio assim, de vez –, assim como Dani, também vivi desde sempre
na Cohab, como moradora, como cohabeira. Assim, quando realizava o doutorado e desenhava aquilo que se tornou a tese, foi fundamental justamente problematizar e questionar minha posicionalidade como moradora-pesquisadora, como mulher branca, como universitária. Acredito que neste livro essas questões estão presentes; contudo, não sei necessariamente avaliar se trataram-se de um exercício de autoconsciência
ou realmente de reflexividade
, conforme nos propõe a antropológa britânica Marilyn Strathern (2014). Afinal, será que este estudo dá conta da forma como eles organizam suas experiências
(Strathern, 2014, p. 157), no meu caso referindo-me aos cohabeiros? A proximidade com o texto e a demanda de um constante ir e vir tanto teórico quanto no campo (de forma permanente) talvez me impeçam de responder incisivamente esta questão.
Sem dúvidas, muitos avanços também têm sido marcas de uma Etnomusicologia brasileira e, após a defesa da tese, eles me pareceram mais evidentes e combativos. Um dos avanços tem sido a busca por etnografias mais participativas e, como certa decorrência, a discussão sobre os papéis de militância que etnomusicólogos e etnomusicólogas podem assumir. Falamos e discutimos sobre políticas públicas e culturais, sobre projetos sociais, sobre processos de legitimação (ou não) de saberes e práticas (sonoro-)musicais tradicionais e populares. Ainda assim, nosso lugar de fala legitimado tende a ser relativamente focalizado em determinados espaços, tanto universitários quanto do(s) campo(s) empírico(s). É neste sentido que justifico uma das mudanças mais significativas deste livro em relação à tese: se antes pensava em um constante diálogo com a literatura internacional, especialmente no último capítulo, arrisco-me a aproximar o diálogo com o que pode ser comum a tantos espaços populares deste país, um ethos sônico. Outrora – na tese – entendido como ethos sônico cohabeiro, agora proponho nesta obra uma possibilidade interpretativa para ambientar as narrativas sobre os sons de espaços urbanos populares, especialmente brasileiros – quiçá, latino-americanos, com diálogos transnacionais, como mostrarei. Minha proposta não é a de criar um conceito generalizável, longe disso, até porque seria uma contradição em relação à sua proposta de criação. É, sim, meu objetivo projetar uma chave conceitual que ajude a entender a dimensão sônica contemporânea em bairros populares brasileiros, além dos espaços já amplamente discutidos na própria Etnomusicologia.
Entretanto, cabe perguntar, ainda inspirada por Strathern (2014, p. 135): seria essa proposição afinada ao meu exercício de escritora, ou seja, esta proposta reflete conceitualmente algo além das sensibilidades individuais na medida em que a etnografia devolve para as pessoas as concepções que elas têm sobre si mesmas? E, mais do que pensar em pontos de ruptura e continuidade na construção de uma (auto)etnografia, essa suposta chave conceitual
não seria o mesmo que gerações e gerações de antropológos e antropólogas (e etnomusicólogos e etnomusicólogas) têm feito, como parte de uma construção do campo como um todo coerente e integrado
(como já questionava tenazmente há quase trinta anos a antropóloga urbana Teresa Caldeira [1988, p. 138])?
Como há de se notar, esta apresentação traz mais perguntas que respostas. Contudo, se questões como estas e outras puderem emergir, estando em sintonia com os lugares epistemológicos de meus/minhas leitores(as), considerarei que este estudo já cumpre um de seus papéis principais: mobilizar sentidos sociais a partir de sons.
É assim que abro este livro, na expectativa de que desperte reflexões sensíveis sobre Etnomusicologia, sobre as potencialidades de narrativas sônicas na dinamização de espaços urbanos populares e sobre a necessidade de complexificar as experiências de vida na cidade, neste caso, a partir de seus sons, tumultos, barulhos…
FADE IN
Permita-se ler em voz alta, deixe o som de sua voz crescer aos poucos:
A ideia é compartilhar, eu vim aqui para acompanhar
Se quiser pode chamar, estou aqui se precisar
Conte comigo para lutar e evitar as tretas
Ponho as palavras no papel, empunho minha caneta
Protejo minha mente com os olhos no futuro.
[...]
É o som do sul que chegou, fumaça, maloqueiro
Traz a vila no enredo, sem segredo, sem medo
[...]
na construção criativa
Disseminando a doutrina, batida toca e te avisa
Vam’bora, agora é a hora, louco, acorda pra vida¹
Para você que se deixou ler sonoramente esse trecho, talvez tenha servido como um efeito de gradativamente se afetar por um trecho de rap produzido no ano de 2014 pelo grupo de rap Mesclã. Deixar-se afetar, neste caso, e sabendo agora que se trata de um rap, pode servir para desejar experienciar novamente a sua leitura, atentando para os possíveis ritmos, entonações e intensidades dessas linhas de abertura. Assim, voltamos para o som do sul
, atravessado pelas tentativas de encaixes performáticos da fala (que tenta rimar). Note, pois, o primeiro par de linhas e tente encaixar
: a ideia é compartilhar, eu vim aqui para acompanhar
. Em breve chegaremos às performances sonoras destas e várias outras linhas, e, portanto, às soluções sonoras de encaixes
. Mas, por ora, proponho ao(à) leitor(a) que se permita imergir neste texto com a habilidade imaginativa de soar. Assim como o(a) leitor(a), também inicio este livro devagarinho, deixando sons de um espaço invadir minha memória, suas subjetividades, e, a partir deles, ambientar o que se tornou para mim parte de um caminho acadêmico.
Desde a infância, minha mãe comentava que meu quarto, quando nossa casa pertencia a