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Signos Artísticos em Movimento
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Signos Artísticos em Movimento

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Sobre este e-book

Signos Artísticos em Movimento é uma coletânea que reúne ensaios de diversos professores, pesquisadores e poetas. Busca refletir o papel das diversas linguagens artísticas que permeiam nosso cotidiano. Uma obra que conjuga a linguagem da poesia, da música, da pintura do cinema e da literatura mostrando a profunda relação entre elas. As ilustrações desta obra possuem o objetivo de espelhar e dar unidade aos ensaios na diversidade dos enfoques dados por cada autor.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de set. de 2017
ISBN9788594850317
Signos Artísticos em Movimento

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    Signos Artísticos em Movimento - Ana Maria Haddad Baptista

    apresentados.

    Agradecimentos

    À Rose Marie Silva Haddad pelas ilustrações. Pela leitura sensível na movimentação entre os textos e os signos artísticos de Van Gogh.

    A Abílio Gurgel. Parceiro habitual que possibilita a milhares de pessoas acesso à cultura.

    Prefácio – O ensaio como resistência à dinâmica do mesmo

    Quem interpreta, em vez de simplesmente registrar e classificar, é estigmatizado como alguém que desorienta a inteligência para um devaneio impotente e implica onde não há nada para explicar.

    Theodor Adorno

    Entre outros textos em que reflete sobre o pensamento crítico, Adorno escreveu O Ensaio como forma, este mesmo escrito na forma sobre a qual pensava, em que começa fazendo menção ao fato de o ensaio, na Alemanha, estar difamado como um produto bastardo; que sua forma careça de uma tradição convincente; que suas demandas enfáticas só tenham sido satisfeitas de modo intermitente (p. 15) – aspectos amplamente discutidos – para chamar a atenção para a questão da autonomia ainda não conquistada dessa forma de escrita.

    Sua crítica mordaz inicia-se revelando as contradições da própria corporação acadêmica, que veste todo o pensamento com uma linguagem determinada pela lógica das normas que pretendem sempre induzir ao universal, descartando tudo que cultive a liberdade do espírito. Nesse caso, a compreensão de uma ideia reduz-se ao processo de esclarecer o que o autor teria querido dizer – algo que ele entende como pobre, uma vez que não se ganha muito com tais considerações. E argumenta:

    Nada se deixa extrair pela interpretação que já não tenha sido, ao mesmo tempo, introduzido pela interpretação. Os critérios desse procedimento são a compatibilidade com o texto e com a própria interpretação, e também a sua capacidade de dar voz ao conjunto de elementos do objeto. Com esses critérios, o ensaio se aproxima de uma autonomia estética que pode ser facilmente acusada de ter sido apenas tomada de empréstimo à arte, embora o ensaio se diferencie da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade desprovida de aparência estética. (ADORNO, 2003, p. 18)

    Por isso, entende o autor que o espírito científico acadêmico aproxima-se do obtuso espírito dogmático (op. cit., p. 19). E a força que a corporação exerce sobre o escritor é tão grande que mesmo autores que já tenham tido boas experiências ensaísticas tendem a regredir, em escritos posteriores. A banalização dos conceitos revela alguma perda de intuição intelectual, quando não, em nome de mantê-la, os conceitos convertem-se em psicologismo vulgar. O ensaio, assim, não consegue livrar-se da servidão imposta pela disciplina acadêmica e a liberdade espiritual que lhe seria própria também se perde.

    Que arte e ciência estejam separadas na história não deveria ser argumento suficiente para assassinar o espírito por meio de uma linguagem insípida, pautada por parâmetros de objetividade do conhecimento que se fecham na eterna verificação de teses já fartamente comprovadas, enquanto se perde o frescor do que a experiência humana individual possa trazer à reflexão – até porque não se reconhece que a experiência individual carrega algo da experiência da humanidade. É uma relação com toda a história. E o pensamento sucumbe aos postulados do espírito científico: O ensaio recua, assustado, diante da violência do dogma... (op. cit., p. 23).

    No ensaio, o pensamento não flui em sentido único. Da densidade dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos (op. cit., p. 30). E o modo como se apropria dos conceitos exige uma empatia daquele que visita terras e povos estrangeiros.

    Propor-se a produzir um ensaio, sem cair nas armadilhas postas pelo caminho, não é tarefa simples. Nossa formação como verdade de uma cultura arduamente construída para ser respeitável, costuma impedir-nos de ousar permitir ao pensamento ir além de suas fronteiras.

    Nas relações férteis para a autorreflexão que se quer explorar entre teoria e práxis, os confrontos com a rigidez da formação acadêmica expõem o autor a risco duplo: ao se fundar naquilo que é manifesto pela realidade pode tornar-se mera repetição do que está presente na superfície de cada contexto (e, nesse caso, a realidade se encerra como aparência que descreve relações simuladas, apenas); por outro lado, ao se referenciar na teoria, pode predispor-se a tornar cada circunstância da realidade observada mera ilustração daquilo que já foi dito, por vezes numa forma de interpretação forçada do particular.

    É como se a técnica da escrita amalgamasse os elementos que vão constituindo a cultura afirmativa do mundo capitalista e a formação fosse se destituindo do seu elemento crítico, tornando-se mero apêndice na caracterização do campo de investigação. Ela aparece como uma nova cidadania em tempos de globalização, como único caminho para o desenvolvimento social ou, até mesmo, associada à perspectiva da emancipação humana.

    A formação, hoje, está na publicidade. A propaganda é entretenimento, contém a perspectiva de emocionar, de impactar. Porém, naquilo que causa o impacto está presente uma forma de adestramento da percepção na direção do que interessa ao capital – o leitor obediente. Assim, o texto que se queira revelador de um pensamento fértil encontra resistências não só relativas aos dogmas da escrita acadêmica, mas às condições do receptor, desse leitor habituado ao dogma.

    O mecanismo que rege as instituições culturais fixas se vale da autoridade como um motor humano, em parte produtivo (enquanto possibilita a produção e reprodução social), em parte obstrutivo (por atuar no impedimento da emancipação do indivíduo rumo à liberdade). Daí a estratégia de voltar as energias do indivíduo para modelos rígidos, para a adaptação dirigida ao que está posto, ordenado.

    Poder-se-ia pensar na emancipação do indivíduo, seja ele o escritor ou o leitor, permitindo-lhe desfrutar de uma liberdade que ainda não foi experimentada pela humanidade, mas que existe na medida da sua própria negação. Se ao indivíduo tem sido exigida a renúncia à emancipação e à liberdade, pode-se supor que naquilo que está sendo negado reside a subjetividade que não pode ser experimentada, que permanece aprisionada na lógica da dominação social e sua cultura afirmativa, a qual vem produzindo, historicamente, a alienação humana, o sentimento de impotência, a eterna adaptação ao idêntico.

    Parece ser esse o funcionamento do sistema do mundo administrado da academia, com alta produtividade e eficiência, às quais escritor e leitor confiam a satisfação e o controle das suas necessidades, tanto quanto a organização da própria vida, que se mantém presa à ideia mítica de destino, para o que os papéis sociais tanto do cientista quanto do artista contribuem.

    A todo momento, em cada texto podemos perceber o quanto a linguagem pode apresentar-se como escamoteadora do mau conteúdo, seja em sua forma metafísica, seja na forma científica, participando da manutenção da cultura afirmativa, por meio de uma pseudoformação. Então, não é de menor importância pensar a linguagem por meio da qual pensamos a realidade, na academia, porque ... a reflexão acerca da linguagem constitui o parâmetro original de qualquer reflexão filosófica.... Além disso, à formação cultural, (bildung) precisa corresponder a urbanidade, e o lugar geométrico da mesma é a linguagem(ADORNO, 1995, p. 65 e 67).

    Adorno prossegue sua discussão sobre a questão, trazendo exemplificada a análise meticulosa daquilo que critica:

    Algumas ciências humanas altamente desenvolvidas, como as filologias das línguas antigas, assumiram um tal peso próprio, dispõe de uma metodologia e uma temática a tal ponto elaboradas, que para elas a auto-reflexão filosófica parece quase um diletantismo. Praticamente não existe um caminho direto conduzindo de suas próprias reflexões às reflexões filosóficas". (ADORNO, 1995, p. 56)

    Por meio do exemplo acima se pode derivar o quanto não é casual que um objeto de estudo se perca, ele passa a ser menos importante que a própria ciência que deveria ser meio para compreendê-lo, quando não é menos importante que o número de páginas em que deve ser desenvolvido. Daí o pensamento ser anulado e reduzir-se a qualquer práxis.

    Pela própria linguagem que se quer científica ou filosófica pode-se manter a ilusão da reflexão e, com a ilusão a própria impossibilidade de superar a barbárie, porque a própria linguagem se converte em instrumento daquela.

    Assim, assumir o desafio de produzir ensaios é assumir o desafio de manter a consciência (ou o que resta dela) alerta contra o seu viés, manter atenta a crítica. E a crítica tem que manter vivo o conceito que permite manter presente o objeto, numa linguagem elegante que suporte o pensamento vivo.

    É o que nos propusemos fazer nos textos que compõem esta obra. Nessa medida, os ensaios que integram este livro buscam, de maneira criativa e ao mesmo tempo investigativa, demonstrar que o ensaio pode ser lido enquanto uma categoria que busca além de seus referenciais, valores literários. Há muito tempo, grandes pensadores, advertem que o real valor de um texto, seja ele de qualquer área e com quaisquer objetivos, deveria estar mais voltado a signos sensíveis, imateriais. E, assim, estaria cumprindo, enquanto texto, seu principal objetivo, ou seja, a capacidade da sedução.

    Os organizadores

    Referências

    ADORNO, Theodor. Atrás do Espelho, Minima Moralia, São Paulo: Ática, 1993, pp. 73-75.

    ADORNO, Theodor. Notas Marginais Sobre Teoria e Práxis, Palavras e Sinais, Rio de Janeiro: Vozes, 1995, pp. 216-17.

    ADORNO & HORKHEIMER. O Conceito de Esclarecimento, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1997, p. 35.

    ADORNO, Theodor W.. O ensaio como forma. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades: Edições 34, 2003.

    A POESIA E A MATEMÁTICA NÃO SÃO INIMIGAS

    [1]

    Marco Lucchesi

    [2]

    Para Ana Maria Haddad e Ubiratan D’Ambrosio

    1

    Para o matemático Ion Barbu existe uma terra, de imprecisas coordenadas, onde a poesia e a geometria se encontram. Talvez no espelho de Alice, no corpo friável corpo do número ou na pele porosa da palavra, pois tudo é linguagem. Ou ainda no espaço entre as vogais, na curva imperiosa de um fractal. Sendo linguagem, também é silêncio.

    2

    A severa progressão de uma fórmula pode assustar, como se dentro dela houvesse um demônio, para os que se aterrorizam, diante da aspereza ilusória de uma selva de cactos. E, de pronto, as coisas se elucidam como um raio, quando elaboramos o processo, e tudo se desdobra mediante intensa transição. Segue-se a descoberta de um mundo solidário e transparente que a fórmula pouco a pouco desvela e denuncia.

    3

    O pensamento fractal é a mais subida revelação da amizade entre as lágrimas de Heráclito e o sorriso de Parmênides.

    4

    Todo objeto fractal guarda dentro de si um domador de leões. As garras e os dentes respondem pelo Caos. Uma pergunta insiste de assalto: até quando há de permanecer adestrável?

    5

    Não é possível aproximar-se da matemática sem uma reserva de espanto e vertigem diante das camadas mais profundas e da distribuição dos números primos. Para Novalis, não pode haver matemático desprovido de entusiasmo.

    6

    No centro do rigor matemático, subsiste o direito de sonhar, o mesmo que me despertou, na juventude, o paradoxo do Grande Hotel de Hilbert. O matemático é um hóspede permanente desse espaço pois, assim como o poeta, não sabe e nem pode abrir mão da metáfora.

    7

    Para Yuri Manin, a matemática é um dialeto especializado da língua natural. E seu tecido interligado por metáforas.

    8

    A ideia de beleza não se restringe à simplicidade. Mas a uma ciência dos padrões, em que o elemento complexo não se envergonha de si mesmo.

    E haveria razão de?

    9

    A última prova de um teorema segundo, Godfrey Hardy, reside na beleza. Se assim não fosse, bastava sacrificá-lo em prol de uma inteligência estética.

    10

    Considerar mais de perto a força epistêmica da beleza.

    11

    A matemática e a poesia coincidem enquanto instâncias radicais da criação, com a mesma destemor de quem se equilibra numa corda sobre o abismo.

    12

    Indaga Leopold Kronecker: os matemáticos não são verdadeiros poetas inatos?

    13

    Para tratar das geometrias pós-euclidianas e da teoria das funções é preciso minimamente praticá-las, sem o que desaparecem o sabor e o risco da aventura de pensar. Por outro lado, sem um quantum de ingenuidade ontológica, ainda que mantida sob latência poética, seria árduo reunir dispersas demandas, ingentes multiplicidades, que migram, obliquamente, entre domínios quase intransitivos, entre a geometria e a poesia, cujo diálogo mal começou. Uma dose de não-saber constitui saída de emergência.

    14

    Dar as boas-vindas à noção de obstáculo epistemológico, enquanto intrínseca espessura da matemática, como um belo por de sol no horizonte, como limite do pensamento apolíneo, sem desprezar a beleza da noite e suas potências absolutas.

    15

    A matemática profunda e a alta poesia comunicam-se de múltiplas maneiras e se dilatam sob o signo das coisas inúteis, como a entendem Hardy e Pessoa. Inúteis. Sublimes.

    16

    Buscar isomorfismos ente a poesia e a matemática é não penetrar o diálogo que antecede as respectivas métricas, aqueles elementos solidários e menos vivíveis que as unem, justo quando se mostram quase irredutíveis entre si.

    17

    O Infinito de Leopardi corresponde à ideia de Hardy e Whitehead, segundo a qual uma formulação muito ampla não pode abrir mão de uma particularidade feliz que acabe por limitá-la, conferindo-lhe certo sabor. No poema leopardiano, a vegetação impede que se alcance o último horizonte.

    18

    Aproximar a poesia e a matemática no espaço de um meta-saber, não através do prestígio que cada qual possua, a fim de evitar um anacrônico projeto colonial.

    19

    A poesia fractal e a poesia do fractal. E não se trata de um jogo de palavras.

    20

    O matemático insiste sobre a beleza de seu ofício, ao passo que o poeta insiste com a verdade.

    21

    Tema para um interminável seminário de filosofia: o matemático inventa ou descobre?

    22

    Tema para uma aula de poesia: qual o tecido metafórico da matemática?

    23

    Pensar através de palavras. Números. Imagens. Ganhos e perdas. Um passo a mais: não pensar a música senão em sua linguagem.

    24

    Uma tácita nostalgia platônica assombra certos matemáticos voltados para as geometrias pós-euclidianas. Imperioso levantar a guarda com as leituras de Kurt Göddel, um verdadeiro tônico.

    25

    ... E sobretudo depois do não de Aristóteles aos números platônicos.

    26

    Relativizar a universalidade da matemática acima do paralelo 42, insiste Ubiratan D’Ambrosio, e não sucumbir diante dos fantasmas.

    27

    A poesia e a matemática não são inimigas.

    28

    E nem tampouco a história da matemática. Recuperar a plasticidade incerta na elaboração dos conceitos renova um conjunto de atalhos e encontros improváveis, sobretudo nos ensaios às cegas, quando se defrontam ruas sem saída. Leia-se em Objetos fractais o elogio do regresso a problemas muito antigos.

    29

    A história do pensamento matemático não se traduz por uma teodiceia vitoriosa do progresso linear, ou de uma falsa ideologia da construção.

    30

    Ainda: a história da matemática é feita de clivagens, paradas bruscas, ensaios frustrados, esperas seculares, que a solução de continuidade procura enfrentar com uma inteligência de Horus. Segundo Spengler, o corpo da história da matemática não é uma tênia.

    31

    A continuar com Spengler, a história da matemática e da poesia coincidem como formas de um preciso Zeitgeist, obra de estilo, segundo um corte epocal bem definido.

    32

    Assim: A matemática grega distingue-se da matemática barroca pela atitude que guardam diante do infinito. Enquanto a segunda o persegue com denodo, a primeira procura evitá-lo com seu escudo de Aquiles, protegendo-se da descoberta dos irracionais.

    33

    A Quinta de Beethoven e a Ilha de Mandelbrot. Deixar-se arrebatar, como quem entrega as armas.

    34

    A linguagem como lugar-tenente, grafada nos símbolos matemáticos. Eis o poema de Novalis, diante da superação de números, figuras: formas vicárias que ocupam o lugar de uma realidade oceânica total.

    35

    Poética da matemática ou matemática da poesia. A solução mais produtiva consiste em abraçar o primeiro e abandonar o segundo.

    36

    Matematizar o real ou decidir poetizá-lo: falso dilema que recai sobre o mundo-língua.

    37

    Uma formulação de Ion Barbu: assim como na estética o lirismo extremo é considerado antipoético, podemos dizer que o extremo ideal é antigeométrico.

    38

    A intuição não é um crime na matemática. Anote-se: poucas fórmulas cegas combinadas com ideias visionárias.

    39

    Os poetas e matemáticos gregos abusavam da analogia e do litotes para plasmar sua derradeira expressão.

    40

    A imaginação na matemática e na poesia se assemelham: como num voo cego, ideia sem corpo, imprecisa demanda que leva adiante, como quem não sabe mas pressente, não alcança mas intui.


    [1] Propostas para um seminário que ministrei durante o Congresso Redpop, Medellín, de 26 a 30 de maio de 2015

    [2] Poeta, romancista, ensaísta. Ocupa a cadeira de nº 15 da Academia Brasileira de Letras.

    A ARTE É FEITA DE SIGNOS

    Lucia Santaella

    [3]

    O título deste livro, Signos artísticos em movimento, não poderia ser mais adequado. De fato, a arte, desde sempre, esteve em movimento e, hoje, isso continua a se dar em ritmo cada vez mais acelerado e desconcertante. O que chamamos de arte no Ocidente, como já foi muito bem demonstrado por Belting (2006) teve início no Renascimento. Embora também chamemos de arte tudo que foi produzido antes disso, a função dominante era, então, ritualística ou religiosa. Foi no Renascimento que a arte adquiriu autonomia como um campo específico de criação e os artistas foram alçados a essa nova condição. Desde então, teve início a história da arte que passou a periodizar os estilos que se seguiram e a englobar sob seu domínio as imagens previamente existentes. É assim que passamos a adjetivar a arte também como egípcia, oriental, grega, romana, medieval etc.

    O incessante movimento da arte

    Os compêndios de história da arte funcionam como demonstrações cabais de que o movimento transformador da arte ocidental sempre foi incessante, tendo adquirido um ritmo crescentemente veloz a partir do movimento expressionista, inaugurado em 1874 com a primeira exposição do grupo no ateliê do fotógrafo Maurice Nadar, que deu início à história da arte moderna cujo crepúsculo se efetuou por volta dos anos 1950. No decorrer de quase um século, o desfile de ismos -– impressionismo, cubismo, dadaismo, suprematismo, fauvismo, surrealismo, construtivismo, neo-abstracionismo etc. – testemunha, a cada uma dessas passagens, a busca de recriação transformadora dos princípios das configurações plásticas até levar as regras renascentistas de representação visual à completa dissolução.

    As forças disruptivas do movimento Dada encontraram repercussão no pós-segunda guerra, abrindo caminho para a emergência e continuidade de uma irrupção, evidente nos anos 1960, de tendências artísticas em variação livre, despojadas de um finalismo e dificultando quaisquer tipos de agrupamentos sistemáticos, conforme se pode constatar na convivência de propostas tais como arte concreta, arte povera, happening, Fluxus, novo realismo, arte ótica, arte cinética, hiper-realismo etc. em uma sincronicidade que não mais mantinha sinais de semelhança com os principais ideários do modernismo. Mas o grande abalo artístico foi provocado pelo diálogo irônico da pop art com as imagens mercantis do mundo industrial. Justamente nesse período os teóricos e críticos da arte e cultura da pós-modernidade encontram seus pontos de partida nos quais, em outra oportunidade (Santaella, 2016a), também busquei as sementes daquilo que vem recebendo o nome de arte contemporânea.

    Desde então, as criações artísticas têm proliferado em práticas e desejos justapostos e disjuntos, direcionados para a multiplicidade em detrimento da unidade, para a diferença em lugar da identidade, para o movimento dos fluxos e dos arranjos móveis em detrimento dos sistemas. Não faltaram críticas até mesmo furiosas ao "everything goes (vale tudo) do pós-moderno. Contudo, conforme já afirmei em variadas ocasiões (ver, por exemplo, Santaella, 2016b), longe de indicar ausência de sentido crítico, engajamento ético ou militância política, o vale tudo" estava sinalizando a entrada de um novo tempo pós-utópico na cultura e nas artes que, na falta de um nome melhor, vem recebendo o rótulo de arte contemporânea e provocando o crescimento exponencial da perplexidade e da incerteza em relação ao que pode ou não ser definido como arte.

    De fato, os modos polimórficos de se fazer arte têm crescentemente expandido os parâmetros que tradicionalmente serviam tanto para definir as práticas artísticas, quanto para determinar princípios que podiam sancioná-las institucionalmente e para estabelecer critérios de julgamento de valor. Todas essas indefinições e hesitações funcionam hoje como índices de uma inédita instabilidade ontológica da arte em que não é mais possível estabelecer fronteiras entre campos e gêneros artísticos anteriormente bem delimitados. Em sua dispersão, eles agora se expressam por meio de nomenclaturas híbridas, em uma variegada ecologia bastante emaranhada (Santaella, no prelo).

    A performance artística em Animais Noturnos

    Animais noturnos é um filme de Tom Ford que recebeu o Grande Prêmio de Júri do Festival de Veneza-2016 e foi indicado como melhor direção e melhor roteiro no Globo de Ouro-2017. As cenas iniciais do filme apresentam uma performance surpreendente, para dizer pouco, em uma galeria de arte de luxo. Embora a situação seja imaginária, pois pertence a um filme, é bem plausível tomar essa performance como paradigmática dos horizontes de possibilidades quase ilimitadas que a arte contemporânea vem abrindo.

    Sem qualquer tipo de aviso, antes mesmo da listagem da ficha técnica de atores, diretor, fotógrafo etc., o filme se abre com imagens, que tomam conta da tela inteira, de mulheres maduras e obesas, balançando alegremente seus corpos nus, ao som de uma música ruidosa. As telas nos cinemas modernos impõem-se com seu tamanho e posição ascendente sobre o espectador e os sons são potencializados nas enormes caixas que rodeiam as salas. Impossível não se sentir, de certo modo, esmagado com o que aparece ao espectador como um excesso, um extravasamento dos sentidos.

    Logo a seguir, as cenas são contextualizadas: trata-se de um vídeo que corre em grandes telas em uma galeria de arte, em cuja instalação as mulheres, personagens do vídeo, então em carne e osso, estão deitadas de costas, inertes sobre caixotes. A imagem (Figura 1) que tem sido utilizada para a divulgação do filme, em jornais, revistas e via Web é bem significativa dos contrastes que o filme colocará contundentemente em ação. A galerista, exemplar mais bem-acabado da perfeição do luxo extremo, está sentada sobre um desses caixotes com ar blasé e olhar oco direcionado ao vazio. Atrás, o corpo real, na inércia de uma estátua, reclama pelos significados que lhe faltam.

    Figura 1 – Tom Ford, Animais noturnos, 2016

    Essas cenas iniciais do filme têm provocado mais frisson e comentários críticos na Web do que o próprio filme. Realmente, não há como evitar as controvérsias, pois as imagens tocam no ponto mais nevrálgico do culto ao corpo e do seu ideal fitness que assolam o imaginário tanto masculino quanto feminino, mas, mais particularmente o feminino, do nosso tempo. Os comentários não têm sido econômicos nos julgamentos de que as imagens são provocadoras, feitas para produzir desconforto, desconcerto e até mesmo vergonha, constrangimento, ou quem sabe, humor.

    Interpelado, o cineasta -– que, aliás, é também costureiro de luxo que goza de sucesso entre as classes opulentas -– relata uma reviravolta na sua própria interpretação de suas Valquírias. Tom Ford não gosta de filmes sobre arte que não apresentem obras de arte. Portanto, sua pergunta foi: o que poderia ser apresentado em uma galeria de arte de Nova York? Seu desejo era fazer um statement sobre a América atual. Em contraste com o sedutor poster de Farrah Fawcett em trajes vermelhos de banho que alimentou sua imaginação infantil, pensou em uma cena que pudesse representar a América tal como lhe aparece hoje: gulosa, sobrealimentada, envelhecida, triste e cansada. Entretanto, para sua própria grande surpresa, as mulheres em cena lhe pareceram tão cheias de alegria, belas e felizes por estar lá que ele se enamorou delas e se arrependeu de sua intenção original. A desinibição e

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