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Nas Curvas do Tempo
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E-book182 páginas2 horas

Nas Curvas do Tempo

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Sobre este e-book

Nas curvas do tempo, cobriram-na com vários quadros de santos, envidraçados, e sapatearam em cima dela, num ritual de exorcismo. Foi assim que a minha alma infantil teve o primeiro contato com a loucura e assistiu a essa realidade dura da existência humana.
Nas curvas do tempo, dona Maria Cipriano, em silêncio profundo, ficou ali parada, sem nenhuma revolta em seus olhos cansados, talvez acreditando que aquele tenha sido o destino que Deus traçara para o seu filho.
Aquela cena triste moldou, em minha alma infantil, algo intangível, mas, com certeza, ajudou-me a olhar o mundo com mais ternura.
E foi assim que o Pepê virou luz...
Nas curvas do tempo, quando o Sol se punha por detrás do prédio da Usina São José e as sombras da noite cobriam nossa casa, recolhia-me, como fazem os animais na natureza, para sonhar como seria o hoje.
O tempo passou! Saudades, saudades...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de ago. de 2019
ISBN9788547326968
Nas Curvas do Tempo

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    Pré-visualização do livro

    Nas Curvas do Tempo - Oscar Rezende

    agosto

    Parte 1

    ~

    A primavera,

    o tempo dos sonhos

    ~

    Meninos do interior

    Se eu fechar os olhos agora é um livro do jornalista Edney Silvestre, que conta a história de dois garotos em uma cidade do interior que investigam um crime. As suas peripécias trouxeram lembranças do que é ser menino do interior e em um cenário que não poderia deixar de ser a nossa São José do Calçado.

    Ser menino em Calçado, nos anos de 1950 e 1960, era uma profissão que exigia múltiplas habilidades: ser exímio tampador de mamuchas, esperto o suficiente para dar um quitute numa cabeça e sair na maior tiçada, não dar puaia, ser bom jogador de baleba e de futebol nos campinhos espalhados pelos quintais, ou o de mesa. O campo de futebol de mesa não era aquele que se compra em lojas de brinquedos, mas feito por nós mesmos: pegava-se uma tábua, cortava em forma retangular, fechando as laterais com ripazinhas, deixando apenas dois buracos para serem as traves. Os jogadores eram pregos na tábua, posicionados como se estivessem em campo. A bola? Uma moedinha. Lembram-se disso?

    A indumentária de um menino do interior dependia da ocasião. No dia a dia, vestia-se um calçãozinho, bem sujo, com elástico na cintura, e na taioba, ou seja, sem cuecas; a camisa era bem curtinha, quase sempre abotoada errada, cobrindo só até o umbigo, ou sem mesmo! O mais comum.

    Para as ocasiões especiais, o cabelo era cortado no estilo vassourinha, o coco todo pelado, só com um montinho de cabelo na frente. As roupas: uma calcinha curta, segurada por um suspensório, e uma camisa bem passadinha. Se o menino fosse da elite, calçava um sapatinho, mas, se do povão, uma lambreta.

    Não podia faltar no corpo do menino uma marca, a mais comum na canela, por ter sentado a mesma em um toco. Se por acaso calhasse de montar um cavalo, no pelo, era um fiofó assado com certeza.

    As almas desses meninos eram puras, mas sempre com um diabinho acompanhando... Gritavam cascuda para receber de volta um galope acompanhado de todos os xingamentos que ela conhecia; percorriam as trilhas das roças, apavorando os pássaros de várias espécies: os canarinhos, coleirinhas e catataus com o alçapão, e as rolinhas, tizius e parentes com uma seta.

    Os banhos de rio eram todos os dias, geralmente escondidos dos pais, pois, como dizia o meu: Menino não vai para o rio, pois água não tem cabelo. Mas o que os meninos do interior respeitavam mesmo, fossem eles mais ou menos espertos, eram três ordens: não engolir chiclete, não comer manga com leite e não tomar banho depois do almoço, pois dava constipação. Diziam que se a gente não ficasse todo duro, com os olhos e boca virados, a outra opção era a morte certa.

    E o sexo? Pois é... Os meninos do interior já nasciam com isso na cabeça... Todo mundo em fila, esperando a sua vez: fosse com gente ou com animal. Assim se iniciavam na arte do amor.

    Ser menino do interior, como diz Mia Couto: É estar cheio de céu por cima.

    O menino da porteira

    Plagiando o grande escritor colombiano Gabriel García Márquez, podemos dizer: A vida não é a que a gente viveu e, sim, a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.

    Às seis horas da manhã, o frio era de lascar, com o sol ainda tímido em nossa casa, lá na Fazenda Velha, que ficava encoberta pela sombra da mata que havia do outro lado da estrada entre Calçado e Bom Jesus. Somente lá pelas 7h é que se iluminava e esquentava um pouco a casa e as redondezas.

    O cheiro gostoso do café que a Lica passava no coador de pano se espalhava por toda a casa, anunciando que era hora de levantar. A minha obrigação, logo ao sair da cama, era tratar dos porcos. Pegava a lata de sobras de comida que ficava em cima de uma grande mesa na varanda da cozinha, misturava o fubá, fazendo uma massa fedorenta, que levava para o chiqueiro. Vez por outra, no caminho, pisava descalço em uma merda mole de galinha, que penetrava entre os dedos, dando o maior trabalho para limpar.

    Às 7h estava na Escola Singular da Fazenda Velha, onde estudei até a terceira série primária. Após o almoço, lá pelas 11h, sentava-me no muro da varanda e ficava à espreita dos raros automóveis que por ali passavam, indo ou vindo, da direção da Fazenda da Segunda. Assim que escutava o barulho de um carro, corria para abrir a porteira que ficava quase em frente à nossa casa, na esperança de que algum motorista jogasse uma moeda em agradecimento, mas quase sempre nem ligavam.

    Na profissão de abridor de porteiras, o que mais me dava satisfação era quando o meu tio Aristides, o médico da região, atendia algum doente lá pelas bandas da Fazenda da Segunda, Ponte do Sossego e Bemposta. Ele vinha no seu Jeep 1954 com capota de aço e me chamava para ir junto, para abrir as porteiras. O bom era que só abria aquelas em sentido contrário, pois as de mesmo sentido ele empurrava com o para-choque do jipe.

    O tio Aristides foi um dos homens que mais admirei na vida e com quem tive o privilégio de conviver nas relações familiares. Andava por todo o interior do município, amenizando o sofrimento daquela população pobre e humilde, muitas das quais vítimas das doenças do subdesenvolvimento. Em geral, o pagamento que recebia era um filho para batizar, uma galinha, um porco, ou seja, as riquezas daquela gente pobre. Não enriqueceu financeiramente com a profissão, doou sua força de trabalho sendo fiel ao juramento de Hipócrates.

    Foi também o pior motorista que conheci. Quando saíamos pelas roças, para atender os doentes, ele dirigia doidamente, cantando e mordendo a língua, naquelas estradas estreitas e cheias de precipícios. Felizmente, saíamos ilesos. Penso que não morreu num acidente de carro, pois a sua missão na Terra era muito importante e Deus dirigiu com ele durante toda a sua vida.

    O pagamento pelo trabalho de abrir porteiras era deixar que eu, sentado em seu colo, conduzisse o jipe somente pelo volante, mas o controle dos pedais e das marchas ficava por sua conta. Sem falsa modéstia, era mais seguro eu na direção do que ele.

    Quando o Sol se punha por detrás do prédio da Usina São José e as sombras da noite cobriam nossa casa, recolhia-me, como fazem os animais na natureza, para sonhar como seria o hoje.

    O tempo passou! Saudades, saudades...

    A mata, o saci e o sonho

    Sempre que volto ao passado nas minhas lembranças, o tempo da infância na Fazenda Velha é o mais presente. Ser criança, vivendo em contato direto com a natureza, foi um privilégio que a vida me proporcionou. Além de ir à escola e de cumprir algumas obrigações domésticas, nada me aporrinhava.

    O que me fascinava era a mata, um resto de Mata Atlântica que existia em frente à nossa casa, margeando a estrada Calçado-Bom Jesus. Durante o dia, os pássaros se exibiam como atores principais naquele cenário verde: canários, melros, maritacas e tucanos sobrevoavam as árvores de um lado para o outro, fazendo a maior algazarra, à procura da comida ou de uma companhia para acasalar. A vida pulsava naquele paraíso verde.

    Vez por outra, alguns amigos e eu fazíamos incursões pela mata à procura do jacu, da rolinha, da juriti, pássaros que sempre estavam sob a mira da seta (era assim que conhecíamos o estilingue) de um garoto. Nunca avançávamos mais que uns 30 metros mata adentro. A nossa capacidade de potencializar o medo era incrível, e um pequeno sopro de vento que derrubasse um galho era o suficiente para provocar uma correria desenfreada.

    Quando a noite surgia, a mata passava a ser ameaçadora. Era o lar de todos os meus medos. Lá viviam o saci, a mula sem cabeça, o lobisomem, as almas penadas e outros monstros que alguns trabalhadores da fazenda diziam encontrar em suas caçadas. Esses medos, com a mata, foram companheiros inseparáveis na infância, e vivi com eles uma relação mista de sonho e realidade.

    Muitas vezes, ao cair da noite, a mando de meu pai, tinha que ir à casa do velho tio Zezé, que tinha o único telefone da região, para mandar recados ao meu tio Luizão, seu sócio em alguns negócios.

    Aí é que a coisa pegava! O caminho até a casa do meu velho tio passava perto da mata. Uma criança, em uma boa carreira, gastava em torno de dois eternos minutos para vencer o trecho de estrada em frente à mata.

    Já saía de casa com a adrenalina alta e a imaginação voando longe. O medo era de encontrar com a mulher, de cor branca como uma cera – a cor da morte –, coberta por um lençol que, segundo alguns moradores da região, também aparecia na mata.

    Passava em frente à mata correndo, com os olhos quase fechados e rezando todas aquelas orações que aprendemos na infância. Acho que as orações valeram, pois a mulher nunca apareceu no meu caminho.

    Muitos anos mais tarde, quando já estava na universidade, em Viçosa-MG, numa das vindas a Calçado, ao passar em frente à Fazenda Velha, assisti a uma cena que me trouxe muita indignação na época. Haviam queimado a mata para plantar café. Eu observava os últimos troncos soltando uma fumaça de agonia.

    Hoje, quando passo por lá, vejo a Fazenda Velha como um lugar triste, desabitado, com uma vegetação seca, chorando a ausência da exuberante mata e do córrego, que, no vale, corria à sua frente. Sinto que não só os meus sonhos de criança foram destruídos com ela, mas também muitas vidas que ali habitavam. É isso aí...

    A minha maridinha

    Pois é, eu já meio velho e barbado, ainda tenho uma maridinha...

    Essa história começou lá no fim dos anos de 1940. A minha avó Lota teve quatro filhos homens, que sempre a trataram com todo o carinho e cuidado, mas, mesmo assim, faltava uma alma feminina em sua vida, os mimos dos homens ainda não eram suficientes para a vovó.

    A alma feminina que pousou em sua vida veio no fim dos anos de 1940, quando a Corina, uma garotinha quase adolescente, filha de um amigo do vovô, veio viver com ela. Primeiro, lá na Fazenda Velha e, logo depois, em Calçado, quando vovó ficou viúva.

    Vovó Lota, pelo menos durante o tempo em que convivi com ela, sempre foi uma mulher cheia de manias e enjoações, mas muito engraçada e de um coração muito bom. Nós, os netos, até achávamos graça dessas suas características. A Corina, com a sua doçura, sabia conduzir a vovó e relevar as suas manias, o que levou a velha a lhe dedicar o amor de uma filha mais nova.

    A Corina, Dinha para nós, irmãos, foi uma bênção da vida. Pega as coisas de bom de uma mãe, de uma tia e de uma irmã mais velha, mistura tudo e dá a Dinha. Além de companhia de vovó, foi o braço direito da mamãe, ajudando a cuidar de todos nós.

    Quando vovó se mudou para Calçado, a nossa família continuou morando na fazenda, sendo a sua casa a nossa referência na cidade. Minhas irmãs mais velhas moravam lá durante a semana, para estudar no Colégio de Calçado. Quando chegavam os finais de semana e as brincadeiras e festinhas aconteciam, eram obrigadas a voltar para a fazenda, por exigência do papai. A Dinha sempre arranjava um jeitinho de amaciar as rabugices do papai e convencê-lo a deixar as meninas em alguns fins de semana na cidade.

    Da minha convivência com a Dinha só tenho boas recordações. Quando criança, sempre passava alguns dias de férias em Calçado, na casa da vovó, e gostava de dormir no canto de sua cama. Na minha imaginação de criança, quem dormia com uma mulher era o seu marido, daí veio a minha maridinha. Foi ela quem me levou ao circo, ao cinema e ao parque de diversões pela primeira vez, ensinou-me a rezar e me preparou para a primeira comunhão. Se bem que nessa arte de me ensinar a conversar com os santos não teve muitos sucessos, pois fiquei meio afastado das coisas do céu... e do inferno também.

    A Dinha tem uma voz muito bonita e suave, quando fala o som acalenta os ouvidos da gente. Ela, com a Helvécia na voz, a Nice Abdala ao órgão e mais algumas vozes masculinas, que não me lembro de quem, formavam o coro da Igreja. Cantavam lindamente a Ave-Maria e outros cânticos religiosos nas celebrações da Igreja Católica. Aqueles que tiveram a oportunidade de ouvir esse coro devem se lembrar dessas vozes que encantavam, enchendo a igreja de sons graves e agudos em uma harmonia angelical.

    Dinha casou-se e foi morar no Rio de Janeiro, onde teve filhos e netos, e ainda continua muito bem, em companhia da família.

    A nossa relação foi muito intensa na minha infância. Tenho a honra de ser padrinho de Crisma de um dos seus filhos e, mesmo me encontrando raramente com ela, quando a vejo me vem uma alegre saudade da infância, pois perto dela não consigo envelhecer.

    Sempre que encontro com a minha maridinha, viro criança...

    O verão de 61

    No finalzinho de 1960 chovia torrencialmente em toda a região e o rio que passava

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