Funk Ostentação: SP-ZN
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Sobre este e-book
Por intermédio de incursões de inspiração etnográficas é apresentado como as práticas musicais desafiam e negociam com a cultura hegemônica, em busca de reconhecimento e legitimação diante de uma sociedade na qual a periferia se encontra em sistemática posição de marginalização, atravessada por inúmeros estigmas. Nesse quadro, é dado destaque para o processo de apropriação e incorporação de símbolos de consumo das classes privilegiadas nas músicas e cultura desses jovens.
Nesse percurso, emergem as questões da tecnicidade, das corporalidades e das culturas juvenis em suas representações de pertencimento, configurando espaços interculturais cheios de apropriações cosmopolitas em diálogo com a identidade cultural local, em complexos processos de hibridismos.
O funk ostentação é um gênero musical que encontra grande adesão por parte dos jovens moradores das regiões da Freguesia do Ó e da Brasilândia. Por meio de equipamentos tecnológicos, esses jovens criam, apropriam-se, fazem circular produções musicais que versam sobre o universo do consumo e seus símbolos de poder e status.
É no espaço das festas informais de rua, denominadas pelos jovens de "fluxo", que essas manifestações de visibilidade encontram seu lugar de materialização. Não obstante, em um cenário atravessado por novos protagonismos, estas juventudes servem-se da internet como uma janela para o mundo, uma maneira de ver e ser visto, entre o local e global. Assim, contempla-se também os videoclipes de montagens audiovisuais amadores, que são veiculados no YouTube, como produção cultural tática significativa desta cena musical do funk ostentação.
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Funk Ostentação - João Marcelo Brás
1979.
Sumário
INTRODUÇÃO
Entrecruzamentos culturais e o funk ostentação na Zona Norte de São Paulo
Videoclipes artesanais e a etnografia de cenas musicais urbanas
Trajetórias e caminhos
1
é NÓIS ZN
: DINÂMICAS LOCAIS/GLOBAIS NA ZONA NORTE PAULISTANA
1.1 São Paulo, metrópole ostentação
1.2 A freguesia do ó
1.3 Trilhando o caminho das festas de rua
1.3.1 Primeira incursão etnográfica: Rua da Feira, Vila Brasilândia
1.3.2 Terceira incursão etnográfica: Iraque
, Vila Brasilândia
2
FUNK OSTENTAÇÃO: VISIBILIDADE, CENA MUSICAL E CONSUMO
2.1 Do funk carioca ao funk ostentação paulistano
2.2 Entrecruzamentos locais e globais
2.3 Funk ostentação: música e consumo
3
JUVENTUDE, TECNICIDADE E VIDEOCLIPE
3.1 O fluxo: liberdade pós-periférica, espaços públicos e tecnicidades
4
DA PERIFERIA AO CENTRO, DO CENTRO À PERIFERIA
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
ENTRECRUZAMENTOS CULTURAIS E O FUNK OSTENTAÇÃO NA ZONA NORTE DE SÃO PAULO
Neste livro busco compreender a cena musical do funk ostentação entre jovens que vivem nas comunidades periféricas da Região Norte da cidade de São Paulo, especificamente nos bairros da Freguesia do Ó e da Brasilândia. Trata-se de observar os fenômenos de construção de sentidos e identidades por meio das expressões musicais e culturais do gênero, tendo em vista as formas como essas juventudes se apropriam e usam a cultura global num permanente diálogo com suas vivências cotidianas.
O ponto de partida das reflexões aqui apresentadas reside no pressuposto de que a música permite compreender as práticas sociais nas quais os indivíduos compartilham experiências culturais. A música é um elemento importante no cotidiano dos jovens moradores dessas regiões. Por meio dela e das festas de rua as juventudes interveem no espaço público, apropriam-se de elementos simbólicos, abrem uma porta para o mundo.
A partir de um mapeamento etnográfico de observação, amparado por uma perspectiva pós-periférica⁸ em que é postulado que as fronteiras entre centro e periferia não são rígidas, pode-se compreender a complexa relação que esses jovens estabelecem, por intermédio do funk ostentação, entre seu local e a cultura hegemônica.
É no espaço das festas informais de rua, denominada pelos jovens de fluxo
, que as juventudes pesquisadas usam e se apropriam do universo do consumo e seus símbolos de poder e status. Nessa prática, os jovens combinam elementos hegemônicos e de resistência e, assim, lutam contra os estigmas de vulnerabilidade e os sentimentos de impotência que recaem sobre eles.
Esses jovens experimentam uma realidade de profunda carência simbólica e material. São alijados dos mínimos direitos sociais e do acesso aos mais diversos bens materiais. Essa marginalização, enfrentada pelas áreas mais afastadas do centro metropolitano de São Paulo acaba sendo expressa sob a forma de estigmas⁹.
O julgamento é sempre desqualificador quando se trata desses jovens e de seus universos culturais. As práticas musicais populares, especificamente o funk, incomodam e se chocam com o mainstream do status quo branco e conservador¹⁰. Assim, as expressões e práticas advindas da música como as corporalidades (jeitos de se vestir, adornar objetos, dançar e estetizar o corpo), os rolezinhos
e demais comportamentos são em larga medida considerados sob uma chave negativa como coisas de favela
.
Não obstante, nessas festas, as ações juvenis constituem-se como efetivas intervenções no espaço público concretizadas em práticas que negociam e entrecruzam o cotidiano dos jovens da periferia com o universo cultural mais amplo, contribuindo, assim, para que as polarizações centro ou periferia
mostrem-se menos nítidas, ainda que existentes.
Temos medo daquilo que não conhecemos, e a circulação do Outro, em uma dinâmica de festa, coloca em condição de protagonista uma juventude que costuma ser narrada apenas pelos canais policiais, em notícias de violência e tensão social. Embora carregue julgamentos perversos e estigmas, o debate sobre as periferias permite reflexões mais amplas sobre a ligação que existe entre o popular, o informal e as hierarquias sociais elitistas. Nesse contexto, destaca-se o papel das tecnologias da internet na constituição dos diálogos e enfrentamentos do funk ostentação com os sistemas simbólicos hegemônicos.
A internet, especialmente o YouTube, permite a democratização dos canais midiáticos na forma dos videoclipes musicais, na qual o tradicional e o novo se enlaçam pela criatividade dispersa
desses jovens¹¹. Aqui, eles se inspiram e constroem identidades ligadas às práticas de valorização de sua estética, moldando critérios muito próprios de qualidade. Ao mesmo tempo, por conta das características dos meios de comunicação digitais em rede, atingem números enormes de audiência — permitindo serem vistos e identificados com o que produzem e publicam.
Diversificadas construções, embaladas pelo funk, permitem uma nova imagem
do jovem morador da periferia. Nela, é discutido seu lugar na cidade
por meio de uma lógica de deslocamento territorial e político − sempre conduzida pelo elemento econômico −, que associa em suas abordagens o consumo como forma de entrada para cidadania.
Consumo, vale dizer, estritamente simbólico para a maioria dos jovens, uma vez que o luxo cantado pelo funk ostentação não coincide com a pose e aquisição efetiva dos bens de consumo aludidos, mas ao consumo das imagens e significados que atravessam esses bens. Afinal, a realidade encontrada nas incursões etnográficas é a de abandono pelo poder público: vielas sem iluminação e moradias em condições de risco, falta de abastecimento de água e esgoto, domínio do crime organizado e todo tipo de efeitos colaterais que uma área periférica nestas condições pode representar.
A música traduz formas de identidade e cotidiano. Trotta¹² utiliza a expressão emergência musical da periferia
para mostrar a visibilidade que esse segmento social tem ganhado nas mídias, em que se negociam valores e ideias, disputado espaço e hegemonia. A questão do pertencimento, algo recorrente nessas produções, é essencial para articular processos globais e locais, razão da escolha da Freguesia do Ó e proximidades como região cartografada neste livro. É nessa localidade, apartada
do resto da cidade pela geografia e pelo poder público, que os jovens fazem emergir narrativas indicando o lado de cá
— referindo-se à distância do centro e a separação pelo rio Tietê − como um diferencial da região e como o reforço de antigos estigmas associados ao bairro.
Refletir sobre a cena do funk ostentação nessas comunidades periféricas implica a compreensão das construções simbólicas que remetem a temas candentes como interculturalidade, hibridismo e consumo. Esse último entendido como uma forma de pertencimento e de construção de sentidos, vital para o entendimento do fenômeno da ostentação
dentro do contexto do cotidiano periférico.
Implica também a consideração do que Martín-Barbero denomina tecnicidade
, quer dizer, as formas de apropriações e usos das novas tecnologias da informação e da comunicação por parte dos jovens, que se servem das redes sociais, celulares e canais como o YouTube como forma de diálogo com o mundo − verdadeiras estradas por onde circulam e são recebidas suas produções, objetivadas em videoclipes artesanais e em montagens audiovisuais¹³.
Além do mais, o fato de se tratar de uma dada região periférica da cidade, constitui um fator decisivo nas práticas culturais e musicais pesquisadas. O foco deste livro reside na análise da cena do funk ostentação na região norte da cidade de São Paulo. A escolha por essa região em particular se dá porque nela as características simbólicas de abandono dos jovens se expressam de forma substantiva na forma de estigmas e de construção residual de uma realidade histórica. Considero que há um sentimento construído por parte dos jovens dessa região em que a localidade é um forte fator de pertencimento que, embora seja também encontrado em outras regiões da cidade, possui, nelas, uma carga menos agressiva.
Compreendo que a cena musical se dá em uma região específica da cidade de São Paulo (Zona Norte – nos bairros/distritos da Freguesia do Ó e Brasilândia), um ambiente onde a diversidade convive entre apropriações e tradições construídas muito peculiares. Nesse contexto, postulo que as canções e todos os aspectos envolvidos devem ser analisados como parte do cotidiano de seus agentes. Considerando as reflexões de Stuart Hall¹⁴, entendo que a vida social e a formação das identidades consistem em incorporar e resistir, construir e reconstruir sentidos − sempre tomando em conta a possibilidade de negociação.
Em outras palavras: por meio da análise da cena do funk ostentação entre os jovens dessas localidades, intento compreender as identidades culturais que se mostram em permanente negociação, tendo em vista que se trata de um gênero musical e de trajetórias de vida que buscam seu posicionamento por meio de um contínuo processo de significação e ressignificação da cultura.
O processo de construção de identidade tem sua raiz na memória social, um processo fundamentado na troca entre indivíduo e sociedade. Conforme ensina o antropólogo Kabengele Munanga¹⁵, a identidades faz parte de uma realidade que se encontra em todas as sociedades humanas. A autodefinição (a definição de si) e a definição dos outros (identidade atribuída) são dimensões que se dão em função da defesa da unidade de grupo, da proteção do território contra ameaças e inimigos externos, bem como de manifestações de cunho ideológicos, econômicos, políticos e psicológicos, entre diversos outros fatores.
VIDEOCLIPES ARTESANAIS E A ETNOGRAFIA DE CENAS MUSICAIS URBANAS
A pesquisa apresentada neste livro serve-se do aporte metodológico da etnografia de cenas musicais urbanas. Ela evoca a perspectiva de perto e de dentro
proposta pelo pesquisador José Guilherme Cantor Magnani¹⁶, que articula uma reflexão sobre a cidade e abre espaço para a compreensão das dinâmicas culturais contemporâneas.
Nesse quadro, a pesquisa compreende duas fases de trabalho: 1. etnografia das cenas musicais do funk ostentação na região norte de São Paulo, envolvendo a observação e acompanhamento das festas de fluxo
; 2. análise de videoclipes amadores de funk ostentação no YouTube − canal privilegiado de propagação e referências desse gênero musical −, fazendo cruzamento entre as observações mapeadas e o material audiovisual construído pelos jovens.
Em relação à primeira fase, são interpretados os sentidos da cena do funk ostentação, suas peculiaridades e apropriações na cena paulista da Freguesia do Ó e região, analisando as diversas características de interações sociais, corporalidades, usos da tecnologia e as mesclas que se apresentam entre o funk e outros gêneros e ritmos musicais. O objetivo é compreender o funk ostentação em suas variações e hibridismos¹⁷ inseridos em uma localidade particular.
Os estudos da área de comunicação e cultura trazem valiosas contribuições para a reflexão acerca das cenas musicais a partir da análise das indumentárias, das corporalidades juvenis, dos usos das tecnologias e como elas se relacionam com essas juventudes por meio da música. A observação etnográfica contribui para entender o cotidiano dessas juventudes, como elas constroem suas identidades e buscam seu espaço nas áreas urbanas periféricas, bem como seus conflitos, resistências e heranças culturais.
A comunicação, por intermédio da música, é um valioso meio para compreender o cotidiano das juventudes periféricas, já que é uma criação diretamente relacionada às suas experiências, aspirações e tradições, na qual elementos dominantes, residuais e emergentes negociam espaço e sentido¹⁸. Ao mesmo tempo, as corporalidades são apropriadas no processo de comunicação, seja com a mediação de computadores ou nas festas de rua, buscando a existência de relações simbólicas entre o consumo e as trajetórias de construção de identidades.
Já em relação à segunda fase da pesquisa, são analisados alguns videoclipes chamados montagens
¹⁹, nos quais as apropriações, identificadas pelos cortes e montagens, conferem o reconhecimento dos aspectos relevantes para os jovens envolvidos na cena do funk ostentação.
Essas montagens
são construídas de maneira improvisada e veiculadas em canais populares do YouTube, onde conseguem milhares de acessos. Dentre inúmeras montagens existentes, foram escolhidos alguns vídeos para a análise. Esse procedimento de recorte e seleção do corpus respondeu aos seguintes critérios: a popularidade e reconhecimento pelos jovens da região, frequentadores das festas de fluxo
; o alto número de visualizações; e, principalmente, o caráter artesanal dos vídeos, que não se encaixam nos modelos dos vídeos produzidos por produtoras já reconhecidas e consagradas como Kondzilla e a FunkTV.
A escolha pela análise desses vídeos reside, dentre outros fatores, no fato de que os videoclipes remontam a uma história de contínua variedade e de aumento das possibilidades de recursos cada vez mais intuitivos e fáceis de manipular, por conta do desenvolvimento de novas mídias e seus aparatos tecnológicos — abrindo espaço e possibilidade para que anônimos
²⁰ possam se expressar, criando e divulgando suas versões alternativas de vídeoclipes, dentro de uma identidade estética própria.
Afinal, os videoclipes no YouTube revolucionam a forma como a periferia de apropria e faz uso das novas tecnologias como meio de produção e divulgação das músicas e de reafirmação de identidade. Nesse sentido, destaco a importância das reflexões de pesquisadores como Ariane