Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

De Braços Abertos
De Braços Abertos
De Braços Abertos
E-book150 páginas2 horas

De Braços Abertos

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Contado na primeira pessoa, este novo romance de Fabiula Bortolozzo é um livro muito intimista, em que a autora entrelaça admiravelmente pequenas histórias de amores e desamores, de crescimento e de descoberta da sexualidade, da saída do armário e do aparecimento do AIDS, dos costumes conservadores da sociedade brasileira e dos eventos políticos determinantes da segunda metade do século XX, dos livros e dos escritores que influenciaram a narradora, bem como da música e dos músicos que faziam furor à época, e do misticismo e sobrenatural, tudo no cenário da cidade de Curitiba e de diversos locais paranaenses muito especiais.

A narradora, que virá a ser escritora, tal como a autora, é uma jovem curiosa, que está a descobrir a vida e a sua sexualidade; é tranquila e tolerante, mas determinada, não permitindo que ninguém lhe diga o que deve fazer. A Bia, a outra personagem principal e maior amiga da narradora, é uma jovem muito feminina, mas que, apesar de parecer também muito determinada, se deixa prender em situações que a sufocam e das quais não consegue libertar-se. As duas seguirão um percurso que as levará a refletir sobre a passagem do tempo, o esgotamento da memória, a doce beleza da juventude e a tranquilidade de estar bem com o passado.

“Em que momento foi que minha vida começou a tomar rumos inesperados? Não sei. Pode ter sido depois do encontro com Juan, assim como pode ter sido depois do encontro com Adri. São memórias de tantos anos que já nem sei mensurar em que momento ocorreram, talvez o que eu esteja escrevendo não seja nem um terço do que aconteceu, quem sabe não é quase tudo coisa da minha cabeça, uma mistura de fatos com imaginação, e eu nem saiba direito a fronteira que os divide. No entanto, o que é, afinal, a realidade senão aquilo que nos faz ter certezas, aquilo que nos faz sentir, aquilo que está entranhado em nós e faz a ponte entre nosso coração e nossa mente. Isso é a realidade de uma pessoa, o resto não passa de delusão.”

IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de set. de 2019
ISBN9789898575944
De Braços Abertos

Relacionado a De Braços Abertos

Ebooks relacionados

Ficção para adolescentes para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de De Braços Abertos

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    De Braços Abertos - Fabiula Bortolozzo

    PARTE 1

    A memória, na maioria das vezes, usa de subterfúgios para chegar até as pessoas, ela é cheia de artimanhas e dispõe de uma paciência infinita para alcançar seus objetivos. Acomodada em baús empoeirados e trancados por anos, quando quer ela evapora por frestas que deixaram de ser consertadas e se espalha pelo ar até  encontrar uma brecha e entrar em nós.

    Estava na lojinha de bebidas, procurando um vinho, quando senti o cheiro do perfume passando por mim, me virei de supetão e senti a fragrância vinda de uma mulher que parou ao meu lado. Foi esse artifício que a memória usou para me trazer de volta aqueles anos.

    O cheiro floral, um pouco adocicado, que terminava com um toque de sândalo, acabou me impregnando e me acompanhando pelo resto do dia e, até mesmo, depois que retornei a casa e tomei o banho da noite.

    Minha mãe usava esse perfume, em uma época em que poucas mulheres usavam perfume importado. Como ela o conseguia, eu nunca soube, pois em meados dos anos 1970, o Brasil ainda era, praticamente, um país rural.

    Talvez esse perfume seja uma das minhas lembranças mais antigas, uma das muitas memórias que me restam de um tempo remoto, de um país que passou por alterações com as quais nem sonhávamos, e de pessoas que há muito se foram.

    A partir dessas memórias me ponho a reconstruir existências, as quais aos poucos vão se esvaindo em meio à confusão dos anos que passam, de cartas que se rasgam, de fotos coloridas que se transformam em sépia.

    ---

    Quando eu nasci, minha mãe tinha 28 anos e já tinha meu irmão. Era uma mulher com os cabelos pretos como a mãe, os olhos cor de mel, que se tornavam verdes quando a irritavam muito, e bonita. Havia sido miss alguma coisa na pequena cidade em que moravam, quando os concursos de miss eram um acontecimento social que impactava a vida das cidades e seus habitantes. Às vezes, tento resgatar a primeira lembrança que tenho dela, talvez eu tivesse quatro ou cinco anos, quem sabe mais, e estava na época de deixarmos as chupetinhas de lado. Como ela não era uma mulher de meias palavras, apenas nos disse que era hora de largar, que não éramos mais bebês, recolheu-as e fez uma fogueira com nossas chupetinhas. Com ela sempre foi assim, faça o que tiver de ser feito, rápido e sem muita explicação, as feridas e os danos colaterais serão sanados com o passar dos dias.

    Era noiva quando encontrou meu pai. Conheceram-se por meio de um amigo comum, e ele, que estava apenas de passagem pela cidade, nunca mais foi embora. Em menos de um ano ela havia deixado o noivo e estavam morando juntos.

    Foi uma união considerada incomum para o final dos anos 1960. Ele vinha de dois casamentos desfeitos e tinha filhos, e os dois foram viver juntos sem estarem oficialmente casados. Porém, como minha mãe era uma pessoa que trabalhava fora, era independente e a herdeira direta do matriarcado, todos aceitaram tal união sem pronunciar nenhum tipo de crítica.

    Meu irmão nasceu um ano depois de eles terem decidido morar juntos, e eu, um ano e quatro meses depois dele. Minha mãe não era adepta de métodos contraceptivos e como para ela dois filhos eram mais do que o suficiente, pediu ao médico que encerrasse a produção logo após o meu nascimento.

    Minha mãe era uma mulher desprovida do chamado instinto materno – o que dizem, e eu discordo, que toda mulher possui – sua personalidade era muito masculina, muito mandona, muito independente para ficar amarrada aos filhos. Por isso, desde muito pequenos, passávamos mais tempo com nosso avô e tias do que com nossos pais, estes estavam sempre viajando a negócios, tanto concretos quanto imaginários.

    Uma das minhas tias trabalhava fora e fazia faculdade, um acontecimento extraordinário em uma família que, até então, nunca dera especial atenção nem ao estudo nem à leitura. A outra, cuidava de nós, da casa e de todos os demais. Na juventude, fora professora em uma escolinha rural. Após a morte de minha avó passou a se dedicar à casa e aos sobrinhos pequenos. As duas vieram a se casar somente quando eu e meu irmão já éramos adultos, e talvez devido a isso – o adiantado da idade – nunca tiveram filhos, ou, quem sabe, por já terem criado muitas crianças.

    Minha entrada na adolescência foi marcada pela separação. Depois de anos vivendo com minhas tias e meu avô, meus pais decidiram que era hora de irmos morar em uma casa só nossa. Mudamos de cidade e passamos a ver minhas tias e meu avó apenas uma vez por mês. A princípio foi doloroso, mas como a adolescência é um período em que tudo, até os sentimentos, é muito fugaz, logo a dor atenuou e novas amizades passaram a cobrir a falta que eu sentia.

    Depois de 20 anos de governo militar, políticos de oposição e ativistas de direitos humanos rodavam pelo país, promovendo comícios enormes para voltarmos a ter eleições diretas para presidente e demais cargos. Havia uma onda de conscientização, e até mesmo uma comoção, que tomava conta do país. A capital onde agora vivíamos foi a segunda cidade no Brasil a ter um grande comício a favor das eleições diretas e da democracia. Na minha casa, fora o caso de um primo que foi espancado pelos milicos, nunca houve discussões políticas, nem oposição ao regime dos generais. A transição que estava para acontecer no Brasil não causou nenhum tipo de emoção entre meus familiares, mesmo porque minha mãe apoiava os militares, ela sempre achou que os governos deles trouxeram prosperidade econômica ao país. Ela podia até fingir ares de mulher liberal, mas no fundo era uma conservadora. E a campanha do país em favor da eleição de um governo civil, eleito pelo voto popular, não a atingiu nem um pouco. Em anos vindouros, tal posicionamento iria causar muitas brigas dentro de casa.

    Em meados dos anos 1980, Curitiba tinha uma população em torno de seiscentos mil habitantes e uma mentalidade de província, de maneira que eu, que vinha de uma cidade interiorana, não tive nenhuma dificuldade em me adaptar. Depois de seis meses frequentando a escola, minha timidez, que até os doze anos era quase patológica, desapareceu por completo, como se o meu eu tivesse sido substituído por um outro.

    Fiz amizade com algumas meninas da escola, procurei confusão com outras, mesmo sem saber, me apaixonei por uma das garotas do time de handebol, e no final do ano criei tanta encrenca com a professora de português que tive de mudar de colégio. Destoando do meu comportamento padrão de adolescente, meu irmão parecia um noviço à beira da ordenação, estudava, ajudava em casa, dormia cedo, não tinha muitos amigos nem namorada, enfim, não dava trabalho para nossos pais.

    Em janeiro de 1985, veio a ascenção do rock nacional e o primeiro Rock in Rio. Eu e minhas amigas nos agitamos com a possibilidade de participar desse evento histórico. Precisávamos de uma barraca em que coubessem três, e possuídas por uma desmesurada inocência juvenil começamos a vender brigadeiros no colégio para juntar dinheiro. Se o dinheiro desse para tudo, poderíamos dispensar a carona e ir de ônibus, uma viagem de 800 km até o Rio de Janeiro. A inflação batia na casa de 20% ao mês, os preços eram remarcados diariamente, o que fazia com que as pessoas fizessem a compra de mês e filas quilometricas nos postos para encher o tanque do carro, algo impensável nos dias atuais. E assim, mergulhados até o pescoço na sobrevivência, nossos pais não tinham condições de nos ajudar com o sonho do Rock in Rio, e nossos brigadeiros não deram bons resultados, ao final nós comemos mais do que vendemos. Choramos, nos desesperamos e nos conformamos, afinal não estava tudo perdido, poderíamos assistir aos shows em casa, com conforto e comida decente.

    No dia do show mais esperado por nós, o da banda de rock Barão Vermelho, caiu um temporal que fez a cidade alagar e todos se recolherem em casa. Quando o cantor Cazuza, com sua voz que parecia um rasgo, começou a cantar Pro Dia Nascer Feliz, a televisão começou a apresentar sinais de pane e a chiar, o vento tinha tirado do lugar a antena que ficava no teto e não teve reza nem pedaço de Bom-Bril que fizesse o aparelho funcionar.

    No dia 15 de janeiro de 1985, assisti ao final do show no jornal do meio-dia, e me emocionei ao ouvir Cazuza celebrar um Brasil novo. Infelizmente, a campanha Diretas Já fracassara, deixando muita gente desapontada. Porém, um presidente civil – Tancredo Neves – havia sido eleito pelo congresso nacional para fazer a transição da ditadura para a democracia. Ele não chegaria a cumprir o mandato, pois no dia seguinte à eleição entrou em coma e não saiu vivo do hospital. O país esperaria mais cinco anos para eleger um presidente pelo voto popular. No entanto, a esperança e o ar de renovação eram grandes e contagiantes, todos esperávamos por dias melhores, e o Brasil era, mais uma vez, o país do futuro.

    E junto com um país mais ou menos novo, uma nova etapa da minha vida começava naquele ano, o colegial, atualmente chamado de ensino médio. E mesmo sendo essa etapa tão esperada por todos, pois era mais um passo em direção à vida adulta, ela acabou me separando de minhas amigas. Uma das meninas foi para um colégio, outra para um instituto de ensino técnico e eu e minha fiel companheira Bia fomos para a mesma escola, mas para classes separadas. Porém, mesmo estando em salas distintas, ficamos mais unidas do que antes, tinhamos os intervalos para ficar juntas e treinávamos no mesmo time de basquete. E entre treinos, aulas e flertes, eu ainda não me dava conta do quanto ela seria determinante na minha vida.

    Bia vinha de uma família totalmente diferente da minha, eram dez irmãos criados única e exclusivamente pela mãe, o pai os abandonara quando a menor deles era ainda uma criança de colo. O lema da casa era: todos trabalham, todos ajudam. Os maiores trabalhavam e custeavam os estudos dos menores, os quais, mais tarde, quando começassem a trabalhar, retornariam o dinheiro para os irmãos-investidores. Um arranjo justo. Por isso, diferente de mim, Bia começou a trabalhar cedo, aos 15 anos, e isso lhe conferia um grau de independência com o qual eu nem sequer sonhava.

    Porém, apesar de toda a liberdade que ela tinha, era em minha casa que gostava de passar os dias. Dizia que ali encontrava acolhimento e o calor que faltava na família dela, a qual era voltada para o lado mais prático da vida. Éramos o oposto uma da outra, eu lia, ela vivia, eu sonhava, ela estava inserida na realidade do mundo, eu me apaixonava, ela curtia, eu levava a sério, ela zombava, eu era exagerada, ela contida. Mas de um modo muito peculiar, nos entendíamos e completávamos.

    Minha mãe, que até então conseguira, convenientemente, furtar-se de desempenhar suas funções maternas, resolveu encarar ser a responsável tutora de dois adolescentes, e passou a nos impor, mais a mim do que a meu irmão, horários e satisfações. Morávamos em um dos bairros mais antigos da cidade, considerado naquela época um bairro com predominância judaica. Ainda era possível encontrar, pelas ruas da vizinhaça, judeus ortodoxos com seus solidéus e peiots, mas entre as cinco famílias que viviam no nosso predinho não havia nenhum. Hoje, quando por um acaso passo pelo bairro, não vejo mais nenhum judeu pelas ruas, apenas jovens em carros de luxo, indo ao shopping ou aos

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1