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Andora
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E-book435 páginas6 horas

Andora

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Sobre este e-book

Metade do anos 1920, Andora migra de uma pequena cidade do Nordeste para trabalhar como doméstica no Rio de Janeiro, o mesmo acontece com Jorge Miguel, estudante de direito que veio do Rio Grande do Sul. O destino de ambos se cruzam na mesma casa, de uma tia do jovem gaúcho. Numa noite sozinhos na casa, deram vazão ao desejo que sentiam, e meses depois, ele recebeu a noticia de que seria pai. Andora preferiu voltar para a sua cidade para ter a filha de ambos, que ele nunca conheceu. O autor narra ano a ano durante mais de 50 anos como eles enfrentaram os desafios que foram colocados em seus caminhos. Andora é uma história de encontros e desencontros, desilusões e aventuras, numa leitura ágil e saborosa
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de dez. de 2023
Andora

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    Pré-visualização do livro

    Andora - Jair De Sousa E Silva

    © editora periferias, 2023.

    coordenação editorial Jaílson de Souza e Silva,

    Daniel Martins, Felipe Almeida e Rodolfo Teixeira Alves

    Revisão Alexandre Facuri Chareti

    Projeto Gráfico Érico Peretta

    Editora Periferias

    Rua Teixeira Ribeiro, 535, Maré, Rio de Janeiro @periferiasedita | revistaperiferias.org | editora@imja.org.br

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Silva, Jair de Sousa e

    Andora / Jair de Sousa e Silva. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro: EDUNIperiferias, 2023.

    ISBN 978-65-87799-15-5

    1. Romance brasileiro I. Título.

    22-108824 ​CDD-B869.3

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Romance: Literatura brasileira B869.3 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

    UM

    — ​Jorge Miguel, eu estou esperando um filho seu.

    Foi assim, direto no ponto, que Andora comunicou que ele seria pai.

    O ano era 1925. A cidade, o Rio de Janeiro, capital da República do país, para onde o jovem gaúcho de Santana do Livramento foi mandado pela rica família de fazendeiros para completar seus estudos em Direito. Chegou na cidade no final de dezembro de 1924, depois de dias e dias de uma cansativa viagem de navio, sendo recebido no porto do Rio de Janeiro pelos tios maternos, Vicente e Teresa. Após a festa no desembarque, rumaram de bonde para o Cosme Velho, bairro onde residia a família. Andora já tinha providenciado o almoço à base de carne que era a preferida do jovem hóspede. Jorge Miguel não deixou de reparar naquela morena magra, enfiada numa saia longa. Reparou nos seus olhos escuros, que combinavam com os cabelos negros que caiam pelos ombros e a achou quase bonita.

    Andora trabalhava para a família há uns três meses, quando chegou de uma pequena cidade do Rio Grande do Norte. Já tinha completado vinte e cinco anos quando desembarcou na capital a procura de uma vida melhor para si e a pequena filha Joana, que deixara aos cuidados da mãe Rosalina Felix e do pai José Felix, que a incentivaram a procurar uma vida melhor longe daquele lugar que não tinha nada a oferecer a uma jovem que tinha ambições na vida. Ela veio para a capital da República acompanhada pela senhora Maria Augusta, comadre dos tios de Jorge Miguel, que havia ido àquela pequena cidade visitar uma irmã, casada com um comerciante local. Logo que chegou ao Rio de Janeiro, ela foi trabalhar naquela casa de família em troca de casa, comida e alguns réis que mandava para sua mãe como ajuda no sustento da sua pequena filha. Andora não tinha dias de folga, só conseguindo ir para o seu pequeno quarto nos fundos da casa já no final da noite, com o corpo dolorido de tantas horas em pé, pois tinha que cuidar sozinha da enorme casa e seu quintal com inúmeras árvores frutíferas, que também ajudavam a sujar aquele amplo espaço, como por exemplo o pé de jamelão, que quando ficava carregado, qualquer vento mais forte jogava os seus frutos arroxeados no chão, que manchava todo o lugar.

    Dona Teresa era seca no trato e a tratava com certa rispidez, em contraponto o Dr. Vicente Tavares Silva, médico clínico geral, que trabalhava na Santa Casa da Misericórdia, a tratava com educação, apesar de ser um pouco distante. Eles não tinham filhos, porque a dona da casa, quando jovem, teve uma doença, que a impediu para sempre de procriar, o que a tornou amarga e ressentida com a vida. Esse também foi um dos motivos para que ela pedisse à irmã Leonor que mandasse o sobrinho vir estudar no Rio de Janeiro.

    Em março, três meses após a chegada, Jorge Miguel começou as aulas já no segundo ano na Faculdade Nacional de Direito, no Catete, bairro próximo da sua casa, e logo depois já tinha feito amigos, sendo um, em especial, o Custódio Luiz Navarro, da mesma idade de Jorge, ambos com vinte e dois anos e muita energia para gastar. Custódio gostava de duas coisas, futebol e política. Morador do bairro de Laranjeiras, se apaixonou pelo clube do bairro, o Fluminense Futebol Clube, o maior campeão da cidade, e detestava um clube criado em 1912 no bairro vizinho do Flamengo. Num domingo de maio, ele chamou o amigo, para assistirem juntos no campo do Fluminense o encontro dos rivais, e Jorge que nunca tinha entrado em um campo de futebol ficou maravilhado com aquele espetáculo, com o estádio completamente lotado, e aconteceu o que Custódio não imaginava, o amigo se apaixonou por aquele time de camisa vermelha e preta, que afinal ganhou o cotejo por dois a um e conquistou mais um torcedor para as suas cores carismáticas. Saíram do estádio e foram comemorar no café Lamas no Largo do Machado, ponto de encontro dos jovens da cidade. No dia seguinte bem cedo, Jorge Miguel comprou o Jornal do Brasil, para ler o que o principal jornal da cidade falava do jogo, e Custódio teve que aguentar as brincadeiras do amigo.

    Na política, Custódio não simpatizava com o Presidente da República, Arthur Bernardes, e tentava trazer o amigo para as discussões políticas na faculdade. Jorge Miguel nunca se interessou pelo assunto e, na cidade natal, era seu pai que vivia enfiado na política, sendo correligionário de um político de São Borja, que atendia pelo nome de Getúlio Vargas, e acreditava-se, no Sul, que ele um dia iria comandar o país.

    Os amigos, sempre que podiam, iam ao cabaré Casablanca, na praça Mauá, que também era para onde iam os marinheiros que chegavam de navio na cidade. Custódio tinha uma namorada lá, a Virgínia, que era dançarina e era muito requisitada por todos, e foi lá que Jorge Miguel conheceu Brigitte, também dançarina, e logo começaram um namoro, mas ele tinha muito ciúme da namorada detentora de uma beleza selvagem e o corpo cheio, que atraía a cobiça de muitos homens.

    — ​Um dia, eu vou tirar você daqui, e vamos nos casar – ele disse a ela.

    — ​Casar e viver do quê? De vento? Ora, você é apenas um simples estudante.

    — ​Mas, um dia, vou ser um advogado muito famoso e ganhar muito dinheiro.

    — ​Só que eu não posso esperar esse tempo todo para ver se isso vai acontecer, só penso no hoje, amanhã para mim não existe – encerrou ela.

    A noite terminou para ele, que não sabia mais o que fazer para esconder o enorme sentimento que nutria por ela, mas sabia que não era correspondido da mesma forma. Custódio levava o namoro com Virginia com mais leveza, não cobrando dela o que não poderia ter, a exclusividade na sua cama, também frequentada por outros homens, no seu pequeno quarto de um conjugado no bairro da Lapa, bairro que escolheu para morar, assim que chegou da pequena Santa Maria Madalena, distrito de Friburgo, para tentar a sorte na cidade grande.

    Os meses corriam rápido e logo o ano da faculdade terminou, tendo Jorge Miguel, sem muito esforço passado para o terceiro ano. O quarto amplo que ele ocupava na casa estava sempre impecável, porque Andora arrumava com esmero, lavava, passava e arrumava as suas roupas no grande armário de mogno. Ele assiste pela primeira vez um carnaval, em fevereiro de 1925, e fica maravilhado. Vê os desfiles dos ranchos e fica empolgado com o Ameno Resedá. Aquilo era tão diferente do que ele presenciava em sua terra natal que o deslumbrou. O ano político de 1925 no Brasil começava com muitos questionamentos ao governo, por conta da carestia das coisas, onde quase nada sobrava do salário dos trabalhadores. Custódio criou um centro acadêmico na faculdade, para os alunos discutirem os problemas do país.  Dizia ele que os jovens deveriam se posicionar e pressionar o governo para a melhoria do ensino, com mais investimentos em educação, e só dessa maneira haveria mais oportunidades para que todos pudessem estudar. Jorge Miguel preferia não entrar em discussões com o amigo e até o achava um pouco radical no modo de ver as coisas.

    — ​Custódio, não se muda as coisas de uma hora para outra, e o radicalismo não ajuda em nada, pelo contrário, provoca receio nas pessoas e afasta aquelas que preferem tentar mudar de uma forma mais negociada.

    — ​Miguel, e desde quando as coisas mudaram no mundo sem luta e enfrentamento?

    — ​Custódio, as coisas são assim desde sempre, os poderosos no poder, e o povo assistindo e aceitando as migalhas que lhes são jogadas, quase de favor.

    — ​Por ter muita gente que pensa como você é que este país não sai do lugar – finalizou com raiva.

    — ​Esquece um pouco a política e vamos nos divertir no Casablanca.

    Chegaram lá às dez horas da noite, e as moças vieram ao encontro deles.

    — ​Pensamos que não vinham mais – disse Virginia.

    — ​Ficamos estudando e discutindo política até tarde – respondeu Custódio, logo abraçando a namorada.

    Jorge Miguel disse a Brigitte que queria beber algo, e se dirigiram ao bar, logo depois perguntou que horas ela ia sair, pois queria passar a noite com ela.

    — ​Não sei que horas vou embora, a casa está cheia, ainda vou fazer um número de dança e tentar ganhar mais algum dinheiro.

    Ele detestava ouvir aquelas palavras, o ciúme tomava conta e ele perdia o controle e gritava com ela.

    — ​Até quando você pretende levar essa vida?

    — ​Você me conheceu aqui, vivo do que ganho aqui. E quem sabe algum milionário se encanta por mim um dia e me leva embora com ele? E aí eu virarei uma dama da sociedade como tantas por aí. Ela sabia que estas palavras o feriam e falava porque não queria que ele tivesse ilusões a respeito dela, porque eles eram de mundos bem diferentes.

    DOIS

    Jorge Miguel gostava da vida que levava no Rio de Janeiro. Estava adaptado. Só não gostava do calor absurdo dos meses de verão. Acostumado a usar roupas pesadas no frio gaúcho, usava roupas mais leves mesmo no inverno, mas às vezes sentia saudades da sua cidade, dos seus irmãos, Tibério e Leonel, dos pais, Tobias e Leonor, e da namorada de adolescência, Rosa, que garantiu que ia esperar por ele para se casarem. Às vezes ouvia no rádio, que o tio tinha em casa, a música que fazia grande sucesso na voz do conterrâneo Vicente Celestino, Saudades do Sertão, que o transportava a sua Santana do Livramento. Apaixonou-se pela voz de uma cantora que tocava direto no rádio, chamada Aracy Cortes, que gravou uma música chamada A casinha.

    TRÊS

    Sua tia Teresa o chamou para conversar e disse-lhe que queria que ele conhecesse a filha de um casal de amigos, porque o achava muito sozinho, e homem só faz muita bobagem por aí.

    — ​Tia, minha vida está muito boa, e não quero compromisso com ninguém, preciso me formar primeiro.

    — ​Mas, de todo modo, você precisa conhecer a Catarina, é uma moça de família com todos os predicados para se casar.

    — ​Tia, a Rosa está me esperando no Sul, as suas cartas que recebo falam sempre disso. Não me crie problema – e a beijou com carinho.

    O mês de junho chegou e com ele as festas juninas, os balões no céu, as fogueiras com o milho cozido, as batatas doces, e assim acabou o mês religioso e festivo.

    No começo de julho, os tios o avisaram que iam passar uns dias em Teresópolis, na casa dos pais de Catarina, Otávio e Marlene, e queriam que ele fosse junto. Ele ponderou que tinha provas ainda a realizar e talvez pudesse ir depois.

    — ​Andora ficará para poder tomar conta da casa e cuidar de você.

    — ​Não é necessário, a levem com vocês, eu me viro sozinho.

    — ​Nada disso. Ela fica – decretou a tia. E assim foi.

    Nos dois primeiros dias sem os tios em casa, Jorge Miguel chegou de madrugada.

    No terceiro dia tinha brigado com Brigitte e bebeu além da conta.

    — ​Andora, faz um chá para mim. Estou enjoado, vou para o meu quarto.

    Ela, já se acostumando com as suas bebedeiras, tinha deixado o boldo e o louro já separados. Minutos depois, ela leva o chá pronto para ele, que toma e pede para ela se sentar um pouco na poltrona que havia ao lado da cama.

    — ​Eu sei que você tem uma filha que está no Nordeste. Você nunca se casou com o pai dela?

    — ​Jorge Miguel, esse assunto só interessa a mim, e não quero falar sobre isso.

    — ​Mas é que você é tão atraente, não sei por que prefere ficar só.

    — ​Não aceito que ninguém dê palpites sobre a minha vida.

    QUATRO

    — ​Andora, estou atraído por você desde que cheguei aqui.

    — ​Deixe de ser sem-vergonha e mentiroso. Você não me engana não.

    — ​Venha ver se estou com febre, estou me achando um pouco quente.

    Ela fez um gesto indicando que ia sair do quarto, mas ele se levantou e a puxou para cama, ela relutou, mas ele mais forte e decidido a beijou com força. O cheiro de bebida no hálito dele era forte e a enjoou, mas não fugiu do beijo recebido. Logo depois se viu desnuda como há tempos não ficava na frente de um homem. Aquele rapaz bonito tão cheio de vitalidade a inebriou, e ela acabou se deixando seduzir, e então tudo aconteceu numa longa noite de amor.

    Nos dias seguintes, envergonhada, só falou com ele o necessário. Com a volta dos tios, tudo voltou ao normal na casa. As aulas na faculdade continuavam, e as discussões com Custódio também.

    — ​Jorge Miguel, as eleições presidenciais estão chegando, e vou montar um comitê eleitoral para apoiar o candidato Washington Luiz, que acho que é o melhor candidato. Você me ajuda?

    — ​Claro que sim. O seu candidato passa a ser o meu também

    — ​E assim foi.

    Outubro chegou, o novo presidente da República eleito foi o candidato que eles apoiaram. Mas outubro também trouxe um terremoto na vida de Jorge Miguel.

    — ​Estou esperando um filho seu, Jorge Miguel – disse-lhe Andora.

    — ​Isto é uma brincadeira sua.

    — ​Jamais eu brincaria com isso, Miguel. Estou com três meses.

    — ​E agora, o que faço da minha vida?

    — ​E eu com a minha, você pensou nisso também?

    — ​O que eu posso fazer por você?

    — ​Só quero que você permita que seja colocado o seu nome na certidão de nascimento da criança, afinal, querendo ou não, você é o pai dela. E vou voltar para a minha cidade para parir lá.

    — ​Isso jamais eu poderia te negar. Que assim seja.

    CINCO

    Dr. Vicente ficou totalmente colérico quando soube da notícia e da decisão de partir da empregada. Ele não achava justo, mas sem conseguir demovê-la pagou a sua passagem de navio para a sua volta e ainda lhe deu dinheiro para os próximos meses de dificuldade, que ela ia enfrentar. No final de outubro, Andora embarcou de volta para Natal.

    — ​Jorge Miguel, você não é mais digno de morar nesta casa. Já comuniquei o fato aos seus pais e agora o seu sustento fica por conta deles.

    — ​Mas tio, eu....

    — ​Não diga nada. Você tem uma semana para sair daqui, e sua tia desde que soube da notícia não para de chorar. Tenho certeza de que você não teve tempo de pensar nisso, quando profanou essa casa — disparou o velho médico.

    SEIS

    Jorge Miguel jamais imaginou que teria esse tipo de problema no Rio de Janeiro. Ele não premeditou, apenas se deixou tomar pelo desejo e sabe que Andora também vai pagar um preço muito alto pelo ocorrido entre eles. E se culpou. A notícia caiu como uma bomba quando chegou ao conhecimento dos pais católicos fervorosos que eram os seus. Acharam que aquilo era um castigo divino por terem deixado o filho viajar para a capital, que eles achavam que era uma cidade cheia de tentações, bem diferente da sua pequena Santana do Livramento.

    Miguel acabou se instalando numa pensão no Catete que a tia, sem o marido saber, arrumou para ele. Aos poucos ele foi se acostumando com a nova rotina, mas percebeu logo como era boa a vida que levava na casa dos tios, onde nada faltava para ele. O amigo Custódio o ajudou muito nessa nova etapa, estavam sempre juntos, e apesar da cabeça cheia com o que tinha lhe ocorrido passou bem de ano na faculdade.

    SETE

    Os pais, apesar do desgosto, mandavam todo mês pelo correio a sua mesada, que dava para pagar a faculdade e as suas despesas pessoais. No início de abril de 1926, a sua tia o chamou para lhe dizer que Andora, que tinha aprendido a escrever e a ler com o Dr. Vicente, havia enviado uma carta para ela, comunicando o nascimento da pequena Maria Clara, que recebera esse nome em homenagem a Santa Clara.

    — ​Oficialmente, você é pai e isso é para sempre – lhe disse a tia. Ele a abraça e chora como uma criança sem saber se era de emoção ou de remorso.

    — ​E ela ressalta que nada quer de você, além do seu nome na certidão da filha — e tentou imaginar como seria a carinha dessa menina. Teria muito dos seus traços?

    À noite, chamou Custódio para irem ao Casablanca, afinal de contas era pai e achava que isso merecia uma comemoração. O relacionamento com Brigitte tinha esfriado, e ele já havia perdido todo o entusiasmo que sentia por ela. Aliás, o novo alvo do seu desejo era a bela mulata Vanda, que havia começado a dançar recentemente no cabaré, mas ela não dava muita bola para aquele branquinho, como ela fazia questão de chamá-lo, mesmo porque o seu coração já estava ocupado pelo passista Orlando, mulato como ela, e que desfilavam pela escola de coração de ambos, a Portela de Madureira.

    OITO

    Dona Rosalina perguntou à filha o que ela faria agora da vida, com duas crianças para sustentar, e ela respondeu com altivez – Vou fazer o que sempre fiz na vida, trabalhar, trabalhar e trabalhar. Vou para Natal, trabalho de dia e volto toda noite. Durante o dia, a senhora cuida das crianças, e quando eu chegar, eu cuido delas. A pequena Joana já com quatro anos ajudava também a tomar conta da irmã e, sempre que podia, a colocava no colo e inventava brincadeiras para passar o tempo. O pai dela, José Felix, vivia trabalhando na roça, onde plantava macaxeira, milho, feijão verde e alguma coisa de pés de algodão, que sempre foi um produto muito valorizado naquela região do Nordeste. A colheita do algodão costumava dar um bom dinheiro, que servia para que a família não passasse muitas dificuldades no dia a dia. Homem de poucas palavras sem nunca ter entrado numa escola, o pai de Andora gostava do jeito da filha, que sempre dizia que nunca ia precisar de homem nenhum para sustentá-la e nem colocar cabresto nela.

    — ​Não quero cabra safado nenhum mandando em mim — ela dizia a todos.

    Ela começou a trabalhar na casa de um rico comerciante de tecidos, que tinha vindo do Líbano no final do século XIX e se estabelecido em Natal, o Seu Hermínio Bazzi gostou do jeito daquela mulher despachada e logo confiou a casa a ela, que juntamente com a sua mulher, Ester, deixava a casa sempre bem arrumada. Meses depois, Seu Hermínio pediu a ela que se mudasse com as crianças para a capital, lhe oferecendo uma casa pequena, nos fundos do seu enorme quintal.

    NOVE

    O mais difícil foi fazer a mãe concordar com a sua saída de casa com as meninas. A avó era muito apegada às netas, mas convencida que era melhor para elas, acabou aceitando. Mas exigiu que sempre que pudesse ela fosse com as crianças visitá-los. Em março de 1927, Maria Clara completou um ano, e sua mãe recebe a carta do seu pai querendo saber notícia das duas. Ele ficou sabendo do endereço delas porque sua tia Teresa, vez por outra, se correspondia com Andora e, ao perguntar se ela sabia onde a filha estava morando, a tia lhe deu o endereço. Ela demonstrou alguma surpresa com o recebimento da carta, mas resolveu não responder, ele que ficasse sem saber como elas estavam vivendo. Estavam muito bem sem ele por perto. Vivia para o trabalho e para as filhas tão somente, nunca mais tinha se envolvido com homem nenhum e não sofria por isso. Dona Ester a perguntou uma vez se ela não gostaria de ter um marido, e ela foi de uma sinceridade plena respondendo que não tinha nascido para lavar ceroulas de homem nenhum. Dona Ester ainda ponderou que casamento não era só isso, mas ela foi firme e repetiu que não queria homem na vida dela não. E a vida seguia o seu curso.

    DEZ

    No final do ano de 1927, Jorge Miguel se formou em direito, ia ganhar o anel de doutor. Doutor Jorge Miguel da Silva. Ele, Custódio e a turma foram comemorar no café Lamas, num grande almoço que contou também com a presença do tio Vicente, que já o havia perdoado pelo ocorrido em sua casa e Teresa muito orgulhosa do sobrinho. No começo de 1928, Miguel foi trabalhar como estagiário no escritório de advocacia do Dr. Afonso Barbosa, que era considerado um dos melhores advogados da cidade, e era sobrinho de Rui Barbosa, o grande jurista brasileiro, conhecido como a Águia de Haia. Durante todo o ano ele trabalhou bastante, começando a frequentar o Fórum e pegando o macete de ser um bom advoga- do. Ele tinha voltado para a grande casa dos tios, prometendo que ia se comportar com dignidade e não mais os faria passar vergonha, por causa dos seus atos. Ainda naquele ano, recebeu uma carta de Rosa, dizendo que tinha ficado cansada de esperá-lo e que ela tinha conhecido o Érico e ia se casar com ele. Respondeu a carta dela lhe desejando felicidades e ficou aliviado pelo fim do longo compromisso, que ele sempre soubera que não ia cumprir.

    ONZE

    O ano de 1929 colocou o mundo de cabeça para baixo, com a quebra da bolsa de valores de New York, levando os Estados Unidos, que começava a despontar como um dos países mais ricos do mundo através de uma grande industrialização e um forte mercado financeiro, a quase falência total e arrastando consigo várias nações. O Brasil, não ficou imune à crise mundial, e nem poderia, e a crise institucional se agravou no país, com o presidente Washington Luiz sofrendo enorme pressão de todos os lados.

    Jorge Miguel sofreu os efeitos da crise, pois os seus ganhos e o da sua família também desabaram. O escritório de advocacia perdeu vários clientes que não conseguiam honrar mais os seus compromissos. No Sul, a venda do gado sofreu bastante, não se encontrando compradores para a sua carne, e nada se poderia fazer, só restava esperar a tormenta passar. A pobreza se agravou no país, já não havia vagas de trabalho em quase lugar nenhum, e o governo não encontrava soluções para diminuir a enorme insatisfação popular.

    DOZE

    Os anos 1930 começam, a crise aumenta, e o presidente em final de mandato, com a popularidade quase no chão, era atacado diariamente pela imprensa, e o povo que lia muito pouco passou a consumir mais os jornais, principalmente os populares como o Diário de Notícias, que traziam muitas sátiras sobre o presidente e o seu governo. O caos era total no país, faltava liderança, o povo sofria, e à boca pequena se falava em um golpe para tirar o presidente do poder. E isso acabou acontecendo. Em outubro de 1930, é dado o golpe, e Getúlio Vargas, o gaúcho conhecido do pai de Jorge Miguel, com o apoio de três estados, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba, é colocado no poder, a eleição presidencial daquele ano tinha sido vencida pelo paulista Júlio Prestes, que não conseguiu tomar posse.

    Custódio, que se dizia um democrata, não aceitou o golpe e dizia que lutaria até o fim, para ver restaurada a democracia no país.

    — ​Miguel, você vai me acompanhar nessa luta?

    — ​Custódio, não tente bancar o herói, nós somos formiguinhas e logo seremos esmagados pelo poder.

    — ​Veremos – desafiou.

    — ​O que você pretende fazer?

    — ​Vou começar a distribuir panfletos nas ruas, escrever cartas para os jornais. Parado é que não vou ficar, isso eu te garanto.

    Jorge Miguel gostava muito do amigo, era como um irmão, mas tinha receio das suas atitudes, sempre muito agressivo em relação à política e aos políticos, ele repetia sempre que eles só se preocupavam com eles mesmos, e o povo que os elegia ficava em segundo plano.

    TREZE

    E aí, aconteceu o pior. Numa panfletagem à noite no centro da cidade, Custódio, Jorge Miguel e mais cinco rapazes foram presos pela polícia de Vargas e levados para o centro de detenção, onde passaram a noite.

    — ​E agora Custódio? — indagou, com medo, Miguel.

    — ​Essa detenção é ilegal, não se esqueça que somos advogados e conhecemos a lei.

    — ​Você acha que eles estão preocupados em seguir a lei?

    — ​Vão ter que seguir — não se abateu Custódio.

    — ​Tomara.

    Já estavam detidos há quinze dias e, até então, ninguém os havia interrogado. O Dr. Vicente recebeu a visita de um homem, que sem se identificar disse que o sobrinho estava preso por atos contra o novo governo. O médico ficou perplexo com a notícia e disse que isso não era possível, pois o sobrinho nunca havia se interessado por política.

    — ​Más companhias provocam essas coisas — disse o homem.

    — ​Quando posso ver o meu sobrinho?

    — ​Daqui a quinze dias o senhor poderá vê-lo — e saiu sem se despedir.

    QUATORZE

    Como dar a notícia a Leonor? — Se preocupou o médico. E decidiu nada falar, diria que ele foi viajar e não teve tempo de avisar. A Melhor solução que encontrou foi mandar um telegrama urgente para Tobias e informar o que tinha ocorrido com o filho e pedir que ele tentasse, mesmo de longe, interceder pelo filho. E assim foi feito, o pai de Jorge Miguel falou com quem podia e, depois de prometer que o filho não ia mais se envolver com a política, conseguiu a libertação do filho e dos amigos. Eles ainda ficaram mais quinze dias completando exatamente trinta dias detidos.

    Miguel recebeu um telegrama do pai furioso, lhe passando uma grande descompostura. E escreveu ao pai jurando nunca mais se envolver em querelas como aquela. Tobias também exigiu que ele deixasse a amizade com Custódio de lado, afirmando que ele era uma péssima influência e o colocaria de novo em situações difíceis. Mas isso ele relutou em fazer, o amigo de sempre não poderia ser abandonado, principalmente nesse momento de muita fragilidade emocional. Custódio, ao ser interrogado, assumiu totalmente a responsabilidade do ato, afirmando que os amigos foram convencidos por ele para participar daquilo, mas tudo fora planejado e comandado por ele.

    QUINZE

    No final do ano de 1931, o processo contra eles foi arquivado, e ficaram todos eles com a ficha limpa de novo. Mas aquele episódio todo mexeu com Jorge Miguel, e ele resolveu sair do país. No começo de 1932, ele parte para Paris, tinha juntado algum dinheiro e o pai também lhe mandou uma ótima quantia, para fazer face as despesas na Cidade Luz. Antes de viajar ainda mandou mais uma carta para Andora, queria saber notícias da filha já perto de completar seis anos. Desta vez, ela respondeu, mas com apenas duas frases:

    — ​Estamos bem. Nos esqueça.

    Ela tinha razão, ele admitiu, nunca teve a vontade de ir visitar a filha e nem se preocupou com o sustento dela, era um grande egoísta, isso sim.

    Ele chega em Paris no começo de março, ainda fazendo bastante frio, mas estava bem protegido com roupas quentes e apropriadas. Se instalou em Montparnasse num quarto aconchegante e bem perto do grande movimento dos cafés tão famosos. Tinha aprendido alguma coisa de francês que não achava tão difícil como o inglês ou o alemão, por exemplo. A França também sofreu um grande abalo economicamente, havia grande desemprego, mas, diferentemente do Brasil, não havia a fome para atormentar o povo mais sofrido. O governo diminuiu os impostos sobre o preço dos alimentos e remédios, e o país estava bem avançado na sua industrialização.

    Mas um fato ocorrido em maio de 1932, mudou a história do país brutalmente. O presidente Paul Doumer foi assassinado por um imigrante russo, um certo Paul Gorguloff, que depois descobriu-se que tinha problemas mentais. De imediato assumiu o novo presidente Albert Lebrun, e um clima de incertezas recaiu sobre a nação.

    DEZESSEIS

    Jorge Miguel, que estava fugindo dos problemas políticos na sua terra natal, se assustou com tudo aquilo, mas logo percebeu que os franceses são muito pragmáticos, e logo a vida do país voltou ao normal. Logo descobriu o lugar que todo mundo ia quando chegavam em Paris, após alguns minutos de trem, chegava ao Montmartre bairro da boemia, das noites agitadas, da bebida, do sexo e do pecado, como se dizia por lá. O Famoso cabaré Moulin Rouge era o maior sucesso de Paris, sempre lotado, com suas dançarinas de todas as nacionalidades. Na primeira noite só observou, bebeu pouco e gostou muito das moças, dançando Can Can. Na semana seguinte voltou e resolveu ficar mais à vontade, pediu uma bebida, e uma moça ruiva, sardenta, de cabelos quase avermelhados veio lhe atender. Madeleine Valois era uma jovem francesa de vinte e cinco anos, já havia cinco anos que trabalhava lá e era muito requisitada, como observou Jorge Miguel. As vezes ela também subia no palco e cantava e dançava muito bem. A simpatia foi mútua e ela perguntou-lhe se ele voltaria outras vezes, e ele foi rápido na resposta:

    — ​Tenha certeza que sim.

    E voltou muitas outras vezes e ele sabia o motivo, Madeleine a ruivinha. Escreveu uma carta para o Custódio relatando as suas aventuras, extasiado com o que estava vivendo.

    — ​Você não sabe o que está perdendo, amigo.

    Quando a resposta chegou, ele não gostou do que leu.

    — ​Caro Miguel. Enquanto você está se divertindo e aproveitando a vida, eu estou mais interessado em derrubar esse governo ilegítimo, que por ora nos governa. Entrei na militância do PCB, e vamos lutar até o fim para pôr fim a essa ditadura, que aqui se instalou. Abraços!

    Essa resposta do Custódio o abalou, e ficou pensando o que poderia acontecer ao amigo se ele fosse preso novamente, e ele não estaria por perto para poder ajudá-lo, não dessa vez.

    DEZESSETE

    Ele e Madeleine não se desgrudaram mais e começaram um romance que Jorge Miguel já não pensava em mais nada. Saíam do cabaré e iam para o seu quarto em Montparnasse, se amavam até de manhã, e ainda sentiam necessidade um do outro. Numa tarde estavam num café, quando dois homens se aproximaram de Madeleine e a cumprimentaram, falaram algumas palavras carinhosas para ela, o cumprimentaram também e se retiraram.

    — ​Quem são? — perguntou ele.

    — ​São dois pintores espanhóis que vão muito lá no cabaré, o mais baixo chama-se Pablo Picasso, e o outro Joan Miró, são muito talentosos, e acredito que ainda serão muito famosos – ela respondeu.

    — ​No meu país também temos muitos pintores extraordinários, sendo que gosto especialmente de dois, Di Cavalcante, que pintou um belo quadro, chamado As Mulatas, em 1928, e a Tarsila do Amaral, que fez uma obra prima batizada de Abaporu, também de 1928. Um dia o mundo todo, vai conhecê-los – falou orgulhosamente.

    — ​Mas nossos pintores também são geniais, não se esqueça, vou ficar horas aqui falando deles — ela provocou, e começou

    — ​Paul Cézanne, Claude Monet, Edgar Degas, August Renoir, Jacques Benoit...

    DEZOITO

    A vida em Paris o estava deixando deslumbrado com o que via, arte, cultura, prazeres, e começou a pensar seriamente em prolongar a estadia. Pensou inicialmente em ficar um ano, mas a situação no seu país o desestimulava a voltar para casa. As notícias regulares que recebia de Custódio reforçaram o desejo de ficar mais um período fora. O ano de 1932 foi bastante turbulento no país, as elites de São Paulo que nunca se conformaram em perder o poder pressionavam o governo central a promover novas eleições, o que, claro, o atual mandatário colocado no poder através de um golpe de estado não tinha nenhuma intenção de convocar. Alunos universitários, comerciantes e outras categorias também entraram na luta pela realização de novas eleições, o que provocou um grande confronto entre as forças federais e os manifestantes, que se armaram e resolveram ir para o combate direto. Durante três meses, de julho a outubro de 1932, a guerra civil deixou perto de dois mil mortos, até a rendição dos revoltosos.

    DEZENOVE

    No início de 1933, Jorge Miguel recebeu uma carta de Custódio, com uma proposta de trabalho, ele perguntou se o amigo se interessaria em ser correspondente em Paris do Jornal Diário de Notícias.  Seu amigo, Arlindo Monteiro, era editor chefe do jornal e pensou em tirar proveito do fato de Miguel estar na Europa, lugar onde tudo estava acontecendo, segundo ele. Oferecia um salário que não era nenhuma maravilha, mas que o ajudaria nas despesas numa cidade, obviamente, mais cara que a cidade do Rio de Janeiro.

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