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Da minha lavra diária: Crônicas selecionadas
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Da minha lavra diária: Crônicas selecionadas
E-book311 páginas3 horas

Da minha lavra diária: Crônicas selecionadas

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Sobre este e-book

Nulla dies sine linea era o lema de Tito Lívio, historiador romano que viveu na transição para o primeiro século da era cristã. Nenhum dia sem escrever pelo menos uma linha era seu propósito de escritor disciplinado. Esse também poderia ser o lema dos infatigáveis cronistas de hoje, como Adelice da Silveira Barros, que, com seu olhar inquisidor e percuciente, analisam o dia a dia de seu mundo, compartilhando suas impressões com o leitor.
Neste volume estão reunidas mais de uma centena de crônicas selecionadas da já considerável produção da autora que, a cada 15 dias, nos brinda com sua visão reflexiva, indignada ou poética, trazendo às páginas do jornal mais uma joia minerada em sua lavra diária.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de nov. de 2019
ISBN9788540031500
Da minha lavra diária: Crônicas selecionadas

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    Da minha lavra diária - Adelice da Silveira Barros

    2019

    PARTE 1

    A família e os amigos:

    laços de afeto

    A vida me ensinou que filhos são como bumerangues: vão e voltam. Tudo depende da solidez do ninho que construímos para criá-los, da certeza deles de que o ninho está lá, da confiança de que a primeira vida é imorrível. Você pode sair dela, mas ela nunca vai sair verdadeiramente de você.

    Alma ou corpo físico?

    Não conheci casa de avó. Aliás, não conheci minhas avós. Apenas uma bisavó. E como a distância entre nós era grande, nunca consegui chegar até ela, nem ela se curvou até minha raquítica e meio assustada figurinha. Para mim, que pouco convivia com pessoas idosas, aquele ser coberto de rugas e pelancas causava certa estranheza. Dos avôs tenho lembranças incríveis. Meu avô materno, doce como um favo de mel, porém firme nas decisões, representava para mim a figura de um santo a quem recorrer nos momentos de aperto. De meu avô paterno, impulsivo e voluntarioso, eu admirava o jeito irreverente de ser. Mas, quando volto ao beco de minha infância, lá está a lacuna. Encontro vazio o espaço reservado aos causos sobre casa da vovó. E só agora me dou conta da razão de, após o nascimento dos primeiros netos, o Fernando, meu marido, encasquetar em construir uma casa totalmente voltada para os interesses das crianças.

    Como o tempo não perdoa, o Fernando partiu e, de repente, vi-me numa residência com excesso de espaço e escassez de moradores. A única saída que me pareceu viável foi construir uma casa adequada a minha nova realidade. No começo, talvez até para fugir do vácuo que me oprimia, mergulhei de cabeça no projeto. Queria uma casa menor, totalmente moderna, bem diferente da atual. Mas, à medida que os tijolos iam subindo, eu, sem perceber, ia transferindo para a obra detalhes que lembravam minha atual residência. E, também sem perceber, a família começou a inventar pretextos para reunirem-se na casa da avó. Agora, com a construção adiantada, o apego à casa que o vovô construiu para os pirralhos veio à tona, perturbando o espírito não só dos netos como das filhas, genros e, pasmem, até o meu. Assim, é com olhos de saudade antecipada que a família toda começa a valorizar detalhes do espaço onde vivemos tantos anos sem lhe dar maior importância. Sentimos o aroma do jardim florido, apreciamos o canto dos pássaros, que espanta nossa solidão, buscamos o céu refletido no azul da piscina que, em noites de luar, apazigua nossas ansiedades. São detalhes pequenos, aparentemente insignificantes, mas que moeda nenhuma pode pagar.

    Diante da situação, começo a questionar: Qual elemento verdadeiramente caracteriza o lar? Seu espaço físico ou os moradores, a alma da casa? A mudança de espaço faz alguma diferença? Pelo sim, pelo não já estou embalando para transporte tudo aquilo que faz parte da história de minha família. O primeiro casaquinho que cada uma de minhas filhas usou, os primeiros trabalhos escolares dos netos, a vela de cada um dos batizados e assim vai. Uma tranqueira de dar medo. Sinto que estou com um pé no futuro e outro no passado. Descobri que o presente é tão apressado que só podemos desfrutá-lo verdadeiramente quando a saudade nos conduz ao tempo que ficou. Aí, sim, encontramos folga para acariciar os momentos de felicidade que atravessamos atabalhoadamente, sem lhes dar sua verdadeira importância.

    No último fim de semana comemoramos o 21º aniversário do Nando, nosso primeiro neto. Além da família, compareceram todos os moleques, como a eles se refere o aniversariante. Em dado momento, os universitários começaram a se apequenar em garotos do primeiro grau. Desligando-se das meninas e do copo de cerveja, pularam na piscina, jogaram bola no gramado, que antes era um gigantesco campo de futebol, tiraram fotos do time todo no espaço verde, onde tantas vezes suas perninhas frágeis perseguiram os caprichos de uma bola matreira.

    Da varanda eu olhava a cena vendo o hoje e o ontem, enquanto pensava: será que a carreta da mudança vai ter capacidade para transportar tantas e tão preciosas recordações?

    A loirinha do pensionato

    Chegou dizendo que era de Barra do Garças, cidade praiana, situada às margens do Araguaia, rio que divide Goiás e Mato Grosso. Não sei se procedia, mas naquele tempo as garotas de lá tinham fama de saidinhas. No pensionato a gente era quase uma família. Não havia segredos entre as estudantes, trocávamos histórias, opiniões e até conselhos. A nova pensionista, que não estudava nem tinha emprego fixo, falava muito, mas nunca de assuntos pessoais. O cabelo comprido era loiro, e a pele, curtida pelo sol, tinha um tom acobreado, puxando para o marrom. Sabia como poucos lidar com o corpo, realçando o que valia a pena e disfarçando o que considerasse negativo. Curtia moda e lia pilhas de revistas de cinema. Prestativa, vivia oferecendo uma bugiganga qualquer para levantar nossas roupas meio sem graça.

    O rapaz do Karmann Ghia vermelho, com capota conversível, todo mundo conhecia. Era estudante de direito da Católica e namorava firme uma aluna do curso de Letras da Federal. Assim que a loirinha se mudou para o pensionato, o Karmann Ghia começou a desfilar em frente ao nosso sobrado. Com o motorista quase deitado e de olhos grudados nas nossas janelas, o carro passava em marcha lenta, pra lá e pra cá. Na esquina da Avenida Botafogo com a Anhanguera, dava uma buzinadinha e seguia em direção ao Setor Universitário. Dali a pouco, lá vinha de volta, no sentido contrário.

    O namorado da novata era um funcionário do Banco Mercantil, em início de carreira. Não tinha carro nem nada. Os dois saíam a pé. Um dia, durante o almoço, percebemos na mato-grossense uma agitação anormal. Mais tarde, se embonecou toda e disse que ia sair de carro com um amigo.

    As janelas do sobrado nunca foram tão disputadas. A do meu quarto, por ser frontal, foi a primeira a ter a lotação esgotada. Assim que a buzina soou lá em baixo, voamos pras janelas. Esfuziante, a lourinha desceu as escadas correndo e entrou no carro sem olhar para os lados. Fomos surpreendidas, sim, mas não pela identidade do amigo. Dela a gente já desconfiava. A surpresa ficou por conta da presença mal disfarçada do jovem debaixo de uma árvore próxima ao sobrado. Escondendo-se como podia, o bancário montou plantão no local e ali ficou até a volta da namorada. E, claro, a galera de cima também. Com as luzes apagadas, ficamos na janela confabulando sinistras consequências. Todas as possibilidades foram aventadas, até mesmo a de tiros na cabeça ou no coração dos traidores.

    O tititi subiu ao teto quando, finalmente, o Karmann Ghia da cor do pecado surgiu na noite deserta. Umas fechavam os olhos, outras tapavam os ouvidos. As mais corajosas permaneciam alertas.

    A loira nos encontrou de pijamas, lendo ou estudando, cada uma no seu quarto, mas de portas escancaradas. Alegrinha, sem entrar em detalhes, afirmou ter tido uma noite maravilhosa. Trazia nas mãos meia dúzia de maçãs vermelhas dentro de uma redinha amarela, amarrada nas pontas.

    Na tarde do dia seguinte, a mato-grossense apareceu com o olho direito arroxeado. A desculpa foi uma queda na calçada.

    Que pena! O Karmann Ghia sumiu da nossa rua. Dias depois, do jeito que surgira, a novata desapareceu sem deixar rastros. Andaram falando em fuga envolvendo um homem mais velho, casado. Mas isso nunca foi confirmado. Tempos depois, eu soube que o aspirante a advogado e a estudante de Letras se casaram. Talvez já estejam separados, ou continuam juntos, prontos para o: E foram felizes para sempre.

    Amigos especiais

    Tive a satisfação de receber minha amiga e comadre Lívia que, depois de morar alguns anos em Goiânia, debandou para o sul do país. Graças a ela pude rever parte da nossa turma daquela época. Juntas, num fim de tarde descontraído, rodamos a manivela do tempo ao contrário. O resultado foi um verdadeiro festival de lembranças queridas, com momentos de nostalgia, emoções fortes ao falarmos dos que não estão mais aqui, intercalados com anedotas e mais anedotas provocando boas gargalhadas.

    Eram tantos os assuntos atrasados que, numa de nossas saídas, a amiga visitante e eu aprontamos uma bela confusão. Coisa de mulheres conversadeiras. Depois de passarmos a manhã rodando pelo shopping, esquecidas do relógio, descobrimos que lá fora já era tarde. Esbaforidas, pagamos o estacionamento, pegamos o carro e rumamos para a saída. No momento de apresentar o cartão do estacionamento foi aquela confusão de tá comigo ou com você? Não comigo não tá, não. Esvaziamos nossas bolsas, vasculhamos o piso do carro e nada. Pela frente, tínhamos a cancela do shopping e atrás uma fila de motoristas nervosinhos. Se alguém já passou por tal situação, sabe a encrenca que é. Uns trinta minutos depois, após passarmos por não sei quantos departamentos administrativos, fomos liberadas. Em casa o almoço esfriando na mesa.

    Rememoramos o tempo que éramos um grupo de recém-casados, alguns com filhos pequenos, outros na expectativa de vir a tê-los, com ideologias e visões de mundo bem diversificadas. Alguns já tinham atingido a casa dos trinta anos, outros nem isso. Em comum, tinham a fé inabalável numa vida com diversão e amigos verdadeiros.

    O nível econômico do grupo variava entre os que já dispunham de um patrimônio razoável e os que contavam apenas com a ambição e disposição para o trabalho. A unanimidade ficava na alegria de viver, no gosto por encontros informais regados a cerveja e cachorro quente, ou mais requintados, onde rolava uísque e camarão. Duas coisas eram sagradas: o carteado da sexta-feira e o domingo na beirada da piscina do Country Clube. Ah, meu Deus, viver era uma festa! Aqueles eram tempos em que se caminhava pelas ruas de Goiânia sem preocupações, os carros dormiam nas portas das casas e, como ainda não tinham inventado o sequestro de crianças, as nossas tinham liberdade para permanecer longe dos olhos dos pais por horas e horas. Ou será que estou enganada? Pode ser que então persistisse em nós a irresponsabilidade própria dos que ainda relutavam em admitir o grau de periculosidade que povoa o existir. Não sei, mas seja lá como tenha sido, para o nosso grupo a vida tinha a leveza de uma brisa matinal.

    O tempo andou, alguns optaram por viver em outras cidades, e a vida se encarregou de mostrar a cada um seu verdadeiro papel aqui na Terra. Eu optei pela literatura. Só então acho que consegui justificar aquele meu ar meio etéreo, ar de quem vive em outro planeta. Diferente das outras mulheres do grupo, eu me preocupava horrores com o fato de não conseguir decorar a grife das roupas e acessórios que as antenadas usavam. Além disso, eu era a última a saber das fofocas que rolavam pela cidade, tipo quem estava traindo quem, ou a verdadeira razão de alguém ter sumido da praça.

    Minha comadre, mineira de nascimento, tem a facilidade de se habituar aos climas mais extremados. Depois de se esturricar no sol goiano, hoje enfrenta o gelo da serra catarinense, região mais fria do Brasil. Artesã de mão cheia, lúcida e coerente com nosso momento, atua também na área de educação sócio-ambiental, lutando pela preservação do Planeta. Tenho por ela um imenso carinho e a certeza de que nossa amizade vai além da distância ou de qualquer barreira.

    Amizade

    Urdida em tênues fios de convívio, palavras comedidas ou espontâneas, porém sinceras, gestos tímidos ou afoitos, quando verdadeira, a amizade é tecido durável e insubstituível.

    Em 2001, acompanhada por alguém que não gosta de ser mencionado, portando um calhamaço de textos e a insegurança própria dos iniciantes, procurei a Cânone Editorial com o intuito de transformar em livro os originais em questão. Depois de breve consulta ao material, a dona da editora, Ione Valadares, lançou um olhar demorado sobre minha figurinha desconhecida, procurando, talvez, uma saída honrosa. Tem uma pessoa que melhor que eu pode avaliar seus originais. Se aprovados, eu os publico. Nova inquisição, pensei, aflita.

    Encontramo-nos pela primeira vez no seu endereço da época, um charmosíssimo sobrado no Setor Sul de Goiânia. No horário combinado, lá estava eu com meus textos, a incorrigível timidez e o pavor de receber um redondo não. Duas questões me preencheram o momento: a graciosidade da casa e a necessidade de me fazer entender por alguém tão diferente de mim. Eu, uma perfeita amadora, com talento, quem sabe, porém material bruto, necessitado de ajustes, retoques. Ela, profissional acabada, segura de seu desempenho como professora e crítica na área de literatura. Nela a fala, os gestos, a tranquilidade atestavam segurança profissional aliada ao comedimento natural. Sua calma e parcimônia contrastavam horrivelmente com minha ansiedade.

    Bebi de um gole o copo d’água que me foi oferecido. Devidamente instalada no sofá onde, tesa, eu aguardava, ela começou a folhear meus escritos. Leu alguns trechos de um ou outro conto e, em voz pausada, de acalmar espíritos agoniados, perguntou se eu tinha obras publicadas. Respondi, com certo alívio, que sim, dois livros, um dos quais, prefaciado pelo escritor Miguel Jorge, que eu incluía no grupo de meus padrinhos literários. Ótimo, ela disse, eu gostaria de iniciar pela leitura de seus livros.

    O resultado da visita foi positivo. Vera Maria Tietzmann Silva, conceituada crítica, fez a gentileza de valorizar com um belo prefácio Prisioneiros do vento sul, meu terceiro livro.

    Posteriormente, recebi por intermédio da escritora Darcy França Denófrio, também madrinha literária, uma notícia que eu jamais poderia imaginar. A professora Vera tinha indicado para análise Um jeito torto de vir ao mundo, primeiro e único romance de minha carreira até então. Se escolhido, ele figuraria entre as obras de leitura obrigatória para o vestibular daquele ano da UFG e outras universidades. Passei dias em transe, sonhando com o sim e escorraçando o não. Bem, a possibilidade acabou se concretizando, e minha gratidão aos que me indicaram e defenderam não tem limites.

    Como diferença nunca foi obstáculo para a consolidação de amizades, a nossa aconteceu. Vieram novas avaliações de trabalhos, prefácios, sugestões, inclusão de meu nome em trabalhos seus e assim vai. Acho que meus escritos falaram por mim. E o respeito da Vera por minhas falas nos uniu na diferença. Aos encontros de trabalho incorporamos o lazer, com momentos de descontração feitos de prosas.

    Hoje, minha amiga Vera sopra velinhas e, se é verdade que: "Não pelos anos contes tua idade, mas sim pelos amigos", ela vai precisar de muito fôlego. E quem está de parabéns somos nós por contarmos com sua amizade, competência, solidariedade, generosidade e atenção em todos os momentos, principalmente naqueles que exigem fidelidade absoluta.

    Seja abençoada hoje e sempre, Vera.

    Ainda sobre ele

    Peço desculpas por insistir num assunto que talvez só a mim interesse. Como justificativa eu menciono a dependência que nós escritores temos da emoção. Um texto escrito sem o calor dos sentimentos nada mais é que um simples relato. E neste momento minha inspiração está toda voltada para a grande perda que acabo de sofrer. Quem já passou por isso sabe que a dor da perda tem a estranha característica de nos aprisionar numa redoma de espinhos tão estreita que qualquer movimento no sentido de escapar da prisão redunda em sofrimento ainda maior.

    Meu primeiro e o último pensamento do dia são para o Fernando e, quando confio que a dor tende a diminuir, esbarro em algum daqueles espinhos pontiagudos, seja no formato de um objeto de seu uso pessoal, seja em uma das inúmeras fotos suas espalhadas pela casa ou na pergunta da Helena: cadê o vovô?, no vazio de sua poltrona predileta ou na poça d’água formada por meu choro oprimido que escorre para dentro de mim formando um rio de saudade. Saudade de tudo aquilo que fizemos juntos e até mesmo do que ficou por fazer, como nossa viagem para a Serra Catarinense, programada para maio passado, em comemoração aos nossos quarenta e seis anos de casamento. Naquele mesmo mês ele resolveu empreender sozinho, sem aviso nem nada, a grande e derradeira viagem. Na tentativa de preencher o vazio de sua ausência, já experimentei todas as possibilidades: sair com os amigos, ir a festas, vestir-me de alegria usando o amarelo, o laranja e o vermelho, cores que, segundo os entendidos, têm o dom de levantar nosso astral. Até o momento o resultado foi zero.

    Agora estou apostando na passagem do tempo como elemento transfigurador, com capacidade para transformar a ausência em presença sob a forma de recordações dos momentos corriqueiros, porém inesquecíveis, que marcaram nossas vidas: a primeira morada, um apartamento minúsculo de cinco cômodos apertados; o nascimento das crianças; a primeira casa com jardim.

    Quando o sono teima em não chegar fico remoendo nossa história, banal para os outros, mas especial para nós. Como eu disse na crônica dedicada ao Fernando, nós nos encontramos pela primeira vez em Brasília, uma semana antes de ele vir morar em Goiânia. Já na apresentação, houve, sim, um repicar de sinos, mas, como ele tinha namorada, não marcamos encontro nem trocamos o número de nossos telefones. Entretanto, se existe destino, o nosso foi engenhosamente tramado, porque no seu primeiro dia aqui em Goiânia, para espanto de ambos, nos encontramos em plena rua, assim sem mais nem menos. E o que no início eu interpretava como carência de sua parte, era interesse mesmo, e a coisa descambou para o namoro com lances bem engraçados.

    No começo ele tentou manter as duas relações: eu em Goiânia de segunda a sexta, e a outra em Brasília, nos fins de semana. Foi aí que resolvi provar ao chifrador que eu também podia arranjar um estepe para preencher suas ausências. Fiz tudo às claras para que a traição chegasse aos seus ouvidos. Apesar da certeza de ambos os lados, não houve cobranças nem explicações, mesmo porque nunca tocamos no assunto, assim como ele nunca mais teve pendências a resolver em Brasília nos dias livres.

    Outro lance engraçado foi nossa lua de mel. Saímos de Goiânia rumo a Araxá num fusquinha emprestado. Além de velho, o fusca era temperamental: só pegava quando lhe dava na veneta. Daí, não tive dúvidas, ao pé da serra onde o Fernando tinha passado sua infância e fez questão de me mostrar, batizei o fusquinha com o apropriado nome de Teimoso. Isso às catorze horas de um dia ensolarado, com o estômago grudado nas costelas e possibilidades zero de uma refeição decente nas próximas horas, já que o Teimoso teimava em não pegar. Hoje estou com alguns carros na garagem e a quilômetros

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