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AS ARTESÃS DE SI MESMAS: O TORNAR-SE PROFESSORA EM UM CAMPO DE SABER MASCULINO
AS ARTESÃS DE SI MESMAS: O TORNAR-SE PROFESSORA EM UM CAMPO DE SABER MASCULINO
AS ARTESÃS DE SI MESMAS: O TORNAR-SE PROFESSORA EM UM CAMPO DE SABER MASCULINO
E-book173 páginas2 horas

AS ARTESÃS DE SI MESMAS: O TORNAR-SE PROFESSORA EM UM CAMPO DE SABER MASCULINO

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Sobre este e-book

"A ausência das mulheres em alguns espaços foi vinculada, tradicionalmente, com a incapacidade, a inferioridade, a imaturidade, o defeito, a carência ou a impotência e, portanto, esse lugar ficou marcado como aquele em que as mulheres não devem estar e esse tem sido o mandato histórico, visto como justo. Então, de forma paradoxal, não será acaso a maior transgressão ocupar o lugar proibido, o lugar do sujeito, o ponto de inflexão que faz da resistência o espaço do qual emergirá o reconhecimento de um sujeito (mulher) político, ético, filosófico, legal, de direito e de necessidade?" (Femenías, 2000, p. 90). Nesse sentido, a presente obra se traduz em um esforço de evidenciar como as docentes se constituem sujeitos femininos de saber, em um lugar majoritariamente masculino, ou seja, como elas interagem com as dinâmicas de gênero do campo teológico, como resistem e como se produzem eticamente, no sentido de uma afirmação positiva do feminino, que opera como contramemória ao feminino pejorativo, produzido pelos discursos da teologia católica tradicional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de dez. de 2019
ISBN9788546218370
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    AS ARTESÃS DE SI MESMAS - NEIVA FURLIN

    Israel.

    CAPÍTULO 1:

    O VIVIDO COMO ARTE: UMA AÇÃO INVENTIVA E POLÍTICA DE SI

    Há quem diga que artesanato é meramente o ofício de produzir um artefato manual. Para mim, significa muito mais que isso, é um modo de vida, é a tradução da cultura de um povo, de uma região, que tem a sua identidade reconhecida através da riqueza do seu trabalho, das cores, do material usado, da qualidade da produção e, principalmente, pela tradição da arte da manufatura [...]. Na minha vida, em particular, ele é parte inerente, respiro, sonho e vivo..., sou fascinada pelo que faço e, por esse motivo, fiz do artesanato a minha profissão. Tenho orgulho de ser artesã e travo uma batalha constante em busca da superação, procuro cada vez mais aprimorar a qualidade do que produzo e fazer dela o diferencial do meu trabalho. Primeiramente, acho que a pessoa tem que amar o que faz, ser feliz fazendo arte e se divertir ao máximo criando. Ter persistência, não desistir ao primeiro obstáculo, aprender sempre, criar um diferencial e acima de tudo, buscar incansavelmente a qualidade do produto e de seu acabamento, são itens imprescindíveis e com certeza, o sucesso será inevitável. (Gusmão, 2009, s/p.)

    Esse fragmento de entrevista da artesã Louise de Gusmão, registrada no Blog um tipo de mágica, em 1 agosto de 2009, tem algo em comum com as narrativas das interlocutoras deste livro, quando elas falam sobre o sentido de serem professoras de Teologia e do empenho que precisam fazer para construir a legitimidade da docência feminina nas instituições católicas. Aqui, a artesã fala de sua paixão pela profissão que exerce. Sua arte é mais do que apenas um artefato, traduz o seu modo de vida, a cultura e a identidade de um povo. Mais do que isso, é parte de si mesma, de sua subjetividade, do que respira, do que vive. É uma mística. É também uma batalha que exige esforço superação, reflexão e aprimoramento profissional. Costumamos compreender uma artesã³ vinculando a sua pessoa com a sua produção artística e com o modo como produz a sua obra de arte. Ou seja, alguém que transforma determinada matéria-prima em objetos; que tem o domínio de técnicas específicas; que tem proximidade com o resultado do seu trabalho. A conjugação desses elementos e o controle de todas as fases de produção de uma arte são os aspectos que caracterizam a produção artesanal e a distingue de uma produção industrial.

    A artesã faz de sua arte o seu espírito, sua criação, não é controle – é a imaginação reflexiva, é o poder da criação, do sonho, da fantasia, do esculpir a si mesmo no processo de criação que se projeta, é a acolhida do acaso, da imagem que nem sempre havia sido planejada. Ela não objetiva sempre um fim. Ela vive uma experiência situada, busca uma forma, um jeito de fazer o que idealiza no pensamento, mesmo se, por vezes, no caminho, o que desenha, o que constrói, não seja exatamente o que está posto em sua mente, no início da obra. As coisas se fazem também como uma dinâmica que dá vazão à liberdade criadora.

    A artesã geralmente é vista como uma pessoa empreendedora, apaixonada pelo que faz, com disposição pessoal, alguém que pela sua arte vai se definindo como pessoa e como profissional, ou seja, o seu fazer é parte do seu ser. Alguém que possui alto grau de intuição e de criatividade para ler e interpretar a realidade. Cada artesã ou artesão tem o seu próprio estilo, embora também carregue as marcas da influência do ambiente sociocultural em que vive e respira.

    O tornar-se professora de Teologia tem uma relação metafórica com o trabalho de um artesão ou artesã que se envolve com a sua obra. Estamos falando de mulheres artesãs que se constituem professoras ou sujeitos femininos de saber e, como uma obra de arte, o constituir-se é um processo que conjuga tempo, criatividade, estratégias específicas, ferramentas adequadas, paixão, resistência, reflexividade, desconstrução de modelos já formatados, inovação e interação sociocultural. Nesse processo, cada artesã faz o seu caminho e a sua experiência, ora se adequando às regras, ora resistindo ao poder normativo por meio de estratégias criativas e políticas. Trata-se de uma arte individual e coletiva porque as artesãs compartilham experiências, sonhos e pisam o mesmo chão sociocultural do universo teológico. Elas se produzem sujeitos femininos de saber a partir de uma ética de si, interagindo com as dinâmicas de gênero do campo teológico e criando estratégias de resistência, em vista de uma afirmação positiva do feminino, dentro de uma instituição hierárquica e masculina.

    Nesse sentido, Foucault (1994), em sua fase ético-política, sugere que se faz necessário relacionar a arte com a vida das pessoas que se constituem, decidindo sobre suas condutas e escolhas como uma postura de resistência crítica em relação aos códigos normativos.

    O que me surpreende, em nossa sociedade, é que a arte se relacione apenas com objetos e não com indivíduos ou a vida; e que também seja um domínio especializado, um domínio de peritos, que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não é uma obra de arte? Porque uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas não as nossas vidas? (Foucault, 1994, p. 617)

    Foucault argumenta que, no plano da estética da existência, o poder se transforma em ação inventiva de si, de outros modos de vida e de práticas de liberdade. Na sua visão, isso se constitui em uma ação política, porque abre um campo de possibilidades na arte de resistir e de produzir-se, na relação com as dinâmicas normativas dos poderes. Na estética da existência, a ação do produzir-se sujeito se realiza por meio de práticas de resistência, de liberdade e de reflexividade. Trata-se de uma relação interativa e crítica que enfraquece os limites e as fronteiras estabelecidas pelos poderes normativos. Desse modo, quando Foucault propõe uma análise no campo político a partir da constituição ética dos sujeitos ou da produção da própria subjetividade, a ética e a estética da existência aparecem conectadas.

    É com essa perspectiva crítica, resistente, contraditória, interativa e política que se procura compreender como as mulheres produzem a sua arte, ou seja, como se tornam professoras de Teologia, no artesanato de si mesmas, cuja construção aparece marcada por uma afirmação positiva da diferença de gênero ou de uma ética da diferença sexual, nos termos de Irigaray (2010) e de Braidotti (1999; 2004). Esses conceitos, e a concepção de mulher como posicionalidade política, segundo a compreensão de Alcoff (1988), Costa (2002) e Braidotti (2004), são fecundos para compreender a construção da liberdade e da autonomia das mulheres docentes, as quais, ainda que em meio a relações contraditórias, aparecem engajadas na produção da própria arte, opondo-se à ética do sujeito universal que, ao longo da história, reduziu a mulher ao Outro, ou seja, um ser inferior e despossuído de capacidade racional. É neste sentido que a diferença ganha emergência política.

    Portanto, esta obra pautada na compreensão das narrativas das docentes procura evidenciar as estratégias que elas produzem para constituírem-se artesãs de si mesmas, ou seja, sujeitos femininos da docência em Teologia, em um lugar que ao longo da história foi considerado de exclusividade do sujeito masculino. No ato de narrarem-se, elas se produzem sujeitos reflexivos, no sentido descrito pelo sociólogo Dubar (2004, p. 63), isto é, enquanto um ator que busca certa unidade de si mesmo por meio de suas lógicas de ação. Um sujeito que se relata através dos acontecimentos, de sua biografia, concedida como narrativa de si mesmo⁴. Nesse processo, pode-se observar que as docentes assumem a posição de Mulher, que pode ser lida como um contraponto à norma de gênero da ordem simbólica masculina.

    Mesmo que para esta obra foram selecionados fragmentos pontuais das narrativas das docentes⁵, eles compõem um modo de expressão narrativa, coerente com o conjunto das experiências que se revela no interior de cada ato narrativo, a respeito do que elas são, como se fazem, como se pensam e como se traduzem; como se revelam e escolhem narrar aspectos de sua história, de sua identidade profissional, de seu modo de ser, de resistir e de perceber o universo do ensino da teologia católica, partindo do contexto em que estão inseridas. Narram as relações desse universo de conhecimento com os conteúdos imbricados nesse saber, em seu campo de atuação, bem como sobre o modo como se compreendem fazendo parte dele e produzindo saberes no seu interior.

    O artesanato como construção de si pode ser compreendido dentro do processo da narrativa biográfica, que se coloca para além de uma história de redes e de relações familiares, institucionais, profissionais, de amizades, de tensões. Trata-se de uma construção de si, produzida pelas mulheres na sequência de acontecimentos e de experiências socioeclesiais, selecionadas por essas professoras para se contarem a si mesmas e se definirem como tais (Dubar, 2004). Dessa forma, ao se contarem essas, docentes constroem uma narrativa de si e do seu devir sujeito feminino e, evidentemente, selecionando fatos, experiências posições de mundo, tanto quanto estejam sendo coerentes com seu eu reflexivo, com o seu modo de perceber os sentidos da construção de uma trajetória, na qual existe coerência entre os conteúdos e os valores que se produzem para si e para o grupo que elas representam⁶. Além disso, estamos conscientes de que a narrativa e a expressão artesanal também se fazem em situação de entrevista, em que o ato de perguntar instiga a reflexão.

    Notas

    3. Opto por usar essa imagem no feminino, considerando que ele vale para um artesão.

    4. Considero que as próprias narrativas das mulheres já é uma ação, porque elas falam do eu, dos acontecimentos, das experiências, cuja ação também as constitui sujeito.

    5. Essa opção foi assumida diante do número de entrevistas realizadas e os fragmentos são tomados a partir de um recorte temático, que visa dar conta do objetivo desta obra

    6. A valorização da narrativa do eu na perspectiva da construção da autoidentidade é igualmente citada por Giddens (2002) e Lauretis (1994), sobretudo quando essa autora defende a proposição de que o gênero também se produz por meio da autorrepresentação, em que as novas narrativas aparecem como fundamentais para este

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