Dioniso Matuto: Uma Abordagem Antropológica do Cômico na Tradução de Acarnenses de Aristófanes para o Cearensês
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Dioniso Matuto - Ana Maria César Pompeu
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
Dedico este livro a Uruburetama, minha terra natal, no interior cearense, onde o matuto e o citadino se mesclam o tempo todin
pela alegria da vida natural do pé de serra.
Agradecimentos
A Deus, que me deu todos os adjuvantes: pais, mestres, alunos, amigos e irmãos.
À minha colaboradora no Estágio Pós-Doutoral, Profª Dr.a Maria de Fátima Silva, por sua competência, dedicação e bom humor nos estudos aristofânicos.
Agradeço à Capes, que me cedeu a bolsa de estudos (BEX 3662/09-8), sem a qual seria impossível a realização do Estágio Pós-Doutoral em Coimbra-Portugal com a colaboradora anteriormente citada.
Agradeço à Funcap, que me cedeu bolsistas – PIBIC/UFC – como coadjuvantes nos trabalhos de revisão e notas da minha pesquisa.
Ao GECA, Grupo de Estudos da Comédia Aristofânica, que coordeno desde 2010, pelas leituras e encenações da peça Acarnenses traduzida.
À Universidade Federal do Ceará/Fortaleza, ponto de saída e chegada desta pesquisa.
Apresentação
As narrativas míticas sobre o deus Dioniso comungam aspectos delirantes e libertadores confirmados nos seus rituais, que se tornaram indispensáveis à cidade. Em Bacantes de Eurípides, quem não acolhe o deus do delírio báquico é destruído por ele; na peça cômica As Rãs de Aristófanes, Dioniso com o seu teatro é fundamental para boa constituição da pólis. A cidade grega instituiu cultos ao deus Dioniso para se manter como cidade. Há festivais dionisíacos durante todo o ano do calendário grego e em todas as localidades: Grandes Dionísias ou Dionísias Urbanas (Elaphebólion, março), com concursos dramáticos; Leneias (Gamélion, janeiro), com concursos dramáticos, após 450 a.C.; Anthestérias (Anthestérion, fevereiro), o mais antigo festival de Dioniso: abertura dos tonéis de vinho novo; casamento ritual da sacerdotisa, esposa do Arconte-Rei, com Dioniso; Dionísias Rurais (Poseidéon, dezembro), as procissões falofóricas; Oscophórias (Pianépsion, outubro), corridas de jovens portando ramos de parreira com cachos de uva.
A licenciosidade permitida, a aiskhrologia, burla embriaguez, obscenidade, fertilidade, renovação, são características dos festivais dionisíacos, que traduzem uma comunhão de todos os ritos de renovação existentes em todas as culturas, orientais ou ocidentais, cujas primeiras manifestações talvez se voltassem à sequência de noite e dia, inverno e verão. Enfim, a conclusão de um ciclo e seu reinício, o ano velho e o ano novo, como até hoje comemoramos em todos os lugares do mundo. Na atualidade, festejamos o Carnaval, a maior festa popular, que une rituais pagãos às comemorações cristãs: a Quaresma e a Semana Santa, com Paixão e Ressurreição de Cristo, que se seguem ao Carnaval na despedida da carne
. Dioniso é um deus que morre e renasce e que representa a morte, pela tragédia, e a ressurreição, pela comédia. A mais antiga festa de Dioniso, as Anthestérias, acontecia em fevereiro, coincidentemente no mesmo período em que se comemora o Carnaval. A morte do ano velho e o seu renascimento em um novo ano talvez traduzam o trágico e o cômico dionisíacos.
A comédia, komoidía, o canto de grupos de foliões
, tem sua origem, segundo Aristóteles, na Poética (1449a), a partir dos solistas dos cantos fálicos. Tais cantos eram entoados durante o ritual dionisíaco das Falofórias, procissões em que se transportava um falo de madeira, representativo do deus. Aristófanes, o maior comediógrafo da Antiguidade, único representante da comédia antiga grega de quem temos peças completas, nos apresenta o mais antigo registro de um canto fálico, em uma paródia ao ritual das Dionísias Rurais, em Acarnenses, de 425 a.C. A peça tem como tema um apelo à paz, pois Atenas estava envolvida, desde 431 a.C., na guerra do Peloponeso. O protagonista dessa comédia é Diceópolis, Cidade Justa
(Justinópolis, na nossa tradução), único entre os atenienses a desejar as tréguas com os espartanos, para voltar a ter uma vida de fartura e paz em seus campos. Ele consegue, por meio de um artifício cômico, negociar as pazes somente para si e sua família. E as tréguas – do grego spondai, palavra que, no singular, significa libação
– apresentam-se na comédia em forma de vinho, trazendo a representação do deus do teatro como o portador da paz. Diceópolis então festeja suas tréguas, celebrando as Dionísias Rurais.
Trata-se de uma paródia de um canto fálico, mas todos os elementos essenciais de uma comédia, encontrados nas peças do próprio Aristófanes, estão presentes nela: Phales é tratado com termos obscenos, que, certamente, são de seu agrado; há a comilança, a bebedeira, o sexo propriamente dito e a paz que permite tal celebração. Aristófanes parece ter retratado nessa paródia o que seria uma comédia originária, e o próprio poeta, na figura do protagonista Diceópolis, seria um primeiro comediógrafo. Para a comédia, então, uma cidade justa, Diceópolis
, seria aquela que preservasse a paz com todas as suas boas consequências.
Atualmente, há uma manifestação tipicamente rural, que também, como a comédia de Aristófanes, traz o campo com sua paz e boas consequências para a cidade, na forma de um espetáculo: são as Festas Juninas ou Joaninas, como se designavam nos seus primórdios, por causa do santo principal celebrado desse período, São João Batista. Essas festas trazidas de Portugal para o Brasil e adaptadas à mistura de raças do nosso povo foram transformadas em uma verdadeira manifestação popular, integrando desde traços de sua origem europeia até costumes matutos do Nordeste brasileiro. Muitas associações podem ser feitas entre as brincadeiras e folguedos das Festas Juninas e os dos Rituais Dionisíacos nas suas expressões de fertilidade e rejuvenescimento da natureza e do homem: nas bebedeiras, nas comilanças e nas brincadeiras rústicas, nas encenações cômicas e nas mascaradas, com músicas e danças; nas quadrilhas (dança do coco, dança portuguesa) com casamento matuto (que também lembra o casamento ritual de Dioniso com a esposa do Arconte-Rei); no bumba meu boi ou bumba-boi, que em muitos lugares é representado próximo à época do Natal como reisados, mas que, em São Luís do Maranhão, por exemplo, representa-se especialmente nas Festas Juninas. O bumba-boi é interessante ao nosso estudo, porque podemos relacioná-lo às máscaras de animais das comédias antigas (aves, rãs, vespas) ou mesmo às dos dramas satíricos: os sátiros eram homens-bodes. Ressalte-se especialmente o aspecto sexual desses rituais, como o Santo Antônio casamenteiro e a representação fálica do pau de Santo Antônio
nas Festas Juninas em Barbalha, no Ceará, na região do Cariri, por exemplo. Tal menção nos faz voltar às Falofórias das Dionísias Rurais, de onde surge a comédia.
Muitas são as semelhanças entre as festividades juninas e os rituais dionisíacos, especialmente as Dionísias Rurais que deram origem à comédia, dos que entoavam os cantos fálicos. A tradução da peça Acarnenses no falar matuto cearense é a concretização de toda a pesquisa acerca dos rituais dionisíacos na Grécia e sua relação antropológica com as festividades juninas no Nordeste brasileiro.
Ana Maria César Pompeu
PREFÁCIO
De Atenas do séc. V a.C. até o Ceará de hoje
Foi em 425 a.C. que um ainda jovem Aristófanes ofereceu à Atenas uma das suas criações mais bem sucedidas e, para nós, a primeira comédia europeia que conservamos na íntegra: Acarnenses. Tratava-se de mobilizar um auditório essencialmente citadino, mas bem heterogêneo na sua constituição – afinal o teatro reunia toda a população masculina da cidade – para aqueles que eram os problemas do momento: um confronto entre a guerra, que grassava e dizimava gentes e patrimônio, e uma paz idílica, no campo, por que alguns começavam a suspirar; a penúria social de que certas populações, afetadas pelo conflito, estavam a ser vítimas; e a disparidade de interesses entre os que amealhavam fortunas com os negócios que a guerra sempre proporciona, perante os que simplesmente se viam despojados do essencial. A primeira mensagem era, portanto, didática, de intervenção política, no respeito pelo que foi sempre uma prioridade para o teatro grego antigo.
Mas o teatro foi também sempre festa, com uma marca religiosa de fundo, em que Dioniso, o deus da fertilidade e também do ritual em que a representação dramática se integrava, exercia o seu poder. E Aristófanes multiplicou, na sua produção de 425 a.C., os rituais, sobretudo aqueles que se associam com a prosperidade e a alegria que só uma paz duradoura consente. Em cortejos rústicos – como as Dionísias Rurais com que um Diceópolis (Cidadão Justo
) comemorava a trégua conseguida para si e para a sua família – ou em festejos citadinos – como as Antestérias e os seus concursos de bebida, nos quais o mesmo Diceópolis colhia o troféu da vitória –, o protagonista festeja, com a exuberância de uma verdadeira felicidade, o prazer de uma trégua a tão duras penas conquistada. Ao mesmo tempo que o público ateniense festeja o Dioniso nas Leneias, o festival em que a própria comédia se inseria.
Mesmo se comprometida com o imediato histórico de uma distante Atenas, a criação que, em homenagem aos seus concidadãos do subúrbio de Acarnas, primeiras vítimas da guerra por sua exposição às incursões inimigas, Aristófanes representou nesse ano longínquo aos públicos de hoje o prazer do reencontro e da sintonia. Claro que o contexto é outro, mas a experiência com o que há de mais próxima para uma sociedade como a nossa que também conhece os efeitos dos conflitos prolongados e violentos, da miséria que impõem às populações civis, e o anseio por uma paz idílica e generosa que conforte os corpos e os espíritos.
Ainda mais, o mundo dionisíaco, tão ligado ao vigor dos campos, à alegria das colheitas, ao prazer do vinho novo consumido em