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Olho a olho com a Medusa
Olho a olho com a Medusa
Olho a olho com a Medusa
E-book188 páginas2 horas

Olho a olho com a Medusa

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Sobre este e-book

"Olho a olho com a Medusa" é uma coletânea de contos sobre tabus, qualquer prática social reprovável moral, religiosa ou culturalmente, qualquer padrão impuro dentro de uma cultura, um deslize na convenção de uma sociedade, um interdito que, às vezes, escapa pelos dedos das mãos, pelas brechas da alma, pelos desejos incontidos. Evidentemente, essa obra não é abrangente e, portanto, não chega a abordar todos os tabuísmos existentes, mas serve como uma pitada de tempero ao nosso universo de condutas que se metamorfoseiam a meio do caminho entre o privado e o público, independente do querer. Uma coletânea de fissuras humanas criando um universo de vozes e subjetividades que permeiam nosso inconsciente sem qualquer outra discriminação que não seja a literária.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de jul. de 2020
ISBN9786599004827
Olho a olho com a Medusa

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    Olho a olho com a Medusa - Sandra Werneck

    capa do livro Olho a olho com a Medusa de autoria de Sandra Werneck. Livro editado pela CJA Editora e Convertido em formato digital por Cláudio Araújo.Folha de rosto do livro Olho a olho com a Medusa.

    Sumário

    Capa

    Folha de Rosto

    Contos

    Créditos

    Palavra ao leitor

    Racismo, Messias

    Pedofilia, O Olhar

    Loucura, O Amor

    Maternidade, Amor que não se mede

    Traição, Os olhos de quem não sabe enxergar

    Homossexualidade, Carnaval

    Desejo, O Bartender

    Morte, A Vingança

    Nudez, O Corpo Nu

    Vingança, O Flanelinha

    Fracasso, O jogo de futebol

    Roubo, A lição

    Drogas, Uma viagem dos sonhos

    Sexualidade, Chuva de besouros

    Eutanásia, Paçoca

    Geofagia, A comedora de terra

    Grotesco, Um conto para o frango Mike

    Homicídio, Uma alma no meu caminho

    Engano, A vendedora de histórias

    A Volta do vendedor de palavras

    Masoquismo, O gato cachorro

    Cobiça, O Louboutin

    Canibalismo, O ocaso dos indignados

    Hipocrisia, A decisão

    Aborto, O erro

    Doença, Reflexão

    Tormento, O corvo

    Suicídio, Ângela

    Incesto, A consulta

    Luxúria, Anatomia de uma loucura

    Zoofilia, A amante

    Sobre a autora

    © Copyright 2017 de Sandra Werneck

    Capa, Projeto gráfico e diagramação

    Waldelino Duarte

    Foto da capa

    Raphael Francavilla

    Edição

    Cleudivan Jânio de Araújo

    Revisão

    Sandra Godinho Gonçalves

    Conversão em epub

    Cláudio Edijanio de Araújo

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    W524o

    Werneck, Sandra

    Olho a olho com Medusa [recurso eletrônico] / Sandra Werneck. – 1. ed. - Natal [RN]: CJA, 2020.

    recurso digital; 1 MB

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-65-990048-2-7 (recurso eletrônico)

    1. Contos brasileiros. 2. Livros eletrônicos I. Título.

    Todos os direitos reservados.

    Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por quaisquer meios, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravações ou qualquer tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia permissão, por escrito, da editora.

    Contatos:

    EDITORA CJA LTDA

    Rua Justino Xavier de Souza, 2274 - Nossa Senhora de Nazaré - 59062-340 Natal/RN

    cjaedicoes@gmail.com / www.editoracja.com.br

    84 99953-5466

    Palavra ao leitor

    Medusa é uma personagem conhecida da mitologia grega. Seu rosto horrendo, seus dentes de javali e as peçonhentas cobras no lugar dos cabelos causavam a petrificação de quem olhasse para seus olhos. O mesmo efeito tem os tabus. Todos evitam o contato com os tabus tal qual os gregos de outrora fugiam aterrorizados de um simples relance com a criatura mitológica. Nesta coletânea de contos, Sandra Werneck, como Perseu, lançou-se em busca das Medusas erigidas pela nossa sociedade, trazendo em suas páginas os rostos para apreciação dos leitores.

    São trinta contos que abordam os mais diversos tabus. Messias, a criança racista que se vê obrigada a rezar para São Benedito, o fotógrafo capturado pela sua modelo, a viúva solitária, o obstetra que vê a gestação como natural de toda mulher, uma paixão não correspondida de carnaval, um bartender insone e perdido de desejo, uma esposa traída que resolve se vingar, um corpo nu que incita à liberdade, o cobrador de ônibus que se recusa a pagar o guardador de automóveis, o corrupto que teme por sua virilidade mais que a justiça, o casal francês envolvido em tráfico de drogas, a adolescente que desabrocha para o sexo, a morte sem sofrimento para os sem-esperança, a menina que come as paredes para libertar-se do mal que a aflige, o frango que se nega a morrer, o delegado assassino, a vendedora de estórias que rivaliza com o vendedor de palavras, a moça apaixonada pelo gato cachorro, a atendente da sapataria que é seduzida pelo sapato elegante, o marido que não quer ser abandonado pela esposa, a menina imensada que sonha com um namorado, o marido que se nega a ser pai, o psicólogo que padece de neuroses são vozes que personificam as diversas subjetividades nesse caleidoscópio humano que nos habitam.

    As medusas já foram determinadas. E dominadas. Já estão postas à sua frente, leitor. Tudo pronto para esse exercício intrigante, ainda que cause desassossego. Agora falta o seu movimento. Estás pronto para ficar olho a olho com a Medusa?

    Racismo

    Messias

    Messias era um mineirinho que sabia falar com os pés, melhor dizendo: sabia falar com a bola como se com ela trocasse confidências. Com outros meninos de dez anos como ele, metia-se em embates, saltava pelos ares, pela relva, pela terra ou qualquer outro chão onde a bola corresse livre. Juntos escolhiam o território, inspecionavam o chão, separando-o das pedras e de outras impurezas que maculassem o solo, tiravam os sapatos surrados dos pés e com eles demarcavam o gol, despindo-se das camisas para salvá-las das sujidades. Em seguida, embrenhavam-se na disputa onde pernas, olhos e bola permaneciam tão inquietos quanto seus destinos.

    Depois do jogo terminado, Messias se despedia dos caçadores de aventuras, colocava a bola debaixo do braço e rumava à casa satisfeito, com o cuidado de esconder a redondinha no fundo do quintal. Cruzava o umbral da porta, pé por pé, sem chamar vistas à sua mãe, que da cozinha vigiava o mundo, dentro e fora, perto e longe, terra e céu. Então, ele atravessava o mar de cheiros e aromas vindos de caldeirões, condimentos e poções, na certeza de que tinha se fartado do dia, sem sangue, nem quebradura de osso, nem desmentidura no corpo, satisfeito com a vida.

    Por vezes, seus pés sangravam doridos, mas nada além da disputa da bola importava. Bem, talvez outras travessuras. E brigas, especialmente as que seu irmão mais velho danava a arrumar para Messias como um rito de passagem, tão viril e valente que até ele se admirava da ousadia. Então, os pés ganhavam nova serventia, chutes e rasteiras tornavam-se tão ágeis quanto uma dança. As brigas começavam logo cedo, antes de Messias ir à escola, quando chegava no canto da rua para atentar os vizinhos:

    Vou comprar a rua para negro não passar!

    Ao final das aulas, a plateia já estava formada, com torcedores dos dois lados. Apostas feitas, punhos cerrados, a sorte lançada. Messias se aplicava, não querendo fazer desfeita ao irmão e nem às apostas. Negros de um lado, brancos de outro. E os contendores se agarravam, rolavam, chutavam, faziam de tudo para honrar as calças. Luta ou peleja, ele entrava em casa sempre sorrateiro, trocava a roupa suja, almoçava e saía de novo com a bola debaixo do braço, catando os amigos pelo caminho. No fim da tarde, quando ele retornava sujo, sua mãe ralhava:

    Messias, o que você andou fazendo?

    Estou cansado agora, mãe!

    Jogando bola ou arranjando briga?

    Uma bruxa que tinha olhos nas costas, era o que a mãe lhe parecia às vezes, porque a mulher sabia ver sem os olhos. Além disso, sempre conjurava feitiços ao São Benedito que trazia na cozinha, coisa comum nas copas daquele canto do mundo. Especialmente à noite, antes de dormir, Messias ouvia a mãe pedir à imagem que os abençoasse, recolhendo as estrelas e a lua para que o mundo voltasse a ser princípio e a paz reinasse no silêncio da noite. Mania de mãe querer tratar tudo com o santo. Messias não rezava porque sua mãe rezava por ambos, afinal, meninos como ele já falavam a linguagem dos anjos. E mesmo que ele rezasse, não saberia o que pedir a Deus porque não era menino afeito a silêncios.

    Ao nascer do sol, Messias renascia, engordava a alma. Cuidava de limpar o corpo porque o espírito já se recobrava de energia. E quando chegava à cozinha para o desjejum, sua mãe se despachava em pressa com o leite fresco já fervido, a broa de milho separada em cima da mesa e o copo de café fumegante deixado ao lado do santo para a proteção especial. Na volta da escola, parecia mesmo que o padroeiro tinha tomado seu gole, porque o conteúdo do copo minguava a olhos vistos. Nunca questionou. Com a fé, sua mãe não admitia graça. Depois do almoço bem regado, o menino já se regalava no quintal em busca da redondinha para começar tudo outra vez. A mãe ralhava:

    Já vai sair? E os estudos?

    O menino ganhava ares de arrogância e respondia:

    Na rua também se aprende!

    Na bola, garrava amor. Saía catando os colegas de porta em porta até darem todos no campo de costume para nova peleja. Assim a bola rolava, perseguida por mil pares de pernas e uma névoa fina de poeira que viajava no ar como uma miragem ingênua feita da alegria de crianças. E os gritos ecoavam, e as pernas se abriam, e os peitos arfavam, prisioneiros do instante infinito feito de magia. Havia de se aprender a ser dono do mundo sem nada ter. Havia de se aprender a correr e a cair. Mas nessa aventura de ser menino, de um tranco, Messias foi ao chão em urros de dor. Do joelho, a água passou a brotar feito nascente, causando inchaço e sofrimento. Reclamou com a mãe:

    Onde a fé é pouca, o afago de Deus é tão doído quanto a morte!

    Ah, menino insolente! Pois saiba que agora tu mesmo vai pagar a promessa para a tua cura!

    O menino padeceu, menos por causa da dor e mais por causa da paga: tão logo sarasse, tomaria parte na congada de São Benedito travestido de anjo. E nesse tormento, entre o desejo da cura e o medo de parecer o que nem de longe era, o menino Messias se consumia. O trato da mãe com o santo não se desfez, nem com a reza brava que ele aprendeu a custo e a qual recorria todas as noites. Também à base de rezas, o joelho do garoto se recuperou e a mãe passou das beberagens à costura, tecendo asas feitas de algodão que se abriam às costas por uma armação de metal. Não faltou a auréola prateada que pairava sobre sua cabeça pequena e nem a túnica branca que pairava sobre seus pés miúdos. Só faltou mesmo a coragem.

    Anjo que me guarda, não quero viola, nem congada!

    Não faça desfeita a teu santo protetor, Messias!

    Assim, ao som de batucada e tambor, o terno de congo passou em cadência na data prevista em frente à casa do menino e ele engrossou a procissão com sua passada ritmada, ele e todos os outros: os que eram pagadores de promessa e os que estavam em vias de o ser. Tinha até fotógrafo para registrar o momento.

    Messias seguia contrito, destoando da alegria do cortejo e dos congadeiros que, de chapéu de fitas coloridas na cabeça, gingado no pé e tamborim na mão, ajudavam na gratidão ao santo mulato entoando cantigas. Seguiam de casa em casa e de rua em rua até a procissão circundar a praça do coreto e chegar à Matriz, repleta de fiéis, ao som dos sinos e cânticos.

    Messias, incomodado dentro da roupa imaculada e com o peso das asas, se espremia na igreja abarrotada de gente. O tatalar de suas asas ecoava na nave principal, passando a lhe espetar o rosto à medida que adentrava o centro do altar para alcançar a imagem do milagreiro. Tudo lhe angustiava: a roupa, os fiéis, a situação feita de ironia. Então, o anjo Messias se ajoelhou para o pagamento final com rezas e óbulos.

    Foi quando o menino reparou no rosto da imagem. Podia jurar que o santo lhe abria um sorriso, mas não era um sorriso qualquer. Este não tinha nada a ver com as contrações musculares da face escurecida, decerto porque nascia da troça, a camada mais secreta do ser. Teve vontade de cuspir no copo de café quente deixado ao santo pela manhã, mas pensou melhor. O milagreiro era negro, mas não era

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