Olho a olho com a Medusa
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Pré-visualização do livro
Olho a olho com a Medusa - Sandra Werneck
Sumário
Capa
Folha de Rosto
Contos
Créditos
Palavra ao leitor
Racismo, Messias
Pedofilia, O Olhar
Loucura, O Amor
Maternidade, Amor que não se mede
Traição, Os olhos de quem não sabe enxergar
Homossexualidade, Carnaval
Desejo, O Bartender
Morte, A Vingança
Nudez, O Corpo Nu
Vingança, O Flanelinha
Fracasso, O jogo de futebol
Roubo, A lição
Drogas, Uma viagem dos sonhos
Sexualidade, Chuva de besouros
Eutanásia, Paçoca
Geofagia, A comedora de terra
Grotesco, Um conto para o frango Mike
Homicídio, Uma alma no meu caminho
Engano, A vendedora de histórias
A Volta do vendedor de palavras
Masoquismo, O gato cachorro
Cobiça, O Louboutin
Canibalismo, O ocaso dos indignados
Hipocrisia, A decisão
Aborto, O erro
Doença, Reflexão
Tormento, O corvo
Suicídio, Ângela
Incesto, A consulta
Luxúria, Anatomia de uma loucura
Zoofilia, A amante
Sobre a autora
© Copyright 2017 de Sandra Werneck
Capa, Projeto gráfico e diagramação
Waldelino Duarte
Foto da capa
Raphael Francavilla
Edição
Cleudivan Jânio de Araújo
Revisão
Sandra Godinho Gonçalves
Conversão em epub
Cláudio Edijanio de Araújo
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
W524o
Werneck, Sandra
Olho a olho com Medusa [recurso eletrônico] / Sandra Werneck. – 1. ed. - Natal [RN]: CJA, 2020.
recurso digital; 1 MB
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-990048-2-7 (recurso eletrônico)
1. Contos brasileiros. 2. Livros eletrônicos I. Título.
Todos os direitos reservados.
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Palavra ao leitor
Medusa é uma personagem conhecida da mitologia grega. Seu rosto horrendo, seus dentes de javali e as peçonhentas cobras no lugar dos cabelos causavam a petrificação de quem olhasse para seus olhos. O mesmo efeito tem os tabus. Todos evitam o contato com os tabus tal qual os gregos de outrora fugiam aterrorizados de um simples relance com a criatura mitológica. Nesta coletânea de contos, Sandra Werneck, como Perseu, lançou-se em busca das Medusas erigidas pela nossa sociedade, trazendo em suas páginas os rostos para apreciação dos leitores.
São trinta contos que abordam os mais diversos tabus. Messias, a criança racista que se vê obrigada a rezar para São Benedito, o fotógrafo capturado pela sua modelo, a viúva solitária, o obstetra que vê a gestação como natural de toda mulher, uma paixão não correspondida de carnaval, um bartender insone e perdido de desejo, uma esposa traída que resolve se vingar, um corpo nu que incita à liberdade, o cobrador de ônibus que se recusa a pagar o guardador de automóveis, o corrupto que teme por sua virilidade mais que a justiça, o casal francês envolvido em tráfico de drogas, a adolescente que desabrocha para o sexo, a morte sem sofrimento para os sem-esperança, a menina que come as paredes para libertar-se do mal que a aflige, o frango que se nega a morrer, o delegado assassino, a vendedora de estórias que rivaliza com o vendedor de palavras, a moça apaixonada pelo gato cachorro, a atendente da sapataria que é seduzida pelo sapato elegante, o marido que não quer ser abandonado pela esposa, a menina imensada que sonha com um namorado, o marido que se nega a ser pai, o psicólogo que padece de neuroses são vozes que personificam as diversas subjetividades nesse caleidoscópio humano que nos habitam.
As medusas já foram determinadas. E dominadas. Já estão postas à sua frente, leitor. Tudo pronto para esse exercício intrigante, ainda que cause desassossego. Agora falta o seu movimento. Estás pronto para ficar olho a olho com a Medusa?
Racismo
Messias
Messias era um mineirinho que sabia falar com os pés, melhor dizendo: sabia falar com a bola como se com ela trocasse confidências. Com outros meninos de dez anos como ele, metia-se em embates, saltava pelos ares, pela relva, pela terra ou qualquer outro chão onde a bola corresse livre. Juntos escolhiam o território, inspecionavam o chão, separando-o das pedras e de outras impurezas que maculassem o solo, tiravam os sapatos surrados dos pés e com eles demarcavam o gol, despindo-se das camisas para salvá-las das sujidades. Em seguida, embrenhavam-se na disputa onde pernas, olhos e bola permaneciam tão inquietos quanto seus destinos.
Depois do jogo terminado, Messias se despedia dos caçadores de aventuras, colocava a bola debaixo do braço e rumava à casa satisfeito, com o cuidado de esconder a redondinha no fundo do quintal. Cruzava o umbral da porta, pé por pé, sem chamar vistas à sua mãe, que da cozinha vigiava o mundo, dentro e fora, perto e longe, terra e céu. Então, ele atravessava o mar de cheiros e aromas vindos de caldeirões, condimentos e poções, na certeza de que tinha se fartado do dia, sem sangue, nem quebradura de osso, nem desmentidura no corpo, satisfeito com a vida.
Por vezes, seus pés sangravam doridos, mas nada além da disputa da bola importava. Bem, talvez outras travessuras. E brigas, especialmente as que seu irmão mais velho danava a arrumar para Messias como um rito de passagem, tão viril e valente que até ele se admirava da ousadia. Então, os pés ganhavam nova serventia, chutes e rasteiras tornavam-se tão ágeis quanto uma dança. As brigas começavam logo cedo, antes de Messias ir à escola, quando chegava no canto da rua para atentar os vizinhos:
Vou comprar a rua para negro não passar!
Ao final das aulas, a plateia já estava formada, com torcedores dos dois lados. Apostas feitas, punhos cerrados, a sorte lançada. Messias se aplicava, não querendo fazer desfeita ao irmão e nem às apostas. Negros de um lado, brancos de outro. E os contendores se agarravam, rolavam, chutavam, faziam de tudo para honrar as calças. Luta ou peleja, ele entrava em casa sempre sorrateiro, trocava a roupa suja, almoçava e saía de novo com a bola debaixo do braço, catando os amigos pelo caminho. No fim da tarde, quando ele retornava sujo, sua mãe ralhava:
Messias, o que você andou fazendo?
Estou cansado agora, mãe!
Jogando bola ou arranjando briga?
Uma bruxa que tinha olhos nas costas, era o que a mãe lhe parecia às vezes, porque a mulher sabia ver sem os olhos. Além disso, sempre conjurava feitiços ao São Benedito que trazia na cozinha, coisa comum nas copas daquele canto do mundo. Especialmente à noite, antes de dormir, Messias ouvia a mãe pedir à imagem que os abençoasse, recolhendo as estrelas e a lua para que o mundo voltasse a ser princípio e a paz reinasse no silêncio da noite. Mania de mãe querer tratar tudo com o santo. Messias não rezava porque sua mãe rezava por ambos, afinal, meninos como ele já falavam a linguagem dos anjos. E mesmo que ele rezasse, não saberia o que pedir a Deus porque não era menino afeito a silêncios.
Ao nascer do sol, Messias renascia, engordava a alma. Cuidava de limpar o corpo porque o espírito já se recobrava de energia. E quando chegava à cozinha para o desjejum, sua mãe se despachava em pressa com o leite fresco já fervido, a broa de milho separada em cima da mesa e o copo de café fumegante deixado ao lado do santo para a proteção especial. Na volta da escola, parecia mesmo que o padroeiro tinha tomado seu gole, porque o conteúdo do copo minguava a olhos vistos. Nunca questionou. Com a fé, sua mãe não admitia graça. Depois do almoço bem regado, o menino já se regalava no quintal em busca da redondinha para começar tudo outra vez. A mãe ralhava:
Já vai sair? E os estudos?
O menino ganhava ares de arrogância e respondia:
Na rua também se aprende!
Na bola, garrava amor. Saía catando os colegas de porta em porta até darem todos no campo de costume para nova peleja. Assim a bola rolava, perseguida por mil pares de pernas e uma névoa fina de poeira que viajava no ar como uma miragem ingênua feita da alegria de crianças. E os gritos ecoavam, e as pernas se abriam, e os peitos arfavam, prisioneiros do instante infinito feito de magia. Havia de se aprender a ser dono do mundo sem nada ter. Havia de se aprender a correr e a cair. Mas nessa aventura de ser menino, de um tranco, Messias foi ao chão em urros de dor. Do joelho, a água passou a brotar feito nascente, causando inchaço e sofrimento. Reclamou com a mãe:
Onde a fé é pouca, o afago de Deus é tão doído quanto a morte!
Ah, menino insolente! Pois saiba que agora tu mesmo vai pagar a promessa para a tua cura!
O menino padeceu, menos por causa da dor e mais por causa da paga: tão logo sarasse, tomaria parte na congada de São Benedito travestido de anjo. E nesse tormento, entre o desejo da cura e o medo de parecer o que nem de longe era, o menino Messias se consumia. O trato da mãe com o santo não se desfez, nem com a reza brava que ele aprendeu a custo e a qual recorria todas as noites. Também à base de rezas, o joelho do garoto se recuperou e a mãe passou das beberagens à costura, tecendo asas feitas de algodão que se abriam às costas por uma armação de metal. Não faltou a auréola prateada que pairava sobre sua cabeça pequena e nem a túnica branca que pairava sobre seus pés miúdos. Só faltou mesmo a coragem.
Anjo que me guarda, não quero viola, nem congada!
Não faça desfeita a teu santo protetor, Messias!
Assim, ao som de batucada e tambor, o terno de congo passou em cadência na data prevista em frente à casa do menino e ele engrossou a procissão com sua passada ritmada, ele e todos os outros: os que eram pagadores de promessa e os que estavam em vias de o ser. Tinha até fotógrafo para registrar o momento.
Messias seguia contrito, destoando da alegria do cortejo e dos congadeiros que, de chapéu de fitas coloridas na cabeça, gingado no pé e tamborim na mão, ajudavam na gratidão ao santo mulato entoando cantigas. Seguiam de casa em casa e de rua em rua até a procissão circundar a praça do coreto e chegar à Matriz, repleta de fiéis, ao som dos sinos e cânticos.
Messias, incomodado dentro da roupa imaculada e com o peso das asas, se espremia na igreja abarrotada de gente. O tatalar de suas asas ecoava na nave principal, passando a lhe espetar o rosto à medida que adentrava o centro do altar para alcançar a imagem do milagreiro. Tudo lhe angustiava: a roupa, os fiéis, a situação feita de ironia. Então, o anjo Messias se ajoelhou para o pagamento final com rezas e óbulos.
Foi quando o menino reparou no rosto da imagem. Podia jurar que o santo lhe abria um sorriso, mas não era um sorriso qualquer. Este não tinha nada a ver com as contrações musculares da face escurecida, decerto porque nascia da troça, a camada mais secreta do ser. Teve vontade de cuspir no copo de café quente deixado ao santo pela manhã, mas pensou melhor. O milagreiro era negro, mas não era