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Por Trás Da Porta
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E-book366 páginas4 horas

Por Trás Da Porta

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Sobre este e-book

Excerto do prefácio Apresentar o livro Por trás da porta psicografado sob às nossas vistas corporais e espirituais, acompanhando a médium Sonia Vasconcelos, estando nesta encarnação com uma mediunidade complexa, o espírito Hashmed nos remete às descobertas do “eu” que caminha pelas existências sem perder, no entanto, sua essência primeira. Todo o livro foi psicografado em reuniões públicas, às terças e quintas-feiras sob a minha supervisão direta na fraternidade espírita “Amor e Luz”. [...] Acompanhando a história deste livro, aurimos forças para continuarmos em nossa jornada rumo à perfeição relativa que é o projeto salvífico de Deus, em sua economia divina de “O mesmo ponto de partida e de chegada” para todos os Seus filhos em todo o universo. Cada um a seu tempo podemos comprovar a misericórdia através das palavras de Jesus: “Se uma das minhas ovelhas se desgarrar, deixarei as noventa e nove ovelhas e irei buscar a ovelha perdida!” Não há maior mensagem de esperança quando neste tempo-espaço em que a humanidade passa pelo “choro e ranger de dentes” para uma nova era de aperfeiçoamento moral. Sente-se em jardim ou, perto de uma janela e viaje pelas páginas da certeza que o Pai sempre nos dará uma nova chance, mas não isentará das responsabilidades de nossa semeadura! Maria de Lourdes Alves de Araujo (Lourdinha) Diretora do Centro Espírita Amor e Luz Nova Viçosa, Bahia, 6 de junho de 2021
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de jul. de 2021
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    Pré-visualização do livro

    Por Trás Da Porta - Sônia Vasconcelos

    Dedicatória

    À Maria de Lourdes Alves de Araújo, minha irmã Lourdinha, cuja benevolência e caridade me ampararam, incitando-me ao estudo e à prática da prece e ao exercício da vigilância, dedico este trabalho.

    Apresentação

    Irmãos,

    A autorização para escrever as histórias de tantas vidas tem um sentido que ultrapassa os liames da curiosidade e da satisfação pessoal.

    Através do que ora descrevemos em forma de romance e estudo, há o caráter de interatividade, e muitos se encontrarão nestas páginas. De forma análoga ou não. Estendo a todos o convite de aqui se encontrarem. Perguntem às suas consciências: qual dos personagens eu poderia ser?

    As marcas dos nossos defeitos e das nossas qualidades fazem-se presentes de uma encarnação a outra como forma de direcionar nossa evolução. Através do inquirimento íntimo, há de se obter as respostas de que se precisa.

    À alma que comigo divide tantas vidas e experiências, espero incutir a coragem de continuar, para que juntos possamos servir ao universo divino, no amor que gera o serviço e expande a paz a todas as criaturas.

    Hashmed

    Nova Viçosa-BA

    23 de junho de 2006

    Recebida por Dra. Cecília Araújo

    Nova Viçosa, 28.02.2006

    Prefácio

    Apresentar o livro Por trás da porta psicografado sob às nossas vistas corporais e espirituais, acompanhando a médium Sonia Vasconcelos, estando nesta encarnação com uma mediunidade complexa, o espírito Hashmed nos remete às descobertas do eu que caminha pelas existências sem perder, no entanto, sua essência primeira. Todo o livro foi psicografado em reuniões públicas, às terças e quintas-feiras sob a minha supervisão direta na fraternidade espírita Amor e Luz.

    É um relato com personagens reais, onde Willian (Hashmed) e Elizabeth se reúnem em duas encarnações, entre dores e sofrimentos por várias vezes em busca do aperfeiçoamento que os permitira, enfim, viverem um dia como almas gêmeas.

    Respeitosamente, seguindo os fundamentos da Doutrina Espírita Kardecista, nosso irmão Hashmed nos traz ensinamentos profundos do Evangelho, através das experiências cármicas de um grupo de devedores que se reúnem para resgate em duas encarnações: nos séculos XV, no Egito e século XVIII, na Inglaterra. Os personagens da história podem ser qualquer um, eu ou você, amigo leitor, que se identifiquem nestes contextos.

    A graça e a misericórdia do Pai não podem ser entendidas dentro do contexto estreito de nossa materialidade.

    Acompanhando a história deste livro, aurimos forças para continuarmos em nossa jornada rumo à perfeição relativa que é o projeto salvífico de Deus, em sua economia divina de O mesmo ponto de partida e de chegada para todos os Seus filhos em todo o universo. Cada um a seu tempo podemos comprovar a misericórdia através das palavras de Jesus: Se uma das minhas ovelhas se desgarrar, deixarei as noventa e nove ovelhas e irei buscar a ovelha perdida! Não há maior mensagem de esperança quando neste tempo-espaço em que a humanidade passa pelo choro e ranger de dentes para uma nova era de aperfeiçoamento moral.

    Sente-se em jardim ou, perto de uma janela e viaje pelas páginas da certeza que o Pai sempre nos dará uma nova chance, mas não isentará das responsabilidades de nossa semeadura!

    Sigamos firmes na caminhada: este é o livro!

    Paz e bênção!

    Maria de Lourdes Alves de Araujo (Lourdinha)

    Diretora do Centro Espírita Amor e Luz

    Nova Viçosa, Bahia, 6 de junho de 2021

    Evoluindo na carne

    Amanhecera não havia muito em Londres, uma cidade cinzenta pelo fog do século XVIII. As ruas largas contrastavam com a estreiteza dos becos, com seus sombrios casarões, em cujos cômodos pessoas se amontoavam, na busca de aquecimento. A névoa molhada e fria enregelava os ossos, dando uma sensação de morte desamparada e iminente.

    Sir George Shaw desfilava pelas ruas olhando a miséria gerada pela pobreza que as chaminés de suas fábricas e as de muitos outros construíram. Os esgotos a céu aberto impregnavam o ar de odores fétidos e pestilentos. O cavalheiro bem-agasalhado no conforto maior e imoral de sua carruagem olhava a miséria com asco e pedia ao cocheiro que fustigasse a parelha de cavalos brancos para que ele não fosse obrigado a inalar por mais tempo aquele ar empestado, que tinha o poder de despertar-lhe sentimentos que ele não queria sentir. Teimavam em acordar-lhe remorsos que não sabia quais. Rostos macerados e tisnados passavam correndo pela janela da carruagem, no puro estilo nobre inglês. Crianças cobertas de trapos com compridas meias grosseiras e toucas úmidas nas cabeças, olhavam a carruagem passar com ar de subserviência e admiração. Odiava aquele povo que se acovardava diante das suas vidas roubadas pela política de cercamento da Revolução Industrial. Odiava as mulheres, com ridículas toucas de dormir e seus aventais de lã crua, formando bandos como ovelhas às portas da fábrica, a mendigar os xelins que enchessem suas barrigas de chá ordinário e pão grosseiro, a serem consumidos nos seus cômodos fétidos e infestados de ratos. Aqueles cubículos não poderiam ser chamados de lar. Mais do que de repente, sentiu saudades de sua casa e de seus lençóis de seda importados da pátria de seus ancestrais. Essa lembrança lhe trazia um misto de medo e tristeza. Lembrar sua ancestralidade! Não conseguia se livrar do pejo de sua origem. Apesar de seu avô ter vindo no século anterior do continente africano e enriquecido em terras britânicas com o comércio, a família ainda sofria discriminações sutis e dissimuladas. Algumas a meia boca, nos cantos dos salões. Ainda se referiam a eles como turcos, apesar de a família ter um título de nobreza comprado a peso de ouro.

    A mistura de lembranças, as cenas ininterruptas de fatos como a lhe cobrarem as injustiças, irritavam Sir George mais e mais. Batia com a bengala encastoada a ouro na poltrona fronteiriça sem conseguir dissipar a irritação angustiosa e insidiosa que lhe consumia os recônditos da alma querendo nela despertar o remorso. A cena de um garoto sem uma das pernas, se amparando numa muleta, com o rosto escuro de fuligem de carvão, onde se destacavam profundos e tristes olhos azuis, foi a gota na taça de amargura daquela torturada alma que se esponjava no álcool e na luxúria, evidenciando a falta de sentido da própria vida. O tesouro amealhado às custas de pernas e mãos decepadas, de meninos e meninas, a prostituição de mulheres e crianças e ainda o suicídio dos pais de família expulsos do campo pesavam-lhe de repente. Como se ele, só ele, fosse o responsável pelo peso daquele quadro degradante de miséria humana que faria ecoar seus gritos por muitos séculos numa corrente interminável de compromissos entrelaçados e dolorosos.

    Sir George afrouxou o nó do laço da gravata de seda e engoliu o ar com força em busca de alívio. Náuseas agoniavam-lhe e turvavam a mente já perturbada pelos vapores do muito uísque ingerido à larga no bordel de luxo que assiduamente frequentava, para esquecer amores comprados a peso de ouro e na tentativa de olvidar a escolhida do seu coração, como se a morte a tivesse levado.

    Não se curam dores através da fuga infrutífera e da aquisição de novos compromissos, mormente quando se usa do dinheiro para vencer pudores, fugir da miséria e do amor. Rouba do ser humano a dignidade e estarás roubando-lhe o direito sagrado de evolução. Tira-lhe a condição de homem pelo dinheiro e angariará um inimigo que lhe perseguirá até que se voltem para a luz. Muitos não se lembram que eterno é o tempo e que tanto pode ser aliado ou carrasco, dependendo das escolhas que faz cada um segundo seu arbítrio. (Eurípedes Barsanulfo)

    Sir George segurava a cabeça, que começava a encanecer, entre as mãos e a apertava para não ouvir aquelas vozes que lhe diziam coisas moralistas e fora de moda. Por vezes pensava estar ficando louco. Pensava, nestas horas, em buscar o pastor anglicano para aconselhar-se. Varria a ideia rapidamente. Apesar de ter que esconder a fé judaica de seus pais, nela fora criado e repugnava-lhe a ideia de obedecer a uma igreja que tinha como chefe supremo um monarca, corrupto e corruptor, investido de um falso direito divino. E essas confusões faziam-no buscar sempre mais nos prazeres puramente físicos a paz que seu espírito não podia encontrar.

    A ideia que surgira antes de não ir à fábrica para afogar-se na cama quente foi substituída por outra de caráter perverso. Influenciado por entidades que se revestiam de desejos de vinganças e chafurdavam naquele pântano de imoralidade, Sir George sentia-se dono de si e do mundo, quando, na realidade, não passava de um joguete de formas vampirizadoras, irmandade sofredora, companheiros de longa data cujo prazer era aurir forças do inimigo para continuarem vivos e à larga.

    Fora completamente seduzido pela possibilidade de aliviar-se através de suas explosões de raiva sobre seus subordinados e, assim, aplacar um resquício de remorso que teimava em despontar. Olhar de cima aqueles seres desprezíveis e sem vontade dava-lhe a segurança de que jamais desceria em tão baixa escala.

    Pensou na família e sorriu com escárnio. O filho, prestes a completar trinta anos, parecia viver alheio à realidade. Inteligência sem par para as letras e a justiça. O nó da questão é que só pensava naquela gentinha que se curvava como larvas sob as máquinas de fiar. Só falava da necessidade de mudanças, da atenção ao trabalho das crianças, como se o lucro fosse secundário.

    George esmurrava o ar, irritado: o parvalhão do filho se preocupava com aqueles farrapos humanos enquanto sua mulher, a doce Elizabeth, concedia seus favores a belos cavalheiros. Tão preocupado se encontrava em resolver problemas que não lhe diziam respeito que pouca atenção prestava ao que acontecia sob seus olhos. Sempre de conluio com a cunhada! Elizabeth e Soraya formavam um belo e depravado par que nem todos os prazeres da vida seriam capazes de saciar.

    Elizabeth! Linda, desejável e sensual, ofuscava com sua tez branca e seus olhos claros! Trazia escondido um mistério no nariz levemente aquilino. No fogo do olhar, o mundo de sua ancestralidade egípcia. Informação vaga e meio perdida propositalmente por sua família, que cuspia de nojo a cada vez que alguém usava o termo judeu. Os sucessivos casamentos com europeus descoraram a pele avelã, da maciez do pêssego, em translúcida cútis de porcelana fria, afeita a sabonetes finos e óleos penetrantes e perfumados que da Índia chegavam, regados à escravidão das lágrimas de dor e humilhação. Dor regando o vício disfarçado pelo odor penetrante do cio animal.

    A flor delicada que nasce no charco, torna-se presa fácil da lama que a rodeia se não possui raízes profundas no bem cultivado, em terra firme de alma proba. Imantada no grau da conquista espiritual que se constrói a duras provas com a superação dos vícios e da dependência da falsa felicidade. (Eurípedes Barsanulfo)

    Elizabeth, flor gerada no lodo da iniciação do orgulho e prepotência dos pais, sucumbia, desastrosamente, mais uma vez à má conformação moral de vícios pretéritos e graves.

    Agraciada por um consórcio que poderia lhe fornecer o equilíbrio necessário ao reajuste e ao crescimento moral, via no sisudo e sensível Willian nada mais que um instrumento de suas satisfações pessoais e egoístas. A roda social girava e, com ela, inexoravelmente, a dos compromissos; a jovem flor de vinte e dois anos diluir-se-ia novamente no vício do adultério, da ilicitude. Não das leis humanas, que serão sempre mutáveis e imperfeitas, mas das leis universais, às quais não ouse nenhum ser vivente questionar o valor, tampouco a justiça.

    Distraidamente debruçada sobre o balaústre do sobrado soberbo e extraordinariamente luxuoso, brincava com as madeixas que a pálida luz da manhã fazia adquirir tons indefinidos entre o mel e o ouro velho. Pensava nos folguedos da noite anterior, e o tom de sua pele avermelhava-se de prazer pelas lembranças. Centro das atenções, debaixo das camadas de seda e tule róseo, antes de parecer infantil, fazia-se mais desejável, pois era aparente menina, com fogo e luxúria a estampar-lhe no rosto os inconfessáveis desejos e pensamentos.

    Espiava por trás do leque os olhares babados dos homens presentes, a despeito da companhia das mulheres e filhas.

    Esquecia-se do marido ao lado. Susto apenas quando o criado comunicou:

    – Senhor conde e condessa de...

    Olhou para o consorte com indisfarçável fastio. A pele morena, que a Europa, inexplicavelmente, não conseguia clarear, tornava mais triste o semblante, já por si melancólico, de olhos permanentemente sombreados pelo ensimesmar, que aos olhos do mundo não coadunava com a situação privilegiada da qual gozava e que fazia a imponente e prepotente corte inglesa aceitá-lo, e à sua família, a despeito de sua obscura origem judaica. Ao contrário da mulher, que esbanjava fidalguia, em alegria falsamente cortês e da moda, Willian não conseguia esconder o descontentamento, algo que não entendia dava-lhe uma visão para além daquela aparência de brilho e fausto. Percebia sombras que se moviam indefinidas entre o farfalhar das sedas e dos perfumes sutis e inebriantes dos salões, repletos de uma angustiante carga asfixiante que lhe pesava a cabeça e, por segundos, turvava-lhe a visão. Vontade de fugir para o campo florido torturava-o, e sentia que suor pegajoso e gélido lhe cobria a face, emagrecida pelas noites tumultuadas de pesadelos que o acometiam com frequência e que aumentavam perigosamente.

    Willian, desde sempre, se sentia constrangido no mundo em que se inserira para resgate dentro de sua humanidade. Criado à larga, com todas as facilidades que o dinheiro podia oferecer, sentia-se como tolhido dentro de uma armadura que não lhe deixava livre o espírito sensível e amoroso.

    A ancestralidade se deslocara da África distante para a Europa tangida pelos ideais de riqueza fácil. Ali plantara suas raízes e, se se pode chamar de sucesso o acúmulo de material seguido de degradação moral, eles haviam alcançado o tão sonhado sucesso. O fausto daquele salão no qual se encontravam, no momento, era um pedaço, uma amostra do luxo e futilidade que o dinheiro, quando entendido apenas como metal sonante, pode oferecer. As damas, recendendo a perfumes vários e banhadas com o famoso sabonete inglês, enchiam o salão de aromas pesados e sombrios, só sentidos, talvez, por Willian, ou por outros que tivessem abertura de alma sensível o bastante para captar os fluidos etéreos de densidade baixa. As maledicências e a bebida servida em profusão tornavam o ambiente mais propício às forças negativas que infestavam o ambiente. Aos olhos comuns, tudo eram flores, beleza, luzes despejadas por centenas de candelabros brilhantes e ricamente trabalhados. Diante das formalidades dos cumprimentos, Willian trazia no rosto um esgar à guisa de sorriso, fazendo com que seus traços elegantes e firmes não passassem de uma máscara de tragédia grega, moldada para sorrir diante da bestialidade daquela plateia. Plasmada no orgulho e na vaidade, se postava acima do resto da humanidade, como se fossem escolhidos por amor divino para viver naquilo que eles consideram o éden terrestre. Continuidade do que teriam depois. Consideravam-se caridosos, dando com desdém as sobras de suas fartas mesas aos famintos que pululavam pelas ruas e becos. Frutos da miséria que aquelas damas e cavalheiros lhes impunham com a exploração do seu trabalho.

    Willian observava a esposa Elizabeth com um misto de amor e profunda tristeza. Onde estava aquela quase criança que amava com amor puro e doce? A coqueteria instalara-se nela e cada gesto que fazia era um convite de velada luxúria que já não sabia disfarçar. Seus longos cílios, sempre úmidos, eram escandalosamente convidativos e a boca escarlate revelava segredos de alcova. Dor profunda dilacerava o coração do marido, não por ciúme obsessivo e puramente terreno, mas por ter a certeza de origem não explicativa, que estava falindo novamente em uma missão que sabia ser a de manter aquele ser amado longe daquele mundo de facilidades, falsidades e enganos que a levava, de maneira irreversível, aos caminhos do orgulho e da perdição.

    – Bill, o que você tem? Está novamente emburrado, ensimesmado em suas conjecturas sombrias...

    – Não, Elizabeth, apenas pensava em como seria bom estar com você admirando uma das raras noites de céu estrelado que temos aqui.

    – Ah, meu querido, você está mais alquebrado que seu pai! Veja como ele se diverte à larga companhia da condessa de L...! Eles formam um belo casal. Você não acha?

    – Você bem sabe que aquela senhora não é companhia decente para qualquer ser com o mínimo que seja de senso moral. É uma pessoa que desceu na mais baixa escala de valores humanos.

    – E o que isso importa? É nobre, tem fortuna e prestígio junto à família real.

    – Importa muito! Não nos resta muito mais além da retidão de pensamentos e ações para nosso crescimento espiritual.

    – Quanta importância dá a essas coisas de espírito! Acaso já viste algum?

    Willian retrucou:

    – Então não crês em Deus, Elizabeth, na força superior que nos criou e nos rege?

    – Nunca o vi, sei apenas o que me ensinam e não sei se acredito.

    – E os ofícios aos quais comparece na igreja? Nada significam para ti?

    – Significam, sim, uma enfadonha e longa obrigação social à qual nós, nobres, vamos para reverenciar a família real, esta, sim, se faz presente e tem poder, enquanto Deus, nunca o vi oficiar nenhum ritual.

    O ricto de sarcasmo e amargura de Elizabeth, dentro de sua racionalidade, assustava Willian, como se a esposa amada do coração se transformasse num ser abruptamente inumano. O rosto angelical dera lugar a um esgar grotesco e sombrio que fez perpassar-lhe por todo o corpo um frêmito gelado e pegajoso. Encolheu-se instintivamente e palor visível cobriu-lhe a tez em pontos de suor que apareciam inexplicavelmente frente à temperatura amena do ambiente. Elizabeth assustou-se com sua aparência tão combalida e o medo tomou-a. Tremeu diante da possibilidade de o marido ser acometido de um mal súbito. Apertou-lhe o braço e carinhosamente sussurrou:

    – Bill, o que tens?

    Frente ao mutismo do companheiro, insistiu:

    – Querido, está sentindo algo?

    Refazendo-se da impressão grotesca de vibrações baixas, tentou tranquilizá-la:

    – Apenas um mal-estar; toda essa aglomeração, esse excesso de perfumes e flores, a música... deixam-me tonto.

    – Ora, Bill, mais parece um velho decrépito e ranzinza. Isto para mim é vida, brilho, luz! Só assim me sinto feliz!

    – Sente-se bem com os olhares cúpidos que esses homens lhe dirigem? Com essa concupiscência que exala desequilíbrio e sentimentos sem nenhuma nobreza?

    – Willian, não estou disposta a permitir que você estrague minha festa. Se não estás satisfeito, vá-se!

    Arrebanhando as saias fartas de forma graciosa, afastou-se do marido e, sorridente, recebeu um grupo de três jovens que dela se acercaram entre risos e sorrisos lúbricos, molhados no lodaçal da luxúria alcalina.

    – Senhora, é sempre uma festa estar diante da mais bela flor de Londres!

    – Especialmente quando não está com seus espinhos.

    Os sorrisos se alargaram e ecoavam naqueles pares que se afinavam perfeitamente como dentes do encaixe de relógio suíços que necessitassem de perfeição para mover as engrenagens.

    Tudo normal aos olhos velados pelo grosso envoltório do egoísmo do fausto e da maledicência. Quem pudesse ver para além dos olhos materiais, perceberia a multidão que ali se fazia com os encarnados. Tristes figuras, muitas em farrapos, tinham os antigos alfarrábios. Rendas pendendo imundas de ferimentos secos e putrefatos. Homens em atitudes obscenas, a tocar os decotes generosos das mulheres perfumadas por fora. Bebidas sorvidas sofregamente através de laringes dilacerados. Aparelhos digestivos atacados por legiões de micróbios perispirituais, a sugarem os fluidos vitais daqueles que ali liberavam suas paixões grosseiras. As libações vinham em forma de canudos densos de ectoplasma cinza e fétido. Willian sentia o ar asfixiante e tentava desfazer o nó da gravata de seda. Olhando em direção à esposa, pela primeira vez apercebeu-se da cena dantesca que ali se desenrolava. E mais se assustou quando sinistra figura de jovem rapaz desencarnado elegantemente vestido, em farrapos, acercou-se de sua Elizabeth e lambeu-lhe grosseiramente o pescoço. Translúcido e cego pela raiva, se precipitou para o grupo. Mas garras apertaram-lhe o pescoço. Buscou o ar aos borbotões e sentiu-o faltar no cérebro, que tomava uma cor arroxeada pelo acúmulo venoso. Sentia-se morrer, e nenhum presente dava mostras de percepção, menor que fosse, do que acontecia.

    Alta figura luminosa e de aparência respeitável aproximou-se e impôs suas mãos sobre a entidade, que primeiro dobrou-se em duas e depois saiu em desabalada corrida.

    Willian perdeu os sentidos e despencou fragorosamente no chão de tábuas imaculadamente brilhantes.

    Sem correrias, como é típico da nobreza, que aprende desde cedo a camuflar suas emoções, algumas pessoas aproximaram-se, e, dentre eles, o Dr. Salomon tomou-lhe o pulso e buscava auscultar-lhe o coração. O pavor do jovem parecia estampar-se concomitantemente nas faces da esposa, antes rosadas pela excitação do ambiente e pela farta distribuição de substância carmesim que pensava torná-la mais bela. Sussurros na roda que se formava em torno não foram suficientes para abafar o som dos violinos, que continuaram a marcar o compasso do minueto e das quadrilhas da moda.

    Foi Elizabeth tomada de medo pelo que pudesse vir a acontecer ao marido. Sentia, entretanto, maior o constrangimento de ver tão forte e garboso mancebo estatelado ao chão como fracos rapazes de aparência enfermiça, comuns naqueles salões, e que muito a irritavam. Detestava os ares de madonas linfáticas, de faces encovadas e de olhares perdidos não se sabe onde.

    – Logo ele estará bem, mas é preciso retirá-lo daqui para um lugar mais arejado.

    Braços ajudaram a levantar o jovem, que já se recompunha. Tornou-lhe às faces um pouco de cor. Sentia-se atordoado e à boca subia-lhe gosto de fel. Os olhos revelavam um brilho febril e assustado.

    – O que aconteceu, senhor conde? O que sentiu?

    O médico inquiria o paciente enquanto o ajudava a se recostar num canapé de carvalho.

    – Senti-me sufocar, e depois a escuridão, não me recordo de mais nada.

    Admitir o que vira faria com que ele ascendesse de vez à categoria de louco, uma vez que já tinha a peja de sorumbático, devido aos acessos melancólicos cada vez mais frequentes que o acometiam. Pensou no pai e na forma feroz como ele vivia, porém, sempre à beira de uma crise apoplética, tamanha era a ira da qual se fazia sempre acompanhar. A mãe comparava-se, era uma mulher centrada no amor e no equilíbrio, à água pura e cristalina, pois acalmava os ânimos do marido turrão e prepotente. Quando sorria, irradiava paz; paz que aquele lar, suntuoso apenas na matéria, não conhecia em essência espiritual. Perdera-se mais uma vez em conjunturas. Conseguia desligar-se do mundo que o rodeava, apesar de toda a movimentação em volta. Era um processo de introspecção tão profundo que, mesmo sabendo que ali estava, sabia dali se ausentar. Por não saber explicar o que ocorria, temia. Conhecera casas onde se tratavam os doentes mentais, eles nada mais eram, aos olhos dos facultativos, que lixo humano. Tratados com choques e drogas experimentais que lhes arruinavam a dignidade de seres humanos. Não, decididamente, não tinha com quem contar nessa empreitada.

    – Willian já está bem, recomendo-lhe algumas horas de repouso. Amanhã gostaria de vê-lo para que possa examiná-lo melhor.

    Elizabeth assentiu com cortesia e afastou-se com o marido para os jardins que circundavam o casario. Assim que ficaram a sós, puderam aspirar o perfume das flores múltiplas, ali cultivadas em abundância.

    – Bill, precisas descobrir o que tens. Esses achaques não são comuns em sua idade. Mesmo seu pai, com quase o dobro de sua idade, é forte como um cabrito montanhês.

    – Elizabeth, não creio que o meu mal seja de ordem física, há algo mais.

    – Não, Bill, de novo não! Essas conversas são enfadonhas e perigosas. Toda esta história de poções e bruxas me dão arrepio!

    – Não estou falando de bruxas, minha querida, mas de estudos científicos sérios que falam de forças que estão para além de nossa compreensão.

    – Se estão para além, lá devem ficar.

    – Você está perdendo o controle com muita frequência. Angel, acalme-se!

    – Acalmar-me? Você é hilário! Estraga-me, uma vez mais, uma festa de grande importância, me faz corar com seus desmaios no

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