Vera Ballroom
De Cleo Vaz
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Vera Ballroom - Cleo Vaz
Sumário
Apresentação
Texto de orelha
Sobre a autora
A Eles
Ela bem sabia, às vezes, segurar uma coisa
pela mão distante da outra e as fazer, perplexas,
dançar, loucas, suaves, arrastadas...
clarice lispector
Apresentação
A história da Vera é a de uma mulher que sempre foi apaixonada pelos homens e por Literatura – assim como uma aurora ardente.
Sua alma, uma estrela inocente, seu corpo, uma rosa fechada
. Vivenciou a via-crúcis, desesperada por encontrar um grande amor. De tão inúmeras as tentativas, os relacionamentos findam por se resumir aos diálogos Eles/Ela que, na verdade, eram monólogos, já que Masculino/Feminino perpetuavam aquela dissintonia. Perpassa o texto, a voz do Fera, um alter ego vérico a torturá-la, a minar-lhe o equilíbrio. E Vera vai e vem, vai e vem, tique-taque, tique-taque, da cidade para o campo, do campo para a cidade – sempre pensando neles. Vera Ballroom é, em parte, uma romanceação da minha tese de doutoramento Da incomunicabilidade no diálogo amoroso: escrita clariceana, onde pesquiso, nos nove romances da Clarice Lispector, o diálogo amoroso paralelo ao crescente esgarçamento da narrativa. Me valho da técnica da mistura de gêneros narrativos, da transparência da prosa à opacidade da poesia, como também da elucidação ensaística, para melhor iluminar o drama e a negação dos sentidos sofridos pelas mulheres há já lá se vão séculos.
Por que a Vera não emplaca um namoro? Será que os homens não suportam a sua entrega, o seu tomar a iniciativa? O Fera a persegue, a sufoca, mina sua crença em si mesma, no mundo como um todo. Ela prossegue, no entanto, uma apaixonada pelos homens – os homens são grandes e pequenos. Acontece a cena do estupro exercido sobre o corpo da Vera pelo demônio erótico, ao final de uma noitada que ela esboçara como idílica, cercada pelo cenário natalino da cidade de Petrópolis toda ornamentada pelo sonho e pelo sangue, escorrendo dessa mulher.
Há o encontro por fim da protagonista com o mundo maior, o das palavras, aquele da Literatura – a promessa da afinação do discurso entre Mulher/Homem.
Cleo Vaz
No ponto de ônibus, Vera espera a vida passar. Ela não tem consciência disso, mas eu tenho. Pretende, enquanto observa alheia os coletivos circulando, fazer hora, despistar-me e livrar-se de mim. Pura ilusão. Ela sou eu e eu sou ela. Unha e carne. Corpo e alma.
Há uma longa e ventosa estrada a percorrer e minha cobiçada Vera está perdida no tempo e no espaço. Os acontecimentos da última década e meia, por nós vividos, precipitam-se como areia na ampulheta. Procuro manter-me impermeável ao destino, mas ela sente-se pressionada, encurralada, e o que é pior, o seu tempo se esgota, como o meu já se esgotou. Agora, sou atemporal.
Vera, a passeadora solitária, jamais preocupada com direções a seguir ou caminhos a trilhar, inebriada pelo hábito da contemplação, o vício de abraçar as árvores, a nos paralisar.
Flagro-me a admirá-la, cabelos ao vento, linda, esbanjando ternura e desejo de libertação.
A atmosfera campestre desencoraja o fantasma que insiste em assombrar o seu itinerário.
Havia passado quinze anos fora do mundo, período completo da relação com Carlos Daniel, vizinho e namorado pelos anos a fio da juventude.
O seu casamento fora tal uma ilha, cercado de limitações por todos os lados, e ela insistia em mergulhar naquele oceano de impossibilidades, apesar dos meus incisivos conselhos. Arrastou o matrimônio ao longo do tempo, acuada pelo fantasma da solidão.
Aquela cena terrível – descoberta da amante – a persegue.
– Carlos Daniel, não adianta mais negar, sei do seu envolvimento com aquela designer.
– Vera, você está mais uma vez fantasiando.
– Eu cheguei a telefonar para São Paulo, durante a sua última viagem a serviço
. O seu sócio, Murilo, nada sabia a respeito do tal jantar de negócios.
– É inútil tentar demovê-la; fique então entregue às suas desconfianças vãs.
No dia seguinte, Vera recolheu todos os pôsteres que a amante Stela havia emoldurado. Carlos tivera a ousadia de permitir que aquela aventureira se encarregasse das gravuras que ela e o marido haviam comprado na última viagem a Nova Iorque.
Num acesso de ódio, estaciona o carro importado num trecho mais deserto do viaduto e atira ao mar as fotos emolduradas.
– Que raiva Alice, ele me deu esse automóvel como forma de expiar a culpa decorrente da traição!
– Amiga, assim são eles – todos iguais.
– Ela está se infiltrando mais e mais na agência, a fim de melhores chances.
– De oportunistas, eles estão rodeados. Veja o que ocorreu ao meu Pedro. Chocado frente à iminência do adultério, passou um fim de semana inteiro só, em nossa casa de Petrópolis, dando a desculpa incrível da meditação. Voltou um bagaço. Você precisa ser forte como eu e ignorar a amante.
– Não sei o que farei, já não sinto nenhuma atração por Carlos Daniel.
Tenta, desnorteada, um escape desse beco sem saída. Quer reabilitar a paixão, que lhe confere forças extras para superar a crise. Sua dor, os grãos invisíveis do amor fragmentado, se espalha aos quatro ventos.
A brisa suave jamais comovera o ex-marido; ele ansiava por tempestades, semeava o vento. A não efetivação da comunicação desejada estimula a capacidade reflexiva da Vera. Ao som pesado do tique-taque, a noite a conscientiza do já pressentido – os respectivos ritmos, seu e do Carlos, assumem vibrações díspares. Persegue a expressão o mais fidedigna possível da sua emoção, aflita por fisgar o claro enigma
, e o consegue – presente a incomunicabilidade amorosa, que se faz soberana. Ensaia vários diálogos, todos por água abaixo; ama de paixão, tudo inútil. Sonda palavras que decifrem o mistério, nelas se refugia; seu corpo vivencia a inspiração, libertando-a do mal-estar da impermeabilidade intersexos.
A intuição aguçada lhe permite perseguir termos os mais adequados ao seu discurso.
À medida que ela vai adquirindo maior autonomia, o distanciamento do casal amoroso – Vera/Carlos – se intensifica e escasseiam os diálogos que, uma vez pronunciados, conotam uma dissintonia crônica, até findarem por completo, de forma drástica.
– Permanece uma lacuna, Carlos, porque está impossível dar forma aos sentimentos mais profundos.
– Você insiste em viver mergulhada em fantasias; é insuportável.
A incomunicabilidade entre Feminino e Masculino é tamanha a ponto de ele vociferar sozinho, enquanto Vera permanece emudecida e voltada para as próprias cogitações, a maioria relativa à expressão.
Perdida no tempo-espaço, sem identidade definida, ela vai e vem, vem e vai, ziguezagueando por ali. Pensa em suicídio, mas isso se limita à cogitação.
A consciência da descontinuidade do homem, acirrada quando sobreposta à condição de continuidade espácio-temporal, faz com que Vera dramatize no ato amoroso uma fusão
idealizada e proveniente do estado recorrente de vertigem.
O patrimônio herdado é administrado pela dra. Celina, amiga de infância. Os imóveis alugados rendem-lhe uma quantia mais que suficiente para ter uma vida folgada.
Não sofre de problemas financeiros, porém está desestabilizada emocionalmente. A forma que encontrou de ludibriar a sensação constante de desfalecimento, iminência da morte, foi sublinhar a paixão amorosa.
Quanto maior é a sua angústia, mais forte se torna aquela sensação estranha de perseguição; como se os fantasmas que povoavam a sua infância, súbito reaparecessem.
Vive no limite. Ser ou não ser Vera. Fluida, tal uma água-viva, traça um painel da sua trajetória, repleto de