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Resolução consensual de conflitos criminais com aportes da Justiça Restaurativa
Resolução consensual de conflitos criminais com aportes da Justiça Restaurativa
Resolução consensual de conflitos criminais com aportes da Justiça Restaurativa
E-book196 páginas2 horas

Resolução consensual de conflitos criminais com aportes da Justiça Restaurativa

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Sobre este e-book

Essa obra se propõe a analisar a situação do sistema de justiça criminal brasileiro e a crise da pena de prisão, procurando abordar, no contexto de respostas mais céleres e eficientes à persecução penal, os instrumentos previstos na legislação que conferem primazia ao consenso na resolução dos conflitos penais, adotando sanções alternativas à privação da liberdade, a exemplo da justiça restaurativa. Nesse sentido, através de pesquisa qualitativa, faz um levantamento bibliográfico e documental, objetivando apresentar os benefícios e fundamentos dos métodos restaurativos e defender a normatização do instituto no âmbito processual penal. Por fim, conclui que o paradigma restaurativo e consensual oferece maiores possibilidades de uma efetiva resolução pacífica dos conflitos, ao inserir os envolvidos e a comunidade em um ambiente de diálogo e aproximação com vistas ao entendimento duradouro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de set. de 2020
ISBN9786587401034
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    Resolução consensual de conflitos criminais com aportes da Justiça Restaurativa - Daniel Feitosa de Menezes

    delito.

    1 CRÍTICA À PENA DE PRISÃO

    A prisão, da forma como a conhecemos hoje, surgiu como um dos aspectos mais relevantes de um movimento de reação ao sistema punitivo que marcou o absolutismo e, principalmente, a Inquisição e seus métodos de investigação¹, consistentes na execução de penas corporais e infamantes, vindo a se consolidar, pelo menos no final do século XVIII a princípio do século XIX, como penalidade de detenção, marcando assim o início do período humanitário² da justiça penal (FOUCAULT, 1987, p 207), tendo servido, desde então, como parâmetro de reprimenda e instrumento por excelência do sistema punitivo, e, pelo menos no Brasil, até o início dos anos 1980, era tida como a principal sanção aplicada dentro de um processo criminal, mesmo diante de delitos de pequena lesividade.

    Essa nova postura para com a punição do indivíduo, que renegava a barbárie e os suplícios corporais da idade moderna, floresceu a partir da segunda metade do século XVIII³, no contexto do discurso dos iluministas, os quais apregoavam reformas substanciais no poder de punir⁴, com o objetivo de conferir-lhe um caráter mais humano e racional, desvinculando-o de dogmas religiosos e morais, adotando, ainda, limites e parâmetros objetivos na aplicação da pena (BICUDO, 2015, p. 35).

    Pode-se dizer que o século das luzes criou as condições necessárias para uma mudança significativa da legislação criminal europeia, através da considerável influência de filósofos que censuravam a excessiva crueldade do sistema repressivo então em vigor. Um dos pensadores que mais influenciou a formulação dos pressupostos para um direito penal moderno foi Cesare Beccaria, com sua famosa obra Dos Delitos e das Penas, escrita em 1764.

    Nesse livro, o Marquês de Beccaria fundamenta a punição na violação do pacto social, ao qual os homem livremente aderiram, cedendo parcelas de sua liberdade para garantir a boa convivência entre os indivíduos e a paz social. Sobre o assunto, esclarecedora a lição de Tatiana Bicudo (2015, p. 60):

    Beccaria, ao desenvolver o fundamento da pena, elege a segurança dos indivíduos em sociedade, com base no princípio da utilidade ou da máxima felicidade, este traduzido como a necessidade de uma boa vida em sociedade, que corresponde à maior felicidade para o maior número. A segurança dos indivíduos em sociedade, garantindo a felicidade do maior número, tem como consequência a punição dos indivíduos que, ao praticarem um fato delituoso, contribuem para que essa segurança seja colocada em risco.

    Para Alessandro Baratta (2013, p. 33), a obra do filósofo italiano forjou os pressupostos para uma teoria jurídica do delito e da pena, assim como do processo, no quadro de uma concepção liberal do estado de direito, baseada no princípio utilitarista da maior felicidade para o maior número, e sobre as ideias do contrato social e da divisão de poderes.

    A visão utilitarista que Beccaria expressa sobre a justiça criminal vai percorrer sua obra, seja para evidenciar o caráter preventivo da pena, seja na escolha da exata medida sancionatória para a violação legal. Observa-se, ainda, a defesa que o Marquês (1995, p. 61) faz da proporcionalidade da pena em relação ao crime, ao afirmar que os meios de que se utiliza a legislação para obstar os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais frequente.

    Zaffaroni (2013, p. 61) ensina que as ponderações desse período vão servir de fundamento para sufragar a pena privativa de liberdade, não mais apenas com finalidade de custódia, mas como a "coluna vertebral das penas, apoiada essa transição seja pela via do utilitarismo (para impor ordem interna mediante a introjeção do vigilante) ou do contratualismo⁵ (como indenização ou reparação pela violação do contrato social)". Nesse contexto, crucial a observação de Michel Foucault (1987, p. 83) a respeito dessa nova estratégia punitiva, que vai se delineando até os dias atuais:

    Efetivamente a infração lança o indivíduo contra todo o corpo social; a sociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele, para puni-lo. Luta desigual: de um só lado todas as forças, todo o poder, todos os direitos. E tem mesmo que ser assim, pois aí está representada a defesa de cada um. Constitui-se assim um formidável direito de punir, pois o infrator torna-se o inimigo comum. Até mesmo pior que um inimigo, é um traidor pois ele desfere seus golpes dentro da sociedade. Um monstro. Sobre ele, como não teria a sociedade um direito absoluto? Como deixaria ela de pedir sua supressão pura e simples? E se é verdade que o princípio dos castigos deve estar subscrito no pacto, não é necessário, logicamente, que cada cidadão aceite a pena extrema para aqueles dentre eles que os atacam como organização?

    Apesar de ter representado um progresso em relação à forma com que as sociedades mais primitivas lidavam com o conflito entre seus membros, o encarceramento, base do sistema penal moderno - assim como o afastamento da vítima na solução dos conflitos -, passou a receber intensos questionamentos a partir da primeira metade do século XX⁶ com o surgimento de estudos sobre o fenômeno criminoso que desafiavam o pensamento clássico, o qual se amparava nas ideias do livre arbítrio, do consenso pelo contrato social e do utilitarismo, que viam na pena a exata medida de retribuição pela violação do direito como exigência racional⁷ (SHECAIRA, 2018, p. 92), bem como o paradigma positivista, do século XIX⁸, baseado no determinismo biológico, ou seja, na existência de indivíduos com propensão a cometer ilícitos conforme variações congênitas, que tem em Cesare Lombroso o seu principal expoente⁹ (PEIXOTO, 2017, p. 21).

    Segundo Pedro Abramovay (2010, p. 15), essa nova compreensão sobre a questão criminal tem a ver, de início, com o aparecimento da sociologia¹⁰, em especial do pensamento de Émile Durkheim, para quem o crime se constitui em um fato social, que se apresenta normal e até funcional para a sociedade, razão pela qual a pena não poderia ter como objetivo principal a dissuasão do indivíduo. Para Shecaira (2018, p. 200-201), Durkheim contesta o caráter intimidatório da pena, por entender que a sua função é apenas de satisfazer a consciência comum, ferida pelo ato cometido por um dos membros da coletividade, tratando-se de um ato de vingança que muda de intensidade e qualidade à medida da evolução e do desenvolvimento da sociedade.

    No entanto, foi somente com o surgimento do paradigma científico crítico ou da reação social que se colocou em dúvida as orientações que tinham como base o modelo etiológico, do estudo das causas e dos fatores da criminalidade, abrindo as portas para uma análise mais detida do poder punitivo. De acordo com Alessandro Baratta (2011, p. 30), "a consideração do crime como um comportamento definido pelo direito, e o repúdio do determinismo e da consideração do delinquente como um indivíduo diferente, são aspectos essenciais da nova criminologia".

    Raúl Zaffaroni (1991, p. 60-61) compartilha a opinião do saudoso jurista e filósofo italiano, ao colocar o advento do interacionismo simbólico e da teoria da rotulação, fundamentos da criminologia da reação social, como a demonstração incontestável da falácia do discurso jurídico-penal e a desqualificação irreversível da criminologia etiológica.

    Zaffaroni (1991, p. 60) ensina, ainda, que as contribuições teóricas do interacionismo simbólico e da rotulação, ou labelling approach¹¹, apresentam a inquestionável vantagem de descrever, detalhadamente, o processo de produção e reprodução da delinquência. Para o jurista argentino:

    A tese central desta corrente pode ser definida, em termos muito gerais, pela afirmação de que cada um de nós se torna aquilo que os outros veem em nós e, de acordo com esta mecânica, a prisão cumpre uma função reprodutora: a pessoa rotulada como delinquente assume, finalmente, o papel que lhe é consignado, comportando-se de acordo com o mesmo. Todo o aparato do sistema penal está preparado para essa rotulação e para o reforço desses papéis.

    Na opinião de Juarez Cirino (apud BARATTA, 2011, p. 11), os conceitos do paradigma do labeling approach marcariam a linguagem da criminologia contemporânea através dos seguintes aspectos:

    o comportamento criminoso como comportamento rotulado como criminoso; o papel da estigmatização penal na produção do status social de criminoso, ou seja, a relação do desvio primário que produz mudanças na identidade social do sujeito, com o desvio secundário, compreendido como efeito do desvio primário; a rejeição da função reeducativa da pena criminal, que consolida a identidade criminosa e introduz o condenado em uma carreira desviante etc.

    O interacionismo simbólico, segundo Zaffaroni (2013, p. 138-140), baseava-se na psicologia social de George Mead e nos estudos da críticas às instituições totais de autoria de Erving Goffman, em que este, ao analisar o papel do manicômio - sendo que suas conclusões podem ser aplicadas em grande medida à prisão¹²-, evidencia que o discurso de ressocialização não passa de um grande embuste, tendo sido determinante, também, o livro de Howard Becker, de 1963, intitulado de Outsiders, que consolidou a teoria do etiquetamento (em inglês labeling approach).

    O avanço dessas contribuições teóricas sobre a questão criminal foram responsáveis por conduzir ao momento de maior contestação ao paradigma retributivo, que aconteceu no auge da contracultura, no final da década de 60 século passado, quando a criminologia crítica¹³, inverteu, definitivamente, a perspectiva de investigação do fenômeno criminoso, que passa, segundo Alessandro Baratta (2011, p. 49), do sujeito criminalizado para o sistema penal e os processos de criminalização que dele fazem parte. Com isso, o foco de análise das determinações do crime deixa de ser o criminoso, ou as causas do delito, passando para o poder punitivo e o seu exercício¹⁴. Nessa linha de raciocínio, Gianpaolo Smanio (2012, p. 82) aduz:

    Considerada verdadeira revolução teórica e prática, essa criminologia apresenta mudanças verdadeiramente radicais nas questões formuladas. As questões centrais da criminologia deixam de ser referentes ao delinquente e até mesmo ao crime, para serem dirigidas ao próprio sistema de controle, entendido como conjunto articulado de instâncias de produção normativa e de estruturas de reação da sociedade. Em vez de questionar quais as causas do crime praticado, passa a indagar por que determinadas pessoas são tratadas como criminosas, quais as consequências desse tratamento e qual sua legitimidade. Em vez de perguntar os motivos do delinquente, pergunta quais os critérios, ou mecanismos de seleção das instâncias de controle social.

    Com essa virada metodológica, o campo crítico põe em evidência o papel político da criminalização, ao sustentar a relatividade do conceito de infração penal, a qual muda no tempo e no espaço, tudo para demonstrar que "é a lei que diz onde está o crime; é a lei que cria o criminoso" (HULSMAN, 1993, p. 64), sendo que a seleção das condutas que seriam tipificadas revelaria mais uma escolha política que orgânica¹⁵ (TIVERON, 2014, p. 47). A reforçar este argumento, a fundamental observação de Howard Becker, em sua famosa obra Outsiders (2008, p. 20):

    É mais difícil na prática do que parece ser na teoria especificar o que é funcional e o que é disfuncional para uma sociedade ou um grupo social. A questão de qual é o objetivo ou meta (função) de um grupo – e, consequentemente, de que coisas vão ajudar ou atrapalhar a realização desse objetivo – é muitas vezes política. Facções dentro do grupo discordam e manobram para ter sua própria definição da função do grupo aceita. A função do grupo ou organização, portanto, é decidida no conflito político, não dada na natureza da organização. Se isso for verdade, é igualmente verdadeiro que as questões de quais regras devem ser impostas, que comportamentos vistos como desviantes e que pessoas rotuladas como outsiders devem também ser encarados como políticas. A concepção funcional do desvio, ao ignorar o aspecto político do fenômeno, limita nossa compreensão.

    Por outro lado, através da pesquisa dos teóricos filiados a essa corrente, foi possível revelar o funcionamento real do sistema punitivo¹⁶, estruturado para exercer seu poder de maneira a atingir especificamente a população mais vulnerável¹⁷ (ZAFFARONI, 1991, p. 27).

    A seletividade estrutural do sistema penal¹⁸, descrita por Zaffaroni (1991, p. 27) como a "mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico-penal",

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