A paixão mortal de Paulo
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A paixão mortal de Paulo - Rinaldo de Fernandes
Sumário
Diário de Suzi, 11 anos
Os filhos de Rosa
Impostação de cansaço
Tem nada, puta!
Carne cansada
Margarida
Uma história de amor
Um rio para coçar
Borboletas sem osso
Bolsa de família
Divagação sobre um rato
Útero
Onde um cão com plumas?
Dia de mar
O que faz sombra neste lugar?
Quem imuniza o meu filho?
Eu tenho vergonha de minha mãe
Capim para deleite
Buço
Chuva
Gaivota é bicho sem passeio
O último olhar à morada
Estrume
Os olhos de minha boneca
Sete cavalos
Carneiros dormindo
A poesia é uma burla?
Aula de gordura
Os açúcares de Ana
A morte do circo Fon-Fon
Eu dou pancada em porco
Eu imito voo de pássaro com os dedos
Sala de espera
Porcaria
O divorciado
Elefante empoeirado
A janela
Missa distante
Peça sobre peça
Colina de encantar, chuva de beber
Feijão com buzina
Joelhos apodrecidos
Dedos
Rios que de súbito enchem
Encontro com o pai
Modos de oração
O morto
Luana e Rosa
A menina
A mão de Lucinha
O diabo nu
Mulher no acostamento
O prego
Escova
Chão
O cacto
Orelha perfumada
Lado morto
O ressentimento
Pelejas de vaga-lumes
Açúcar de coco
Cambota
Dois besouros
Bem-te-vi emborcado
Crime na casa de praia
Pescoço de frango
O filho dos outros
Talvez morrer antes
Mãe à beira da estrada
Encontro com a mãe
Carta
O jabuti
O areal das garças
Montanha com endereço
O último café
Cheiros do filho
A porta
Sorriso
A morte da música
O saxofone
Os feios
Beatriz e suas pernas
Experiência com urso
A maçã golpeada
Homem no parque
Masturbação
Marido caçador
Rio de luto
O cavalo morto
A mulher
Os três filhos
João do circo
Acordar de mãos
A notícia
A mulher que sequestrou Chico Buarque
Nada que eu faço te torna feliz
O encontro
Um jantar para a amante
Uma hóstia para o meu marido
Degustação de cortinas
Feijão perfumado
Chulé
O cachorrinho
A paixão mortal de Paulo
A suicida
O mistério da casa azul
Manifesto de rancor
Adornos
Farelos de mamão
Vento vagabundo
Sr. Avelino
Texto de orelha
Sobre o autor
jabuti de bermuda
para Júlio de Fernandes
Meu filho já não brinca com seus antigos brinquedos. Esqueceu um jabuti de bermuda na prateleira. Fez, para os seus carrinhos, um grande estacionamento escondido sob a cômoda. Embolou um super-herói de pano dentro da gaveta. Uma máscara que pôs no carnaval, jogada no quintal, vem sendo pisoteada pela chuva. Meu filho cresce, a criancinha que foi vai ficando para trás. Tenho saudade de vê-lo deitado no piso da sala, rodeado de brinquedos, o rostinho junto da cerâmica. Não sei o que escutava pondo o ouvido no piso. Mas era como se ouvisse as batidas, entre abrandadas
e contundentes, do coração deste pai.
dois dedos de sol
para Laura de Fernandes
Se, rosto com rosto, vejo o colchão da perspectiva de Laura, os ramos da colcha evoluem para todo o quarto.
Se cheiro a chuva estampada na colcha, é como se uma cascata de repente paralisasse, cansasse nas bochechas
de minha filha. Se abro a janela para dois dedos de sol, eles já douram nos brinquinhos dela.
a ascensão da cor
para Allyne Andrade
Folhas secas que, com o vento, disparam raspando o chão carregam uma ideia de borboleta. Se o vento se intensifica – aí não é a ideia, já é a cor do voo acima da copa do flamboyant. E se a cor ascende para interpor-se
às montanhas – aí já é o traje do arco-íris.
[R. de F.]
meu decálogo do verdadeiro contista
1. Seja impiedoso. Se isso não bastar, cresça para a crueldade.
2. Dê capins ao bizarro.
3. Nunca conte a história por inteiro:
não bata palmas para o leitor.
4. Pegue à unha a palavra para a sua frase.
5. Não insista verso na prosa. O poema tem outra porta.
6. Não seja um moralista, mas uma testemunha.
7. Jamais se dê por satisfeito. Uma vírgula
pode salvar um personagem.
8. Você nasceu com seis pescoços: Poe, Maupassant, Tchekhov, Machado, Mansfield e Cortázar.
9. Jamais dê ouvidos ao insulto: Isso dá um conto!
.
10. Seja impiedoso. Se isso não bastar,
cresça para a crueldade.
[R. de F.]
Diário de Suzi, 11 anos
7h30
Hoje eu acordei longe de minha mãe. Foi a primeira vez que eu acordei longe dela. Tem roupa aqui no meu quarto que está embolada, tem uma casca de limão seca que não sei quem trouxe. Não sei o que vou fazer com meus livros tão desarranjados, minha farda por passar. A farda nem tanto, eu posso passar, mas meus livros só minha mãe sabe pôr em ordem. Eu gosto quando ela coloca eles emparelhadinhos, um em cima do outro, na ordem que vou estudar na semana. Vem logo, mãe. Vem, eu sei que você tá na lanchonete. Foi plantão?
11h30
Mãe, cadê você? Um passarinho baixou em cima da janela, mãe, tão lindinho! Sabe aquele passarinho que você me mostrou no ponto do ônibus, o que estava em cima do cavalo amarrado? O cavalo do carroceiro? Era daqueles. Ah, mãe, mas eu fiquei com tanta pena daquele cavalo! Ainda bem que o passarinho veio pousar nas costas dele. Ou será que o passarinho tava era bicando a ferida nas costelas do coitado?
14h00
Almocei refrigerante com biscoito. Fui em seu quarto e senti sua presença, sabia? Era você, eu tenho certeza, mãe! Você se escondeu de mim, se trocou e foi trabalhar de novo. Fez essa zorra de se esconder pra me bater um susto? Olhe, mãe, não se faz isso com uma filha! Lembra o que a vó disse: filha é árvore em que vento não chove. Mãe, e vento chove? Quem chove não é a água?
18h00
Mãããeeee... onde você está? Sabe a casca do limão seca no meu quarto? Eu varri. Também limpei o pó da mesinha, tirei a roupa e pus na máquina. Quando você voltar você me engoma. Vixe! Você me engoma
é você engomar minha roupa, entendeu? Se você me engomar você me queima. Que hora você volta da lanchonete? Traz pra mim um pastel daqueles vermelhos? Eu estou sozinha aqui, mãe, mas aquele passarinho da janela teve uma hora que meteu ali o bico dele, como se quisesse me falar. Ou então vir bicar os meus dedos. Ele é ruim, sabia?!
22h00
Minha mãe, onde você... É a segunda noite que durmo sem você. Tenho medo do escuro, você sabe disso. Tanto tempo aí nessa lanchonete?! E eu queria comer o pastel vermelho. Você vai me trazer o pastel vermelho? Muita movimentação aqui no bairro. É ronco de uns motorzão, correria. Ouvi umas pessoa carregando um menino gemendo, o menino dava tanto grito de dor, mãe... O passarinho vai bicar a dor desse menino, será? Sabia que me passou essa pergunta pela cabeça?
23h00
Mããããeeeeeee!
Os filhos de Rosa
para Maria Fernanda Tavares
1.
Não sei se alguém já passou por isso. E eu não desejo que passe. Trabalho desde os 13 anos na casa do seu Ravi. Ele é muito atento comigo, me paga o que acordamos. Dona Úrsula, a mulher dele, anda assim apetrechada, mas é também uma pessoa do acordo. Quando cheguei aqui ela embirrava comigo, não queria que eu botasse short, tinha uns pedreiros construindo o quartinho dos fundos, elevando o muro. Eu tenho o Jonas, de 14 anos, e o Jesus, de 18. Jonas usa o cabelo curtinho. O pai dele foi embora aí pro Goiás, não sei bem. Quando foi a festa de aniversário do Rodolfo, o filho do seu Ravi e da dona Úrsula, quando foi a festa de 15 anos dele, dona Úrsula me convidou para trazer o Jonas. O Jonas... Eu não gosto de contar isso, porque me vem saliva... O Jonas... Ele estava reunido com os amiguinhos do Rodolfo,