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Capoeira em Múltiplos Olhares: Estudos e pesquisas em jogo
Capoeira em Múltiplos Olhares: Estudos e pesquisas em jogo
Capoeira em Múltiplos Olhares: Estudos e pesquisas em jogo
E-book943 páginas18 horas

Capoeira em Múltiplos Olhares: Estudos e pesquisas em jogo

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Sobre este e-book

Os trabalhos demonstram que as práticas dos capoeiras não são singulares, atravessando grupos sociais diversos, revelando a sociedade brasileira. Talvez isso tenha capacitado os capoeiras, ou alguns capoeiras, a se tornarem capoeiristas, a lutarem contra as ações repressivas sustentadas pelo artigo 402 do código criminal de 1890 e transformarem a capoeira em luta marcial, esporte e educação física. Os representantes de diversos grupos sociais, praticantes da capoeira, se reuniram novamente. Já não era mais Camisa Preta, Manduca da Praia, Antonio Boca de Porco e Nascimento o Grande. A reunião objetivou colocar a capoeira entre as lutas internacionais,sendo ela a única nacional, construída no Brasil; essas foram as alegações dos principais protagonistas. Surgiram mestre Zuma, mestre Bimba, mestre Sinhozinho, mestre Pastinha, novas abordagens, novas fontes, novos objetos para um mundo dos capoeiristas que (re)inventavam uma tradição.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de set. de 2020
ISBN9786599155871
Capoeira em Múltiplos Olhares: Estudos e pesquisas em jogo

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    Capoeira em Múltiplos Olhares - ANTÔNIO LIBERAC CARDOSO SIMÕES PIRES

    mestre.

    PARTE 1

    Educação

    Capítulo 1

    A construção coletiva de uma proposta pedagógica para a capoeira

    Gláucio Anacleto de Almeida (Cuité)

    ¹

    Daí que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho para homens radicais. (FREIRE, 2011, p. 34).

    Introdução

    O presente artigo descreve o processo de criação coletiva de um trabalho de capoeira dentro de um programa artístico/cultural/social da Fundação Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA), denominado Gente em Primeiro Lugar na cidade de Juiz de Fora, localizada na zona da mata mineira. O mesmo vem sendo aprimorado desde o seu início, em setembro de 2009, quando foram estabelecidas suas diretrizes e prioridades.

    Cabe ressaltar que a cidade vinha de um histórico de descontinuidade no desenvolvimento de projetos semelhantes, seja por mudanças na administração municipal, seja pela inconsistência dos resultados obtidos. Esse cenário adverso foi encarado como um desafio a mais na concretização de ousados objetivos de uma equipe plural (além da Capoeira, o programa desenvolve atividades de teatro, dança, artes visuais, artesanato e música) que necessitava trabalhar suas especificidades dentro de um eixo norteador denominado: cultura e cidadania.

    As comunidades envolvidas foram escolhidas segundo a classificação dos bairros dentro do Mapa da Exclusão Social do município, priorizando aqueles que se encontravam em situação de maior vulnerabilidade e, dentro destes, as parcerias foram estabelecidas com todos os tipos de organizações da sociedade civil, entidades religiosas, escolas, ou algum outro parceiro que nos oferecesse um espaço minimamente adequado ao desenvolvimento das atividades, considerando que, certamente, haveria a possibilidade de intercorrências, impedimentos momentâneos e outras situações adversas a serem contornadas.

    A complexidade deste trabalho foi desde o princípio entendida como um processo prático e reflexivo que indicaria, ao longo do seu desenvolvimento, as lacunas teóricas e os processos formativos necessários à consecução dos nossos objetivos, coerentes com o ideal da práxis: A teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a prática, sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria, tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade (FREIRE, 2011, p. 12).

    Desde o início do trabalho, nosso foco se manteve na discussão sobre os valores e aspectos fundamentais da prática da capoeira. Dessa maneira, mantivemos um distanciamento saudável das concepções técnicas individuais ou de escolas específicas e, ao mesmo tempo, nos dedicamos mais à compreensão do que nos aproximava, do que daquelas diferenças que, se ressaltadas, poderiam inviabilizar o objetivo principal do programa, que era possibilitar aos nossos alunos — vindos de diversos bairros da cidade e aprendizes orientados por profissionais de diferentes escolas — experimentar o prazer de jogar e aprender na convivência com outros capoeiristas em diferentes ambientes onde essa prática acontece. Concebemos a capoeira como construção coletiva e acreditamos que sua riqueza está diretamente relacionada à grande diversidade existente no meio e ao diálogo estabelecido intuitivamente nas rodas de capoeira, na composição da bateria, no desenrolar das cantigas e nas situações criadas durante o jogo.

    Estrutura organizacional

    A Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) – órgão da administração municipal – através de sua superintendência, e a coordenação do programa acreditam na transdisciplinaridade de saberes, através de uma postura consciente e crítica do poder de unificação da cultura. O projeto busca o trabalho de formação e educação da arte/cultura/cidadania junto a profissionais capacitados, não só nas áreas específicas de atuação, bem como sua relação entre formação e cidadania das crianças e dos adolescentes participantes das oficinas artístico culturais. Dessa forma, os profissionais (coordenadores/articuladores), ao longo dos últimos quatro anos, passaram por uma intensiva formação pautada no estudo e na reflexão de ferramentas possíveis para embasar os objetivos do programa, tais como, criar e disponibilizar espaços em sua prática diária, no planejamento e no desenvolvimento das ações para divulgar direitos e deveres do cidadão e trabalhar, além do conhecimento artístico cultural, a vivência prática de valores sociais e respeito por si e ao próximo.

    No Programa Gente em Primeiro Lugar, há uma coordenação geral que cumpre as funções burocráticas, dá suporte material e estrutura as equipes de acordo com a demanda apresentada pelo município; logo abaixo, contamos com uma equipe de coordenadores de área que dão o suporte pedagógico e fazem a ponte entre as demandas estruturais e de materiais específicos para os locais atendidos e a coordenação geral.

    Quando iniciamos o trabalho, em setembro de 2009, a equipe de capoeira era composta por um coordenador e dois articuladores culturais (denominação atribuída aos profissionais do Programa Gente em Primeiro Lugar) atuando em 11 comunidades. Em quatro anos, a equipe cresceu substancialmente e, hoje, contamos com seis articuladores atuando em 25 bairros e três distritos em todas as regiões da cidade.

    Nossa equipe é composta por cinco homens e duas mulheres, situação que reflete em parte o cenário da capoeira como um todo, onde apesar de, enquanto praticantes, serem tão numerosas quanto os homens, as mulheres ainda são minoria nas graduações mais elevadas e nos postos de trabalho abertos para capoeiristas. A participação delas no programa enseja também a percepção por parte de nossas pequenas aprendizes de que pode haver um equilíbrio nessa composição.

    Articuladores e articuladoras culturais são responsáveis – em média – por nove turmas cada, em dois encontros semanais, onde são desenvolvidas as técnicas de jogo, os toques, cânticos, o ritual da roda e, também, oferecidas informações teóricas sobre a capoeira.

    Essa equipe foi formada por seleção de candidatos que tiveram seus currículos e uma carta de intenção analisados, além de uma entrevista; e quando a demanda exige nova contratação, o mesmo processo é novamente realizado. Esse procedimento busca atender ao critério de impessoalidade necessário a qualquer ação que envolva recursos públicos e, ainda, garantir a transparência para a comunidade capoeirística local, com a qual desejamos manter uma relação de respeito e integração.

    Processo pedagógico e metodologia

    O processo que nossa equipe preconiza consiste na construção de dois valores fundamentais: autonomia e cidadania. A experiência adquirida nos primeiros anos de atividades do Programa Gente em Primeiro Lugar nos mostrou que o envolvimento dos alunos se torna muito maior na medida em que estes são convidados a assumir o papel de protagonistas do processo, compreendendo que as atividades realizadas são parte da construção coletiva de um evento chamado roda de capoeira, em que todos têm funções de acordo com o as posições que ocupam num determinado momento. Fundamental nessa prática é a inclusão do aprendizado dos toques dos instrumentos e dos cânticos, a oferta de subsídios teóricos e históricos desde o início das atividades, concomitantemente às ações que visam o desenvolvimento do jogo. Toda a dinâmica de nosso trabalho visa dotar os aprendizes dos conhecimentos fundamentais para a livre participação em uma roda de capoeira, estimulando a percepção e o desenvolvimento de várias aptidões exigidas de um bom capoeirista. Essa metodologia proporciona uma riqueza de experiências e exige deles o senso crítico, de oportunidade, de cooperação, de adequação às regras, o conhecimento da história da capoeira no contexto da história do Brasil, o respeito às nossas tradições, além de estimular o raciocínio, a iniciativa e a capacidade de trabalhar em grupo.

    Nossa expectativa é que as consequências deste trabalho extrapolem os limites do nosso programa, permitindo que os diversos grupos existentes na cidade de Juiz de Fora recebam, em breve, alunos que necessitarão de formação técnica complementar, já que, neste momento, não temos como foco a graduação em nível avançado dos alunos, como no contexto das academias de capoeira. Pensamos no impacto positivo da inserção de centenas de novos capoeiristas no cenário municipal, já iniciados nos princípios que regem a roda e conscientes da importância de se observar os aspectos rituais e os fundamentos para a preservação e o desenvolvimento da capoeira.

    Em um grupo heterogêneo, faz-se necessário manter um diálogo permanente entre todas as partes para que haja clareza quanto às demandas que teremos de enfrentar. Nesse aspecto, a organização do Programa Gente em Primeiro Lugar atende de forma excelente a essa necessidade: temos como regra uma reunião semanal de quatro horas com uma parte do tempo dedicada a informes e resoluções de caráter geral, mas com a maior parte do período dedicada às pautas específicas de cada área.

    Esse momento tem grande importância no processo pedagógico, porque a frequência aos encontros dificulta que situações-problema, dúvidas e questionamentos sejam postergados ou esquecidos, bem como estimula a construção coletiva de soluções. Além disso, nesses quatro anos de existência do programa, os encontros semanais serviram como espaço de convivência entre os profissionais, onde pudemos nos conhecer melhor, discutir assuntos relativos à capoeira, mas, também, outros temas de interesse do grupo, fizemos estudos de textos, análises de documentários, reflexões sobre eventos e rodas de capoeira, enfim, uma gama de assuntos que, certamente, permitiu a ampliação da visão do grupo quanto às nossas possibilidades de trabalho, observando que os saberes são complementares e não necessariamente excludentes.

    A formação individual dos articuladores não é uniforme, temos, entre nós, capoeiristas graduados em diferentes escolas, líderes de grupos, praticantes com diferentes níveis de experiência e tempo de prática etc. Isso, naturalmente, gera uma diversidade de conhecimentos e, é claro, de concepções quanto ao modelo de trabalho. Logo no início de nossas atividades, quando ainda éramos um grupo de apenas três pessoas, debatemos muito sobre como promover a integração entre os participantes das oficinas. Trabalhamos com crianças e adolescentes que, muitas vezes, vêm de ambientes violentos, famílias desestruturadas e baixo desempenho escolar. Esses fatores coexistem e não há como contorná-los sem escamotear a realidade. Acreditamos que nossa atribuição é proporcionar a eles experiências prazerosas, mas também significativas, que para serem plenamente realizadas dependem de participação, empenho e interesse. Assim, temos a possibilidade de desenvolver, em nossas atividades, a iniciativa, o desejo de melhorar o desempenho e o crescimento pessoal. Atitudes fundamentais, não somente para o sucesso na capoeira, mas ainda mais importantes na vida, principalmente para aqueles que por diversos motivos carecem de exemplo e apoio familiar: A possibilidade do ser humano só se realiza efetivamente por meio dos outros, dos semelhantes, ou seja, daqueles com os quais a criança, em seguida, fará todo o possível para se parecer. (SAVATER, 2012, p. 27).

    Conscientes dessa realidade, definimos que nosso objetivo principal seria a construção dialógica do jogo de capoeira. Todas as ações deveriam estimular a percepção do outro, a sua intenção, a interpretação do seu gesto e a busca de uma resposta ao questionamento/canto/movimento proposto. Definido o objetivo, partimos para a execução e, a cada semana, novos fatos eram trazidos para as reuniões e socializados, as experiências bem-sucedidas em um contexto puderam ser aproveitadas em outras realidades, ou guardadas na memória coletiva como possibilidade de solução para situações-problema que fatalmente encontraremos em algum momento.

    A construção a qual o título do artigo se refere deve remeter à ideia de circularidade, não de desenvolvimento linear. A proposta do grupo que formamos não visa a criação de um método capaz de apresentar soluções definitivas para propostas semelhantes, mas fundamentalmente estimular uma atitude de atenção e questionamento permanente dos métodos e processos desenvolvidos como forma de aprimoramento destes para alcançarmos de forma mais eficaz os objetivos propostos, tanto os específicos da equipe de capoeira quanto os gerais do Programa Gente em Primeiro Lugar. Retomamos os processos a cada início de ano, a cada preparação de eventos, a cada nova comunidade atendida e todas essas ações são oportunidades de colocar em prática a experiência acumulada, mas também de ousar criar um fato novo, uma nova proposta, dar novo encaminhamento a uma atividade rotineira, perceber que a aprendizagem se dá na relação e toda nova relação é uma construção.

    A partir dessa construção, é que fazemos a ponte entre o microcosmo da capoeira e as situações cotidianas pelas quais temos todos de passar – formadores e aprendizes – com serenidade e inteligência. A prática regular da capoeira estimula habilidades físicas e emocionais de fundamental importância para o nosso dia a dia e, quando nos conhecemos, tornamo-nos mais seguros e mais aptos ao convívio social. Esse autoconhecimento será adquirido nas relações cotidianas, nos momentos de alegria e de tensão, nos encontros, mas também nos embates. De fato, por meio dos estímulos de prazer ou de dor, praticamente tudo na sociedade humana tem uma intenção decididamente pedagógica. (SAVATER, 2012, p. 27).

    Esse ponto tem para nós uma importância fundamental, porque através dele promovemos a escuta, o diálogo e as trocas de experiências. Vivemos tempos onde o distanciamento entre as pessoas é a tônica das relações que a cada dia se tornam mais superficiais. A capoeira – em contraposição a esse cenário – constitui-se em uma excelente ferramenta para a integração entre as pessoas. Não pode ser praticada isoladamente e exige concentração, atenção e cooperação por parte dos jogadores. Como não obedece a regras fixadas em regulamentos, exige que o capoeirista observe permanentemente o comportamento e as atitudes de seus companheiros para adaptar-se às circunstâncias. Cada aula, cada treinamento, roda ou jogo significa uma nova experiência, uma nova possibilidade de aprendizado, de convivência.

    Nossa metodologia utiliza principalmente a transmissão oral de conhecimentos e valores, uma valiosa ferramenta pedagógica e uma forma de reunir as pessoas e estimular a convivência durante e para além das aulas. Acreditamos que a prática do diálogo é o que o retroalimenta e lhe confere sentido, afinal, não haverá sentido algum em dialogar, se essa prática não o aproximar daquele com quem se dialoga.

    O ambiente que procuramos criar durante as atividades é de investigação, de descoberta, de compreensão e, também, de ressignificação do que já foi aprendido através da criação de situações-problema e do contato com as possibilidades levantadas pelos companheiros; mas há, ainda, a busca pela harmonia quando o assunto é a musicalidade, o entrosamento na composição da bateria, o correto entendimento das palavras pronunciadas nas cantigas e a resposta efetiva do coro. O processo deve envolver a todos, e mesmo aquele indivíduo que não participa efetivamente, ao negar-se, está em relação aos demais e deve, portanto, ser considerado.

    A habilidade individual deve estar sempre a serviço da realização coletiva, do canto expressivo que estimula o coro, do instrumento bem tocado que dita com firmeza o ritmo e não como simples forma de promoção pessoal, assim como a observância dos corretos procedimentos de entrada e saída do jogo, o canto e a resposta em coro são primordiais para a realização de uma roda de capoeira.

    Todos esses códigos favorecem o entendimento de que assim como na capoeira, a vida em sociedade, também, é regida por leis e normas de conduta que devem ser observadas por todos, indistintamente, visando o equilíbrio do coletivo. Entendemos que a criança é um pequeno cidadão, não meio cidadão, portanto, deve – desde cedo e durante todo o período de maturação – conhecer e ser um cumpridor de regras que favoreçam o convívio e o seu desenvolvimento saudável, e nada pode ser mais pedagógico que vivenciar e poder compreender o sentido da regra que limita, mas, ao mesmo tempo, garante a coesão de um determinado grupo de pessoas. O grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade. (FREIRE, 2011, p. 103).

    Estratégias de mobilização

    A capoeira é uma prática marcada pelo encontro. Ela só se realiza plenamente na relação entre as pessoas que têm, nesses momentos, o prazer de conhecer ou de rever aqueles com quem ela mesma já havia possibilitado travar conhecimento anteriormente. Pensando na riqueza de situações que essa prática possibilita e na dimensão que o trabalho galgou durante o seu desenrolar, decidimos em conjunto ousar na realização de grandes eventos, na mobilização e deslocamento dos participantes em duas ocasiões durante o ano, além das participações nos outros eventos do programa.

    Para permitir que os alunos compreendam a dimensão do trabalho que realizamos, organizamos anualmente, no primeiro sábado de julho, um Batizado e Entrega de Cordas com todos os integrantes de nossas oficinas na Praça Cívica, dentro do campus da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). No ano de 2013, tivemos a participação de cerca de 500 alunos e dezenas de capoeiristas convidados. Buscamos com isso, dar visibilidade social à capoeira, demonstrar o seu potencial pedagógico e a grande adesão que ela encontra em nossa cidade. Por outro lado, estimulamos nossos alunos a buscarem ampliar seus horizontes, tanto na capoeira – pela possibilidade de interagir com tantos outros capoeiristas – como em suas ambições pessoais, ao reuni-los em um espaço público, que vem aos poucos tornando-se cada vez mais acessível às camadas mais populares, mas que precisa ser conhecido e frequentado antes do ingresso formal, para que este aconteça de forma natural e espontânea.

    O outro motivo para grande mobilização são as Rodas de Final de Ano, onde organizamos o deslocamento de várias turmas para bairros de outras regiões da cidade para a realização de um aulão e de uma roda. São, em média, nove rodas no período de duas semanas e, a cada ano, procuramos modificar as rotas e diversificar o encontro de turmas para aumentar a integração entre os alunos, deslocá-los um pouco de sua rotina e permitir que conheçam, de fato, a nossa cidade, indo a bairros que não costumam frequentar por causa da distância, da inexistência de festividades e outras atividades integradoras nesses locais mais distantes do centro ou de rivalidades existentes entre jovens de diferentes comunidades. Esta ação visa, também, demonstrar como a prática da capoeira faz parte do cotidiano citadino. Sempre ouvimos referências a grupos existentes ou que já estiveram em plena atividade em diversos pontos da cidade e é comum ouvirmos relatos de pais e responsáveis sobre a existência de capoeiristas, hoje, inativos nas localidades onde atuamos.

    Considerações finais

    A capoeira, hoje organizada na forma de grupos, alcançou um crescimento fantástico e se consolidou como prática cultural e desportiva no Brasil e, também, pelo mundo inteiro. Vivemos um momento especial com o seu registro como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, em 2008, e o início de uma série de ações para a constituição de políticas públicas para a capoeira. Nesse sentido, é indispensável dizer que por maiores que sejam os esforços em nível federal, eles terão pouca eficácia se as administrações municipais não voltarem sua atenção para a capoeira no contexto local, afinal, apesar de a capoeira possuir um aspecto exterior facilmente identificável, os meandros da sua prática e as demandas locais podem ser muito diversas. Assim, queremos, aqui, destacar que iniciativas, como o Programa Gente em Primeiro Lugar, têm fundamental importância na medida em que não apenas possibilita o desenvolvimento da capoeira em nível local, mas, também, cumpre o papel de garantir o acesso público a um bem cultural imaterial que foi constituído pelo nosso povo e que deve a ele ser permitido usufruir de forma integral para a preservação de nossa identidade.

    Que possamos aprender com a Capoeira que nos mantém íntegros e integrais nessa grande salada global de etnias. Que possamos jogar sem a mancha da submissão. Que possamos gingar para dar o drible no controle que tenta unificar a cultura do mundo pela imposição do único. A capoeira está entre as grandes contribuições do Brasil ao imaginário do mundo. Esta é a prova de que o mar leva… e o mar devolve: saímos dos porões amargurados dos navios negreiros e voltamos consagrados pela fraternidade da arte. Resistência da Capoeira… (Ministro da Cultura Gilberto Gil. Genebra, 2004).

    Referências

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011a.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011b.

    LADRIÈRE, Jean. Vida social e destinação. São Paulo: Convívio, 1979.

    MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

    SAVATER, Fernando. O valor de educar. São Paulo: Planeta, 2012.

    SODRÈ, Muniz. Mestre Bimba: corpo de mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002.

    CAPÍTULO 2

    Alguns apontamentos sobre capoeira e educação para a diversidade

    José Luiz Cirqueira Falcão

    ²

    "A capoeira de nada precisa, quem precisa sou eu...

    Cada um é cada um...

    Ninguém jogo do meu jeito."

    (Mestre Pastinha)

    Introdução

    Para iniciar este jogo discursivo acerca da capoeira e da educação para a diversidade na sociedade brasileira, neste 1º Congresso Internacional de Pesquisadores da Capoeira³, nestas históricas e acolhedoras cidades do Recôncavo Baiano, Cachoeira e São Félix, logo me veio à memória a oportunidade ímpar que tive, 13 anos atrás, de fazer uma viagem de estudo a estas cidades com uma turma de professores vinculados à disciplina Seminário de Pesquisa em Educação, coordenada pelo professor Luiz Felippe Perret Serpa (in memorian),⁴ quando ainda cursava o doutorado em Educação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, em 2000.

    As atividades da viagem de estudo coordenada pelo professor Felippe Serpa aconteceram em vários pontos desta cidade: nos bancos da varanda de uma venda situada nos arredores de uma praça, numa irmandade (Boa Morte), num terreiro de capoeira, num engenho velho abandonado e numa igreja em ruínas e envolveu diferentes interlocutores, além dos próprios estudantes. Foi uma das experiências culturais mais ricas que tivemos a oportunidade de participar naquele momento inicial de formação doutoral.

    Hoje, ao retornar a estes lugares acolhedores, após 13 anos, para dialogar com estudiosos da capoeira provenientes de diversos campos do conhecimento, acerca da relação desta manifestação com a educação para a diversidade, não me furtarei a oportunidade de retomar algumas reflexões e alguns apontamentos daquela inesquecível e instigante viagem de estudo e dos precisos e estratégicos ensinamentos do professor Felippe Serpa.

    Para isso, iniciarei minha exposição dialogando com este engajado e irreverente filósofo, por intermédio dos seus primeiros e assistemáticos apontamentos sobre o que ele denominava de pedagogia da diferença,⁵ uma possibilidade pedagógica bastante sintonizada com o tema central desta exposição.

    Enfatizo, preliminarmente, que não dá para falar de capoeira e educação para a diversidade sem falar de capoeiras vivos, em suas relações orgânicas com essa prática corporal, que hoje, a despeito de muitos obstáculos, se estendeu pelos cinco continentes do globo terrestre.

    Partindo desse pressuposto básico, estou convicto de que, no Brasil, a temática diversidade não pode ser analisada fora do contexto da desigualdade. Sendo assim, tenho como perspectiva política o enunciado do imperativo intercultural exposto por Boaventura de Souza Santos, quando argumenta que [...] as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza (SANTOS, 1997, p. 30). Em outras palavras, tenho como horizonte político o desafio de que o homem deve lutar para se igualar naquilo em que a sociedade de classes o diferenciou e lutar para se diferenciar naquilo em que a sociedade de massas o igualou.

    No meu entendimento, a capoeira não pode, portanto, ser analisada à revelia das condições objetivas em que vivem os seus praticantes. É preciso, antes de tudo, considerar que capoeira é vida. Analisá-la a partir desse pressuposto implica em não perder de vista que a vida humana constitui uma totalidade histórica que é, ao mesmo tempo, natureza, individualidade e, sobretudo, cultura, relação social. Uma unidade na diversidade física, psíquica e social.

    Analisar a capoeira e sua relação com a educação para a diversidade exige que os sujeitos envolvidos com essa prática sejam considerados em suas múltiplas dimensões, que contemplam desde suas necessidades imperativas adstritas ao reino das necessidades materiais até as suas possibilidades vinculadas ao reino da liberdade.

    Sendo assim, cabe aqui destacar algumas questões recorrentes que podem contribuir para o desdobramento das reflexões e dos argumentos que compõem o arcabouço deste artigo.

    Afinal, o que é diversidade? Como se configura a diversidade na capoeira? Como a diversidade de uma capoeira se distingue de uma outra? Quem define a diversidade entre as capoeiras? Quais são as normas presumidas a partir das quais uma capoeira é marcada como diferente? Qual é a natureza das atribuições que são levadas em conta para caracterizar uma capoeira como diferente? Como as fronteiras da diversidade são constituídas, mantidas ou dissipadas na capoeira? Como os vários grupos estão representados em diferentes discursos da diversidade? A diversidade diferencia lateral ou hierarquicamente? Questões como essas levantam uma problemática mais geral sobre a diversidade como categoria analítica e podem contribuir para esclarecer esse complexo e contraditório fenômeno.

    Quando se fala de diversidade, que, segundo o dicionário Michaellis, vem do latim "diversitate" e consiste na qualidade daquele ou daquilo que é diverso, diferença, dessemelhança, variedade, logo nos vem à mente outra palavra que, nos últimos anos, ganhou densidade no debate sociocultural: pluralidade, que implica no fato de algo existir em grande quantidade, de não ser o único, que sugere multiplicidade.

    Avtar Brah, professora de Sociologia da Universidade de Londres, em seu clássico artigo Diferença, diversidade, diferenciação, problematizou a temática da diversidade a partir da categoria negro (black). Sem fazer uma distinção entre os níveis macro e micro de análises, a referida autora pontuou como as questões da diferença foram enquadradas na teoria e na prática feministas durante as décadas de 1970 e 1980, tendo como foco principal o debate britânico e sugeriu, ao final, quatro maneiras como a diferença pode ser conceituada: diferença como experiência, diferença como relação social, diferença como subjetividade e diferença como identidade (BRAH, 2006, p. 359), apresentando um novo quadro para a análise dessa categoria.

    O cotejo dos argumentos levantados por Brah com a experiência da capoeira – construção social de herança cultural negro-africana materializada como um misto de luta, jogo e dança – suscita reflexões significativas para a análise da controvertida categoria da diversidade.

    Para compreendermos o processo de educação para a diversidade por meio da capoeira, cabe ainda uma breve explanação acerca de significado, projetos e formas de educação que referendam nossas formulações.

    Considerando que, em um sentido lato, ninguém escapa da educação, já que ela é inevitável (BRANDÃO, 1989, p. 99), esse processo deve ser tratado a partir de uma visão ampliada, complexa e dinâmica do agir intencional do ser humano, que transforma a natureza e nela inscreve significados, como um processo também educativo, no qual interseccionam as dimensões subjetiva (produção de subjetividades), política (produção e distribuição de poder), cultural (produção e distribuição de símbolos) e econômica (produção e distribuição de utilidades) da vida em sociedade.

    Daí, surge a necessidade de problematizarmos os objetivos de se educar com e por intermédio da capoeira e os meios adequados para concretizá-los. Se tomarmos como referência os objetivos apontados por Saviani (2000, p. 40) para a educação brasileira: educação para subsistência, educação para libertação, educação para a comunicação e educação para transformação, poderíamos vislumbrar que a capoeira deve ser tratada na perspectiva da educação para a transformação. Muito embora, como fenômeno cultural de caráter polissêmico, ela possa ser utilizada para atender aos mais díspares objetivos.

    Considerando que a realidade não está dada, nem tampouco predeterminada, na luta pela transformação social, é indispensável considerar:

    o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. [...] No mundo da História, da cultura, da política, constato, não para me adaptar, mas para mudar. (FREIRE, 1998, p. 85-86) (grifos do autor).

    Temos, ainda, o entendimento de que a educação se materializa por meio de diferentes modalidades, dentre elas, a não formal, que, por sua vez, vem ocupando um espaço cada vez mais significativo no contexto nacional e internacional, não como alternativa ao ensino formal, pois isso nem é possível legalmente e nem desejável, mas como possibilidade de abertura para outros modos de promover a formação pessoal. O termo educação envolve um leque amplo de experiências educativas, informativas e formativas que não se resume à experiência escolar, formal. Para Von Simson et al (2007, p. 14):

    tanto a educação formal quanto a não-formal, pela potencialidade de lidar e de se abrir para outros modos de fazer, de contribuir para e de construir o processo de aprendizagem e formação pessoal, favorecem e estimulam a ocorrência de experiências e de sentidos. A educação não-formal, por poder lidar com outra lógica espaço-temporal, por não necessitar se submeter a um currículo definido a priori (ou seja, com conteúdos, temas e habilidades a ser desenvolvidos e planejados anteriormente), por dar espaço para receber temas, assuntos, variedades que interessem ou sejam válidos para um público específico naquele determinado momento e que esteja participando de propostas, programas ou projetos nesse campo, faz com que cada trabalho e experimentação sejam únicos. E, por envolver profissionais e frequentadores que podem exercitar e experimentar um outro papel social que não o representado na escola formal (como professores e alunos), contribui com uma nova maneira de lidar com o cotidiano, com os saberes, com a natureza e com a coletividade. (VON SIMSON et al 2007, p. 14).

    A despeito de a capoeira, nos últimos anos, ter passado por um processo significativo de escolarização, se inserindo, portanto, na educação formal, desde o Ensino Fundamental ao Superior, não faremos aqui maiores considerações sobre a configuração das modalidades de educação em que ela se insere, por compreendermos que essas modalidades, cada uma com suas lógicas próprias, necessitariam de vários desdobramentos analíticos que não podem ser realizados no escopo desse artigo. Entretanto, convém destacar que essas modalidades se interseccionam e se complementam em vários aspectos.

    Fato é que a capoeira se insere majoritariamente no campo não formal de educação, mas nem por isso deixa de ter a sua importância no processo de formação integral do ser humano. Ademais, cada experiência, cada dinâmica envolvendo esta manifestação cultural, nos convida a analisá-las a partir de visões singulares e conversas plurais.

    Se, no início do século XX, uma roda, geralmente sem uma coordenação e lideranças definidas e explícitas, era o lócus fundante do processo de educação não formal envolvendo a capoeira, onde se podia exercitar e assistir demorados jogos da luta dança, atualmente, embora haja uma quantidade expressiva de associações, federações e entidades corporativas,⁷ são os denominados grupos de capoeira⁸ os principais responsáveis pela consolidação da capoeira nesta modalidade de educação.

    Esses grupos, além de contribuírem para a consolidação de um emergente mercado capoeirano, seja por meio de aulas, treinos, seja por intermédio de oficinas, cursos e "workshops", colaboram na sistematização e difusão de um saber cada vez mais especializado, o que garante, entre outras questões, o sustento dos trabalhadores da capoeira⁹ e a interlocução cada vez mais acentuada com o campo da educação formal, via disciplinas, cursos, projetos de pesquisa e de extensão.

    Esses diversos tratamentos pedagógicos da capoeira contribuem para a sua inserção em uma trama complexa de afirmações, disputas, distinções, oposições, fronteiras, controvérsias, mitos, agenciamentos, tensões, conflitos e conveniências que alimentam o processo de formação geral dos sujeitos com ela envolvidos.

    A complexa e abrangente rede que hoje compreende a capoeira se consolidou e se afirmou, inclusive no contexto internacional, pela diversidade de mecanismos, estratégias, vertentes, lideranças, métodos, sistemas hierárquicos e códigos de conduta. A rigor, cada mestre, cada escola, cada grupo edifica suas formas próprias de afirmação e distinção, que terminam se transformando em uma espécie de selo de qualidade, ou seja, em um passaporte para o reconhecimento da própria comunidade.

    Nesse sentido, um projeto de educação para a diversidade por meio da capoeira exige e envolve uma série de ingredientes vinculados às questões pedagógicas, políticas, técnicas, sociais e econômicas, que, caso sejam negligenciados, podem comprometer o processo de promoção do ser humano, o objetivo precípuo da educação.

    Em uma educação para a diversidade, uma pedagogia da diferença

    Retomando o diálogo provocador com o professor Felippe Serpa, a primeira questão que emerge é o desafio que temos, ainda hoje, de superar a fragmentação corpo e mente, herança de Descartes, fortemente acolhida pela Educação e áreas afins, em especial pela Educação Física. Para Serpa, a Educação Física tem elementos potenciais para superar esta fragmentação, que podem ser materializados a partir de novas dinâmicas que refutam a cisão corpo e mente.

    Segundo Serpa (2000b, p.3), da mesma forma que a ciência tem dificuldade de avançar pela sua fragmentação, a Educação Física, preocupada apenas com algumas questões em separado da cultura humana, também não avança. E complementa que a Educação Física pode até prestar grandes contribuições para a saúde, via promoção da aptidão física, mas a contribuição que ela pode dar ao entendimento do que significa ser um humano é muito maior.

    Para o nosso interlocutor, há uma imperiosa necessidade de que a Educação Física, assim como todas as outras disciplinas que mantêm interface com as ciências humanas e sociais, se liberte dos parâmetros cartesianos. A Educação Física precisa incluir em seu bojo todas as formas de linguagem e não apenas a corporal, vinculada ao desenvolvimento da aptidão física. A cabeça e o corpo devem se desenvolver concomitantemente, à medida que não é possível o corpo se movimentar e a cabeça ficar parada, e vice-versa. O corpo não pode estar à frente do humano.

    Trazendo essas primeiras reflexões para dialogar com a capoeira e suas contribuições para a educação para a diversidade, destacamos algumas formulações apresentas pelo nosso principal interlocutor.

    Para Serpa (2000a), primeiramente, deveríamos questionar a hegemonia das propostas educacionais fundamentadas nos pressupostos da identidade, que, por sua vez, geram pedagogias de assimilação. A Pedagogia, em um sentido amplo, precisa inovar e acompanhar o desenvolvimento da sociedade em todos os campos. Especial atenção deve ser endereçada aos avanços na área da linguagem e da comunicação, instaurados pelas chamadas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), já que são, na atualidade, estruturantes no acesso e na manipulação do conhecimento. Não se trata, pois, de uma vontade de inovar, trata-se de uma necessidade social de inovação.

    Não há mais lugar para pedagogias de assimilação que privilegiam conceitos e conteúdos previamente determinados por outrem. Educar para a diversidade implica adentrar labirintos de infinitas possibilidades geradas num contexto de diferenças.

    Para Serpa (2000a), o labirinto é um jogo que não foi jogado e suas regras são criadas durante o jogo. O mais interessante é que o labirinto, uma estrutura altamente complexa, é composto por uma linguagem muito simples – uma linguagem binária, que se caracteriza pelo agenciamento nas tomadas de decisão.

    Nesse sentido, uma educação para a diversidade por meio da capoeira implica levar em consideração não apenas o conceito e a técnica, mas, também, o agenciamento, a singularidade e a intensidade de cada acontecimento. Para Serpa, não há lugar para hegemonias universais, para as grandes narrativas. Uma palavra fundamental nesta dinâmica é a instabilidade. As instabilidades são localizadas e se diluem para dar lugar a outras, infinitamente.

    Uma educação para a diversidade por intermédio da capoeira deve levar em consideração os sujeitos e os contextos envolvidos, mas, para isso, não há um caminho a priori. Normalmente, diz-se que o caminho é feito ao caminhar. Na pedagogia da diferença, essa afirmação não procede. Como em um labirinto, não há caminhos, porque, a cada decisão, o caminho anterior se dissolve.

    Para Serpa, é preciso considerar a necessidade de viver a diferença, e cultivar a diferença é viver em um universo virtual de possibilidades. A realidade é um colapso das possibilidades virtuais, reduzida significada pela linguagem. Nesse sentido, ela é um espaço/tempo de infinitas possibilidades. A diferença é, nesse contexto, indizível, porque só é dizível quando se agencia através das diversas formas de linguagem que dão sentido aos acontecimentos.

    Os argumentos de Serpa nos ajudam a compreender que o trato com o conhecimento, um atributo essencialmente vinculado à Pedagogia e, por extensão, à Educação, requer uma sintonia fina com os principais avanços sociais conquistados nos mais diferentes setores, desde a economia, passando pela cultura e a política.

    Desafiando os desafios

    A partir das contribuições de Serpa, como poderíamos conceber a educação para a diversidade por meio da capoeira?

    Preliminarmente, torna-se imperioso considerar que a capoeira não pode ser concebida como uma ilha social. Ela está articulada com as dimensões culturais, políticas e econômicas da vida em sociedade. Nesse sentido, discutir e analisar aspectos relacionados com capoeira e suas contribuições para a educação para a diversidade exige que realizemos criticamente uma contextualização da realidade social objetiva, sob pena de ficarmos no âmbito de análises idealistas tanto da capoeira quanto do contexto em que ela se insere. Destarte, assim como não se concebe um ser humano idealisticamente, a capoeira só pode ser compreendida em suas relações com outras dimensões da vida social a partir de sua realidade concreta, historicamente determinada e contraditória.

    Assim sendo, ao se fazer uma análise do movimento histórico da capoeira, pode-se destacar, sinteticamente, que esta manifestação, desde os seus primeiros registros, se configura como uma prática diversa e multifacetada.

    Embora prevaleça a tese de que, originalmente, tenha sido uma construção dos negros escravizados no Brasil, ela apresenta, desde os seus primeiros registros (final do século XVIII), as marcas da diversidade, resultante da plurietnia dos sujeitos com ela envolvidos. Graças às suas metamorfoses, resistiu a décadas de feroz perseguição por parte do poder constituído, para se tornar, nos últimos anos, uma das mais dinâmicas manifestações inseridas no chamado mundo globalizado.

    Os registros históricos evidenciam que, quando a capoeira ensaiou os seus primeiros passos, no Brasil, o fez através dos corpos de africanos de várias etnias e reinos, trazidos pelos portugueses para a, então denominada, Terra de Santa Cruz. É possível afirmar, portanto, que, embora ela tenha sido engravidada na África, ela já nasce no Brasil pluriétnica. Ou seja, diversa. Ela foi batizada no Brasil como filha de uma condição de exploração a que foram submetidos seres humanos procedentes de diversas etnias africanas em terras recém-invadidas pelos portugueses.¹⁰ Esse traço de diversidade que grassa essa manifestação, desde que começaram os seus primeiros registros, no século XVIII, pode ser ainda verificado no expressivo número de estrangeiros que engrossaram suas fileiras a partir dos idos de 1850, quando o Brasil começava a atrair aventureiros de várias partes do mundo, contagiados pela possibilidade de viverem num suposto paraíso tropical. Segundo Soares (1997), para adentrar os perigosos e boêmios labirintos da então emergente cidade do Rio de Janeiro, entre o final do século XIX e começo do século XX, muitos portugueses, italianos, argentinos, franceses, alemães e espanhóis juntavam-se aos negros rebeldes e ex-escravos, e, nas sombras da capoeiragem, construíam, em um ambiente extremamente hostil e conflituoso, laços de solidariedade para enfrentar o infortúnio e a miséria comuns aos forasteiros, desamparados e estranhos que chegavam ao Novo Mundo na expectativa de encontrar o paraíso ao sul do equador.

    Essa complexa rede, formada por africanos, crioulos e europeus, que viviam à margem da sociedade, construída a partir de uma tensa simbiose que destruía e reconstruía distinções e valores para além das diferenças como experiência, como relação social, como subjetividade e como identidade (BRAH, 2006), demonstrava o quanto a cultura poderia ser transformada pelos sujeitos mais segregados da sociedade.

    Nesse labirinto, os filhos da marginalidade citadina (SOARES, 1997) incorporaram e construíram seus códigos de conduta, suas gírias, suas armas e seus discursos cifrados que podem ser entendidos como táticas de resistência aos padrões culturais dominantes, embora distintas de outras formas mais clássicas de resistência. É possível afirmar que muitos desses códigos de conduta foram, provavelmente, herdados da Lisboa boêmia, do século XIX, onde a figura sincrética do fadista se destacava.

    A Lisboa boêmia,¹¹ habilmente caracterizada por Machado Pais (1985), em estudo sobre o fenômeno da prostituição na capital portuguesa, era uma região marcada, essencialmente, pela marginalidade e caracterizava-se como espaço de valorização do indecente e do imoral, onde se misturavam fadistas, prostitutas, toureiros, vagabundos, boleeiros, chulos, marialvas e marinheiros que, independentemente da sua origem social, mantinham uma convivência entre si, cujas distinções superorgânicas de significados-valores-normas, aparecem socialmente minimizadas (MACHADO PAIS, 1985, p. 44).

    Segundo o jornalista português, João Pinto Ribeiro de Carvalho, conhecido como Tinop, a bagagem cultural dos capoeiras tinha enorme similitude com a dos fadistas portugueses. Ambos, além de cantar, eram excepcionais jogadores de navalhas e lutavam habilmente. Essa semelhança levou Tinop a fazer a categórica afirmação: Os fadistas do Rio de Janeiro são os capoeiras. (TINOP, 1982, p. 50).

    O fato é que alguns estudiosos, dentre eles, Bretas (1991), Soares (1997) e Tinop (1982), identificaram em suas pesquisas que boa parte dos costumes, das gírias e dos comportamentos dos capoeiras cariocas, da passagem do século XIX para o XX, apresentava grande semelhança com o acervo cultural do fadista português, como o uso da navalha, as rixas, a forma de vestir,¹² a boemia, a algazarra, a desordem, o apego ao lúdico, evidenciando que, apesar de estarem separados por milhares de quilômetros de oceano, faziam parte de um berço cultural comum, ainda que com características diversas. Segundo Soares (1997, p. 689): tanto o capoeira como o fadista eram produtos de uma incipiente sociedade urbana do século XIX e também filhos da marginalidade citadina.

    Essas configurações verificadas nos primeiros movimentos de afirmação social da capoeira evidenciam a diversidade instaurada na história, nos rituais e nos fundamentos dessa manifestação tornando, inclusive, o seu maior patrimônio.

    Sendo assim, uma proposta de educação para a diversidade por meio da capoeira deve contemplar o seu acervo histórico-cultural e não apenas se reduzir a sequências de treinamento físico prescritas por terceiros. Nesse sentido, torna-se premente não desencarná-la do movimento cultural e político que a gerou (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 76), a fim de evitarmos que os nossos jovens se desenvolvam em uma espécie de presente contínuo (HOBSBAWM, 1995), alheios ao passado que os gerou, pois, todos somos herdeiros de diferentes experiências e fatos históricos decisivos que consolidaram o presente exatamente como ele se apresenta.

    Segundo Hobsbawm (1995, p. 13), a destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal a das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Sendo assim, um projeto de educação para a diversidade por meio da capoeira deve levar em consideração os fatos históricos cruciais que contribuíram e continuam contribuindo para o seu desenvolvimento e como eles se relacionam entre si para materializar a realidade tal como ela é.

    Se educação implica também processos de mediação e intervenção, uma proposta de educação para a diversidade com a capoeira deve buscar a superação de análises mecânicas impregnadas de visões ingênuas, metafísicas e acríticas. Esse processo deve levar em consideração a concreticidade – que pressupõe analisá-la a partir de sua relação com a realidade social; a criticidade – que subentende a radicalidade, a rigorosidade e a reflexão de conjunto; a objetividade – que requer a explicitação dos fundamentos do modo científico de encarar os fenômenos, como condição para a construção do conhecimento; a especificidade – que envolve o domínio, em amplitude e profundidade do conteúdo em todo o seu conjunto; a flexibilidade – que exige aberturas às contribuições complementares (COLETIVO DE AUTORES, 1992).

    Em uma sociedade democrática de direito, é evidente que uma educação para a diversidade por intermédio da capoeira deve estar assegurada, também, por um conjunto de políticas públicas específicas e intersetoriais e instrumentos legais que garantam o exercício pleno e o respeito a esta diversidade.

    O reconhecimento, por parte do Estado, da capoeira como patrimônio imaterial da cultura brasileira, em julho de 2008, englobou duas dimensões significativas desta manifestação: a roda de capoeira, registrada no Livro de Formas de Expressão, e o ofício de mestre de capoeira, registrado no Livro de Registro dos Saberes.¹³ Embora os fatos apontem para uma insípida mudança na estruturação da capoeira como um bem público, essa ação muda radicalmente o modo como ela vinha sendo tratada pelo Estado. Se, desde o início da República, a postura do Estado brasileiro em relação à capoeira tem oscilado entre a repressão e o desprezo. (VIEIRA, 2012, p. 133), com o seu registro como patrimônio imaterial da cultura brasileira, as possibilidades de reconhecimento, valorização e respeito à diversidade desta manifestação estão dadas. Afinal, como destaca Vieira (2012, p. 147), boas políticas de salvaguarda serão políticas de preservação da diversidade.

    Esses fatos históricos realçam o signo da diversidade que a capoeira carrega desde os primórdios. Como a sociedade brasileira se transformou significativamente desde a chegada de portugueses, de africanos e de povos de outras nacionalidades, pensar uma educação para a diversidade por meio da capoeira exige, nos dias de hoje, entre outros aspectos, lutar pela manutenção e ampliação dos direitos civis dos sujeitos envolvidos e do espaço público destinado a esta manifestação; lutar contra diferentes formas de opressão social e econômica que incidem sobre os praticantes; enfrentar a cultura do privilégio bastante presente na relação entre segmentos de capoeira; lutar contra a monopolização da informação; enfrentar o fascínio pelos signos de prestígio e poder; atentar para o cumprimento das legislações vigentes, em âmbito nacional e internacional, que tratam do respeito à diversidade afetivo-sexual, étnica, de gênero e de credo.

    Considerações finais

    Levando em consideração as problematizações de Brah (2006), as sistematizações de Serpa (2000) e o dinâmico movimento histórico da capoeira, podemos concluir que uma educação para a diversidade por intermédio desta prática corporal requer uma operação articulada de estratégias, que: 1) insira a sua historicidade nas dinâmicas pedagógicas, valorizando seu movimento histórico secular, cuja característica essencial é a de ser um espaço da divergência, da diferença, do conflito; 2) valorize o cotidiano e as inovações exitosas de trato com esse conhecimento; 3) estabeleça consistentes alianças com os movimentos sociais e culturais, que vêm acenando, de forma contundente, para as necessidades concretas dos sujeitos envolvidos com esta prática corporal; 4) opere com múltiplas e diversas linguagens envolvendo a oralidade, a gestualidade e a ritualização; 5) estimule a criação de políticas de capacitação, qualificação e especialização profissional com vistas à formação e valorização dos sujeitos envolvidos; 6) estimule a criação de mecanismos legais que coíbam e punam severamente atitudes de intolerância, preconceito e discriminação vinculadas às questões de gênero, étnico e racial, sexualidade e geração; e 7) acione o poder público para a formulação e ampliação de programas e políticas governamentais, nas três esferas de poder, que contemplem a diversidade tanto da capoeira, como das populações envolvidas.

    Não dá para falar da capoeira apenas no singular, mas de capoeiras. Embora seja a um só tempo una e plural, é a pluralidade o elemento estruturante de sua configuração social. Nesse sentido, uma educação para a diversidade por intermédio da capoeira deve, em última instância, levar-nos a compreender que, embora sejamos iguais, somos ao mesmo tempo diferentes, tal como perspectivou sabiamente Mestre Pastinha (1968): a capoeira de nada precisa, quem precisa sou eu, cada um é cada um e ninguém joga do meu jeito.

    Referências

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    HOBSBAWM. E. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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    PASTINHA, M. Capoeira Angola. 2. ed. Salvador: Escola Gráfica Nossa Senhora de Loreto, 1968.

    SANTOS, B. S. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Revista Crítica de Ciências Sociais n. 48, Coimbra – Portugal, pp. 11-31, , jun. 1997.

    SERPA, L. F. P. Pedagogia da diferença: desafios para o ensino superior. Palestra proferida no Seminário Educa UFBA. Faculdade de Educação, UFBA, 18 ago. 2000a.

    SERPA, L. F. P. A pedagogia da diferença e a educação física. Palestra proferida no Seminário Metodologia do Ensino e da Pesquisa da Cultura Corporal. Faculdade de Educação, UFBA, 24 out. 2000b.

    SOARES, C. E. L. Dos fadistas e galegos: os portugueses na capoeira. Análise Social Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa - Portugal. Vol. XXXII (142), pp. 685-713, 1997.

    TINOP (Pseudônimo de João Pinto Ribeiro de Carvalho). História do Fado. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982.

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    VIEIRA, L. R. e ASSUNÇÃO, M. R. Mitos, controvérsias e fatos: construindo a história da capoeira. Revista de Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, n. 34, pp. 81-120, 1999.

    VIEIRA, L. R. A capoeira e as políticas de salvaguarda do patrimônio imaterial: legitimação e reconhecimento de uma manifestação cultural de origem popular. In: GONÇALVES, A. M. T. (Org.). Capoeira em perspectivas. Belo Horizonte: Tradição Planalto, 2012.

    VON SIMSON, O. R. M.; PARK, M. B. e FERNANDES, R. S. Educação não-formal: um conceito em movimento. In: Visões singulares, conversas plurais. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/bcodemidias/000459.pdf> Acesso: 20 fev. 2014.

    Capítulo 3

    Educação, arte e subjetividade: um encontro possível?

    ¹⁴

    Cesar Barbieri

    ¹⁵

    O mundo é uma totalidade aberta ao horizonte de um número indefinido de perspectivas

    (Merleau-Ponty)

    Ao abordar, neste momento, o complexo tema: arte, educação e subjetividade na sociedade contemporânea, e, especificamente, a possibilidade concreta da confluência desses elementos que, dentre outros não menos importantes, constituem o amálgama da existência humana, inevitavelmente, sou levado a considerar alguns eventos comemorativos que permanecem sendo realizados e que nos remetem a fatos e pessoas, indubitavelmente, fundamentais nesta reflexão sobre a relação de nossas raízes culturais com o processo de formação de nossa identidade. Comemora-se, ainda, os 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922 que, transcendendo ao pontual acontecimento ocorrido no Teatro Municipal de São Paulo (13 a 17 de fevereiro), impulsionou, definitivamente, o Modernismo no Brasil, acolhendo em seu caudaloso e polêmico leito, na segunda década do século XX, a antropofagia de Oswald de Andrade (1890-1954); os cem anos do nascimento de Luiz Gonzaga (1912-1989), o nosso Rei do Baião, que, por intermédio da música e da poesia, principalmente, oportunizou, não sem grande dificuldade, o tangenciamento, paciente e perseverante, da cultura das classes populares com o gosto e reconhecimento da classe dominante, mesmo que ainda um tanto carregado de preconceito e alicerçado em estereótipos discriminadores; o centenário de Nelson Rodrigues (1912-1980), que nos apontou, de uma vez por todas, o reconhecimento do óbvio ululante e o seu consequente impacto; e o centenário de Jorge Amado (1912-2001), esse Oju-Obá, que via e contava as agruras e alegrias do povo brasileiro.

    É, pois, impulsionado pelos desdobramentos da Semana de 22 (com Tarsila, Mário de Andrade, Brecheret, Villa Lobos, Di Cavalcanti e outros) — e pelo legado deixado por aqueles cantores, compositores e escritores que sempre ressaltaram a importância do cotidiano das pessoas comuns e da sua garra em enfrentar as dificuldades no processo de construção de suas existências — que, fundamentando-me nos pressupostos e princípios da fenomenologia existencial-hermenêutica, passo às minhas considerações quanto à possibilidade de convergência, de encontro, entre os fenômenos arte, educação e subjetividade na sociedade brasileira contemporânea.

    Ter a Arte como um dos componentes da reflexão que o tema impõe não é tarefa das mais fáceis, tendo em vista os vários sentidos atribuídos a essa atividade humana que, sabe-se hoje, está presente em nossa vida desde os seus primórdios. No entanto, devo deixar explícito que, ao me referir a ela, o faço levando em consideração, por certo, as suas várias interpretações, lembrando, como afirma Jorge Coli, que a arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o discurso, o local, as atitudes de admiração etc.¹⁶

    Assim, não é possível deixar de ficar atento à sua polissemia e, tampouco, de buscar a compreensão quanto à coexistência (dialética) dos vários significados a ela atribuídos, seja o que a concebe como experiência estética, já apontado por Nietzsche, em 1871, ao afirmar que o mundo é, na verdade, um fenômeno estético;¹⁷ seja a interpretação platônica, que enfatiza a relação entre a qualidade do lavor e a eficácia na consecução dos objetivos, tão debatida por Sócrates e Hípias, no diálogo em que discorrem sobre o belo;¹⁸ seja a concepção aristotélica que, ao definir téchne como arte (dentre outros sentidos, de igual forma importantes), concebe-a não como um simples fazer, mas como uma qualidade que traz consigo a perfeita compreensão de seus princípios constitutivos;¹⁹ ou a tentativa de Bauhaus em reunir arte e ofício, buscando forjar a figura do artista-artífice, que seria capaz de conjugar, satisfatoriamente, os princípios do bom desenho estético com as características e finalidades dos produtos industriais, ajustando o desenho aos materiais e métodos de manufaturas modernos;²⁰ ou, ainda, as interpretações que a concebem como forma de pensamento, ou como tendo uma função pragmática ou utilitária, sendo um meio de se alcançar uma outra finalidade, ou, ainda as que definem a obra de arte como um objeto propiciador de uma experiência estética por seus valores intrínsecos; ou, mesmo, apresentando uma função naturalista, a qual destaca o conteúdo da obra, isto é, o que a obra retrata, em detrimento da sua forma ou modo de apresentação.²¹

    Ao desenvolver o presente estudo, fundamentando-me na concepção de que a Arte é o conhecimento intuitivo do mundo,²² intrinsecamente vinculado à experiência estética, como experiência tanto do objeto estético como do sujeito que o percebe;²³ ou, segundo Maiakovski, não, simplesmente, um espelho que reflete o mundo, mas (também) como um martelo que o forja,²⁴ participando, efetivamente, na constituição do processo de formação do sujeito, em interação, profunda, com o fenômeno educação, acompanho o conceito de subjetividade compreendida como sendo a condição do ser humano tornar-se sujeito de sua existência, entendida como o mundo interno de cada ser humano, que possibilita o estabelecimento de suas relações com os outros seres humanos, permitindo a criação de um acervo de crenças e valores que, compartilhados culturalmente, vão construir a experiência histórica e coletiva dos diversos grupos sociais.

    É importante ressaltar, ainda, que esse mundo interno é constituído de emoções, sentimentos e pensamentos, confirmando a existência de indivíduos plurais, diferentes entre si, como afirma Jeni Vaitsman, reconhecidos enquanto lócus de singularidade, que produz e define necessidades específicas que devem ser ouvidas e respeitadas,²⁵ negando, desta forma, as pretensões de homogeneização do processo de globalização com o qual nos deparamos.

    A questão, porém, não é tão simples como parece ser, fazendo com que nos reportemos, inevitavelmente, a uma questão anterior, imemorável, que está contida nos pressupostos que asseguram a existência do binômio uno-múltiplo, e suas consequências no processo de construção da realidade, qual seja, a unidade na diversidade. Um dos muitos desdobramentos do fato de enfatizar-se apenas um dos seus aspectos, o uno, a subjetividade, como interpreta o professor Francisco Fontanela, caracteristicamente mundana, é formada, principalmente, pela dilaceração da existência humana.²⁶ Mas, afinal, o que isso quer dizer? Quer dizer, concordando com o autor, que o que se convencionou chamar de subjetividade, de formação do eu, individual, só se tornou possível pela visão dualista do homem, pela sua fragmentação, ou melhor, pela vivência dessa dualidade a ele imputada.

    Lamentavelmente, em nossa cultura, enfatizou-se a concepção de que o sujeito é, na verdade, o espaço interno — na dimensão psíquica, mental ou espiritual —, chamado, assim, de psique, mente, consciência, alma ou espírito, conforme a lente usada para se tentar compreendê-lo. No entanto, é indiscutível que, mesmo discordando do sentido individual (e individualista) prevalecente, é inadmissível negar a existência do processo de sua formação, ainda que apareça como uma usurpação do sujeito individual, como adverte Fontanella.

    Contrariando Platão e seus seguidores (até hoje), cujas formulações alimentaram a visão dualista corpo/alma, este trabalho vai em direção a outros autores, como Marx, Engels e Kosik, que defendem a ideia de que o homem é ator e construtor do seu mundo. Ao mesmo tempo que constrói a sua realidade, é também construído por ela.²⁷

    Essa herança platônica que alicerça a visão cartesiana-newtoniana do mundo, dando sustentação ao desenvolvimento desse processo de fragmentação do homem, é preciso não se esquecer, determina que ao se falar do sujeito se tenha como referência, obrigatoriamente, o que é chamado de consciência, a qual requer e impõe um distanciamento do objeto para que este possa ser contemplado ou manejado, processo esse que Fontanella interpreta como sendo a abreviação dessa obra monumental que é a formação do sujeito.²⁸ Nessa toada reducionista, ainda aponta o autor, torna-se impossível e inadmissível a compreensão de que a consciência que pensa o mundo possa nele se originar, condenando, assim, o corpo a ser exclusivamente o seu portador, o seu "lócus, seu habitat", concepção essa que se opõe, frontalmente, à de Merleau-Ponty que o compreende como não apenas acesso às coisas, mas, também, como vidente e visível, tateante e tocado, senciente e sensível; que não é apreendido como uma massa material e inerte ou como instrumento exterior, mas como o invólucro vivo de nossas ações;²⁹ que é feito do mesmo estofo, do mesmo tecido, das coisas

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