Candomblé no Brasil: Resistência negra na diáspora africana
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Candomblé no Brasil - Ronan Gaia
APRESENTAÇÃO
É com grande satisfação que escrevo a apresentação do livro Candomblé no Brasil: Resistência Negra na Diáspora Africana, um livro de extrema importância para os dias atuais devido o cenário de intolerância religiosa em que vivemos, principalmente quando se trata dos adeptos das religiões de matriz africana. Os autores, de maneira clara e objetiva, conseguem esclarecer alguns paradigmas que estão intrínsecos na nossa sociedade com fundamentos europeizados que tentaram provocar o genocídio da cultura afro-brasileira e que nas últimas décadas tem ganhado força. O livro traz a seguinte mensagem: nós – o povo de santo – existimos e também temos história!
, história essa que precisa ser recontada por aqueles que vivenciam a religião e sentem na pele os impasses do racismo e do preconceito religioso que os adeptos sofrem constantemente. Como o próprio subtítulo diz Resistência Negra
, pois o candomblé é uma religião baseada na ancestralidade e busca reconectar seus adeptos com seus ancestrais e suas forças da natureza. O candomblé é uma religião de resistência e na segunda parte do livro os autores mostram como a religião, ao longo da história, precisou realizar algumas modificações baseadas no sincretismo para que pudesse resistir. Candomblé no Brasil: Resistência Negra na Diáspora Africana é um livro para ser lido por todos os grupos étnicos, pois, como os autores mesmo dizem, não estão aqui para mostrar fundamentos ou erguer a bandeira de uma única nação, e sim fazer entender que o povo de santo tem voz e buscam a equiparação no que se refere ao respeito, que não existe religião melhor ou pior que a outra, que os mitos fundadores são diversos, pois vivemos num mundo pluriétnico, pluricultural e que não se precisa enquadrar em padrões, ou que não deveriam existir padrões, estabelecidos para excluir determinadas religiões, principalmente, por conta de suas matrizes.
Carla Carlos Oliveira de Almeida
Ofatemi
Licenciada em História pela Uniban com extensão em História Africana pela USP
PREFÁCIO
O livro Candomblé no Brasil: Resistência Negra na Diáspora Africana, que ora vem a público é resultado do trabalho de três autores empenhados com o tema de forma séria, respeitosa e comprometida. Ao ler esta importante obra aprendi muito mais do que sobre candomblé. De fato, é isso que acontecerá aos seus leitores. Já se disse que o candomblé é uma religião que não se faz por uma pessoa só. Prova disso seria a indiscutível necessidade da interação de mais de uma pessoa, tanto para preparar quanto para realizar um simples rito como é o caso de um ebó. Ouvi isso de uma iaô de Oxum, em uma mesa de discussão sobre epistemologias de terreiros na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), aonde tenho a honra de ser professor de Antropologia e de coordenar um núcleo de pesquisas sobre o fenômeno religioso.
Ora, assim como o candomblé é, por natureza, uma religião de comunidade, também foi uma comunidade composta por três pessoas que deu forma às ideias que constam neste livro. Essas ideias, contudo, não resultaram de flutuações intelectuais dos seus autores em um momento de ócio criativo. Lendo o livro se perceberá o quanto ele é resultado de estudos profundos, observações sistemáticas, comprometimento ético e, por que não, vivências existenciais.
Justamente por ter resultado de múltiplas vivências e preocupações dos seus autores, o livro inova em muitos aspectos e representa uma importante contribuição para os estudos do multifacetado legado civilizacional das populações africanas da diáspora. Desde as relações que os autores apontam existir entre o candomblé e outras religiões, como o Islã, por exemplo, até a adesão à nova categoria político-analítica chamada de racismo religioso
.
A propósito, ao problematizar a categoria intolerância religiosa
e advogar a maior eficácia e operacionalidade da categoria racismo religioso
no contexto das ações antirracistas, os autores assumem uma postura que vai muito além de uma simples crítica aligeirada da categoria abdicada ou mesmo do reconhecimento de certa obsolescência heurística daquela categoria que, como sabemos, continua em voga entre grande parte da população afrorreligiosa. Portanto, não se trata apenas de uma mera substituição de categorias analíticas, até porque, Racismo Religioso, antes de se configurar como categoria analítica nos espaços acadêmico-científicos já nasceu como categoria êmico-ética entre as populações de terreiro.
A propósito, se há tão pouco tempo que esta categoria emergiu nos discursos políticos e científicos no Brasil e já está presente em livros, artigos, teses, dissertações, etc., é sinal de que os atores políticos e sociais que a engendraram nos movimentos sociais e culturais são os mesmos que a estão pensando e operacionalizando no âmbito da produção científica. Os autores do livro, portanto, não estão se antecipando à assunção da categoria, eles, na verdade a estão manejando e legitimando, também nos espaços legitimados de produção de conhecimento, visto que não se trata apenas de cientistas e acadêmicos no sentido estrito da concepção positivista ou cartesiana do termo. Prova disso é a opção por referenciais teóricos majoritariamente africanos, negros, afrodiaspóricos ou afrocentrados. Entre tantas opções possíveis, os autores escolhem se mirar nas referências africanas e se fundamentar no pensamento afrocentrado. Isso vai muito além da simples ciência ocidental, ocidentalizada ou ocidentalizante.
Trata-se de uma perspectiva também afrodiaspórica da qual os autores tanto são produtos quanto produtores. Nesse sentido, os leitores e leitoras não devem se surpreender caso encontrem no livro trechos que evocam violências ou episódios de racismo religioso sofridos por algum dos autores. Afinal, como bell hooks já nos ensinou, a dimensão do vivido é fundamental para a educação daqueles que sempre tiveram sua existência negada. E, ainda evocando o pensamento negro-brasileiro contemporâneo, como diria Conceição Evaristo, as escrevivências partem da experiência vivida por corpos negros em diáspora. São por esses caminhos que os autores transitam ao sistematizarem suas ideias e vivências através deste livro.
Como deveríamos saber, um dos esforços que constituem a perspectiva afrocentrada é justamente aquele de desconstruir as falsas visões produzidas e impostas por culturas e sociedades racistas em relação às culturas religiosas africanas ou de origem africana. No livro que se encontra em suas mãos, caro leitor ou cara leitora, você encontrará justamente esse esforço quando os autores apresentam outra imagem da Quimbanda, mostrando e demonstrando que esta religião não tem absolutamente nada a ver com os discursos demonizantes que a mentalidade branquicéfala do racismo à brasileira sempre tentou nos incutir.
Da mesma forma, ao optar pela ideia de cosmopercepção, em vez de cosmovisão, os autores assumem seu posicionamento político, no sentido de fazer ciência a partir de outros parâmetros e estatutos, na firme intenção de – sem desqualificarem de forma inconsequente as categorias ocidentais –, demonstrarem o quanto é possível construir outras linguagens que melhor revelem a forma dos povos africanos ou afrodiaspóricos expressarem sua forma de ser, estar, perceber e sentir o mundo. Por essas e outras opções políticas, metodológicas, filosóficas e epistemológicas, o livro é inovador e potencialmente transformador.
A fim de evitar o cansaço dos leitores, que imagino já estarem ávidos pela leitura do livro, devo reafirmar aqui a minha gratidão aos autores Ronan da Silva Parreira Gaia, Alice da Silva Vitória e Ariel Teixeira Roque, pela honra da leitura em primeira mão e pela oportunidade de escrever este prefácio que tanto me desafia, quanto me honra.
Tenho certeza de que este livro será muito mais do que uma referência acerca das culturas religiosas afrodiaspóricas. Ele já nasce com um potencial transformador, uma vez que foge do lugar comum construído, muitas vezes, a partir da visão parcial de pesquisadores europeus sobre experiências que talvez nunca consigam compreender totalmente. Falo isso lembrando da passagem do documentário Pierre Verger, um mensageiro entre dois mundos, quando aquele importante fotógrafo e etnólogo francês falou das suas limitações em vivenciar a experiência do transe de orixá. Mesmo sem admitir verbalmente, a fala gaguejante e o olhar fugidio de Verger, que também era Fatumbi, deixam perceber por parte de quem assiste o documentário, o quanto o fato de ser europeu dificultava um mergulho mais profundo nessa forma de experimentar a existência.
Não se trata de essencialismos limitantes e nem de diferencialismos fundamentalistas. Trata-se de perspectivas de vida e de cognoscibilidade que envolvem pertencimentos identitários muito profundos. Reconhecer isso é admitir que candomblé é resistência e não simplesmente mais um produto ou serviço oferecido nas prateleiras do mercado de bens simbólicos que compõem o vasto menu de alternativas religiosas disponíveis nessa sociedade secularizada na qual vivemos. Afinal, como os próprios autores afirmam: Se isso não fosse amor, o que mais poderia ser?
Ou seja, candomblé tanto pode ser razão quanto emoção. Tanto pode ser evasão quanto resistência. Nas palavras dos autores, o candomblé carrega em si a potencialidade de ser existência, resistência e re-existência. E não se trata apenas de jogo de palavras.