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Coração Febril
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E-book187 páginas2 horas

Coração Febril

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Sobre este e-book

Após a sua muito celebrada coleção de contos Obsessões Perigosas (Dangerous Obsessions), que teve a guerra como plano de fundo, o autor belga/flamengo Van Laerhoven surpreende novamente com cinco histórias que trazem à luz os nossos impulsos mais auto-destrutivos. Um mercenário sírio de Bashar-al-Assad viciado em esteróides está determinado a se tornar um "mártir" após a perda de seu braço direito em "fogo amigo". Um motorista de metrô aposentado de Londres se torna obcecado em seu desejo de vingar a morte violenta de seus pais na Croácia por meio de seu meio-sobrinho. Um escritor-viajante belga se emaranha na loucura da guerra de Cosovo nos anos 90 e presencia suas consequências dramáticas muitos anos depois em Nova Iorque. Um cansado pintor de art brut em Bruxelas trai ao seu melhor amigo, um forjador de arte ruandês, para a máfia, abrindo-lhe as portas da culpa, do desejo e do assassinato. Um mentiroso nato de apelido Johnny di Machio procura nos anos 70, em Poona, salvação no ashram de Bhagwan para seus problemas sexuais, mas fica preso em um labirinto de violência há muito escondida.

Aldous Huxley escreveu em Admirável Mundo Novo (1932): "Palavras são como raio-x se usadas corretamente - elas passam por qualquer coisa." Isto é precisamente o que Van Laerhoven faz, expondo incessantemente nossa solidao interior e egos vorazes. Coração Febril vai muito mais além do que uma dor no peito.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento11 de nov. de 2020
ISBN9781071574911
Coração Febril

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    Coração Febril - Bob Van Laerhoven

    A Abominação

    C

    erca de quinze minutos até o Al-thar.

    Depois da agonia e da humilhação destas últimas semanas, uma certeza clara rege a minha mente; a vingança é a única saída honrosa desta situação.

    Barricado aqui neste quarto, encarando o espelho que posicionei deliberadamente na minha frente, endereço uma mensagem mental ao meu khaal Bashar al-Assad, regente da Síria: – Alto seja, reverenciado tio de todo Alauíta, abra seus braços, estenda seu shabh até que sua sombra cubra todo cidadão sírio, comandando-os a obedecer ou morrer.

    Aos Ocidentais neste hospital e especialmente àquela mulher, Quagebuur, eu digo – fodam-se e que apodreçam no inferno.

    Allah ou akbar.

    ***

    Faltam dez minutos, creio eu.

    Do lado de fora Amman brilha ao sol, seus arranha-céus pasteis e sons famintos preenchendo a janela. Nesta luz e neste momento, poderia ser o portal a Akhirah, o além-vida.

    Uma parte devota de mim que veio à tona após o acidente de Al-Houla sussura-me que serei um verdadeiro mártir muçulmano.

    Hei de ter minha recompensa de servos e esposas sob o eterno domo adornado de pérolas, verde-azuladas e rubis, tão vasto como a distância de Al-Jabiyyah a Sana’a.

    Uma parte minha mais antiga, o Selvagem que sempre fui de coração, murmura: – Espero que as houris no paraíso sejam das boas. Se forem virgens como o profeta disse, então elas vão ter que aprender pra caralho. Como chupar um pau do jeito certo, por exemplo. É claro, vou ter a eternidade para ensiná-las e, como todos os homens muçulmanos no céu, eu serei o equivalente de Adão, sessenta côvados de altura. Esperemos que meu pinto cresça em proporção.

    Olho o copo de whisky na minha mão esquerda. Sempre gostei da minha birita forte e como o pecado.

    Esvazio o copo. Ainda tem o bastante para mais dois shots na garrafa.

    Deve dar pro gasto.

    O álcool é um demônio com dois caninos na boca; ele aguça meus instintos, mas também me embaralha as memórias.

    A última coisa que quero pensar agora é naquela enfermeira belga, Quagebuur.

    Mas eu penso.

    ***

    – Você perdeu a vontade viver porque seu ego inflado e seu jeito machão de pensar não consegue lidar com o que te aconteceu – ela disse em um árabe tolerável, a mulher belga grosseira, Veronique Quagebuur, enfermeira chefe aqui neste hospital do Médicos sem fronteiras, quando os estilhaços foram removidos das minhas pernas e eu finalmente pude coxear por aí.

    – Você também está clinicamente deprimido porque seu corpo precisa de esteroides para você se sentir como um homem e você não pode ter acesso a eles aqui. Suas gônadas são pequenas demais para recomeçar a produção de testosterona endógena após anos de abuso com esteroides. Você está obcecado com a noção de que seu corpo é fino como papel e fraco. Nós temos um termo médico para essa obsessão: anorexia reversa.

    Eu estava sentado em frente a ela na área de consulta frenética e barulhenta do hospital. Suas gônadas são pequenas demais?

    Se estivéssemos sozinhos, eu teria quebrado o pescoço dela com um braço por ousar falar comigo daquele jeito. Seu cabelo estava amarrado para cima e ela não estava vestindo um niqab, nem mesmo um cachecol. Uma puta dessas, de cabelos acaju e olhos pretos, questionando minha masculinidade?

    Ela se inclinou sobre a mesa: – Só pra constar: você foi um dos Shabiha na Síria? Um dos Assassinos Fantasma?

    Nós nos encaramos, próximos um do outro, mundos distantes. O brilho vítreo da descrença nos olhos de cada um.

    ***

    Eu podia ter dito à mulher belga que Shabih não significa Fantasma. É Shabah, plural ashbah. Recebemos esse nome por causa da Mercedes 600 que usamos nos ataques – apelidada de shabah – e pelo nosso jeito único – tashbih – de descer nossa ira sobre os outros, sobre aqueles que não são apoiadores de Assad.

    Gostamos de matar à faca para o nosso líder Bashar al-Assad, para que todos saibam que foi a Shabiha quem fez e todos saberão quem manda em nossa terra-mãe.

    – Nós somos da Médicos sem Fronteiras, – Quagebuur continuou quando ela percebeu que eu não ia responder à sua pergunta, – neste hospital, agressores e vítimas são tratados como iguais. Sunita, Xiita, Alauíta, Cristão, apoiador do regime de Assad ou rebelde são noções que ficam lá do lado de fora – ela apontou à janela, às ruas –, não aqui dentro.

    Minha boca se manteve fechada. Ouvira que algumas fotos que nós tiramos da gente com nossos smartphones tinham chegado à imprensa ocidental. Antes de ter sido trazido aqui, eu raspei a barba; uma coisa desumana, mas bem avisada nestas circunstâncias.

    Esperei que seria o suficiente, mas não pude esconder meu corpo de levantador de peso.

    Continuei tentando intimidá-la com o olhar, como fizera muitas vezes com meu irmão de sangue, Massab.

    Seus olhos eram como de cão: atentos e brilhantes. Ela não evitou o meu olhar fixo, – Se você prefere ficar em silêncio, por mim tudo bem, mas você deve saber que seu desejo de não viver mais, o qual você expressou tão claramente ontem quando a nossa equipe veio tratar de suas feridas nas pernas, é um sintoma de depressão profunda. Seu corpo, que enchia os outros de pavor, está danificado sem chances de reparo e você não consegue tolerar isso.

    Nem sequer reagi.

    Ela suspirou, sua boca era uma curva de desdém: – Pense nisso, olhe-se no espelho e seja honesto consigo mesmo.

    Ela pegou uma caneta, rabiscou algumas anotações, pôs-se de pé. Ao invés de deixar o quarto, ela veio até mim e se colocou ao lado do meu ombro direito. Ela se curvou e sussurrou em meu ouvido: –Se você não gostar do que vê no espelho, vai fazer o quê?

    Olhei por sobre meu ombro e vi seus olhos apurando o toco que uma vez fora meu braço direito; seis semanas atrás haviam sido sessenta centímetros de músculo.

    ***

    Oito minutos?

    Olho-me enquanto espero, ao espelho, ao que sobrou de mim, assim como a infiel da Quagebuur me pediu.

    Ela é uma vaca estúpida. Ela falou como se me olhar no espelho fosse uma punição, pior, uma humilhação.

    E do que ela sabe?

    Antes de perder o braço e parte das pernas, eu gostava de me olhar em espelhos e ver a força monstruosa em meus peitorais, meus ombros, meu tronco, minhas pernas, meus braços.

    Espelhos me definiam.

    Eu também gostava de enfiar a cara das pessoas em espelhos, espalhando sangue, vidro e tecido.

    ***

    Lembro-me de me ver no espelho da nossa academia, flexionando meus bíceps, o direito tatuado com o rosto do sheikh Bashar al-Assad, e meu amigo Massab comentando: ‘Rani, olha esses bíceps. Você deve estar mais forte que o Hulk agora. Você está virando A Abominção.

    A noite anterior, em seu apartamento, Massab colocara um DVD de seu filme americano favorito, O Incrível Hulk. Bebemos o licor que o cunhado de Massab contrabandeara da Jordânia enquanto assistíamos. O apartamento de Massab era um lugar seguro para se beber, dada a reputação dele na vizinhança como um fanático por armas. Entrar em seu apartamento sem ser convidado era uma sentença de morte e todo mundo sabia disso, até o nosso mudir, Shaheed Batala, o chefe do nosso clã Alauíta. Chamávamo-lo Trilhador da Noite pelas costas por causa de seu apetite por virgens. Mas mesmo se Massab fosse um homem de paz, Shaheed não interferiria com a bebida. Ele estava convencido de que beber não era nada além de um pecado menor aos olhos de Allah, o Todo-Poderoso, e com certeza perdoável para soldados como nós, que tinham de lutar contra os inimigos do país todos os dias.

    Eu havia injetado um coquetel de esteroides poucas horas antes e o álcool me tornou indiferente e entorpecido, mas eu me sentei direito quando A Abominação apareceu na tela. Quando o filme acabou, eu pedi pro Massab passá-lo de novo.

    E de novo.

    A Abominação: um monstro de músculo. Uma criatura de destruição.

    Inspirando medo e admiração.

    Homicida e implacável. Uma presença imponente, dura que nem pedra, mais forte até do que o Hulk, que se caga de medo quando eles lutam. Mas O Incrível Hulk é um filme americano; o miserável Hulk vence no fim porque os infiéis ocidentais preferem o lixo emocional e os turbilhões internos do que força bruta e uma determinação afiada. O Hulk só ganha na batalha contra A Abominação porque ele é esperto e disfarçado, que são marcas de um covarde. A Abominação é o mais forte dos dois; ele teria ganhado numa luta justa. Ele perdeu porque não fez o que se precisa – lutar com tudo o que se pode encontrar.

    Nós lutamos pela vitória contra os nossos inimigos com tudo o que podíamos encontrar: armas, espadas, porretes e nossas próprias mãos.

    Em nossa região de Al-Nasiriyah, o povo sussurrava por nossas costas que éramos uns brutamontes, gangues de bandidos com cérebros de crianças de sete anos.

    Talvez eles estivessem certos sobre alguns de nós. Mas não sobre mim.

    Eu sabia por que eu treinava como um lunático. Tínhamos que ser colossais e deixá-los ver nossos músculos inchados a fim de incutir terror de imediato nas pessoas na rua. Nós Alauítas somos a raça superior natural de todos os muçulmanos. Shaheed Batala formulou-o assim: – Um Alauíta vale sete Xiitas e sete Sunitas.

    Então não é só nosso dever, mas também nosso direito defender o poder do nosso khaal Bashar al-Assad com tudo o que temos.

    É simples assim.

    Embora não seja fácil; ser poderoso e superior é também um fardo.

    Você tem sempre que ficar de olho. Você tem sempre que ser o melhor.

    Aquela noite, eu levei o DVD do Incrível Hulk para casa comigo.

    No caminho eu me imaginei como A Abominação e uma rajada repentina de desejo carnal e uma ânsia por carnificina passou por mim, fez as ruas reverberarem e meus dentes rangerem.

    Amanhã, pensei eu, limparemos a cidade de Al-Houla.

    ***

    – Seria legal se eu tivesse a espinha espetada da Abominação – eu brinquei quando estávamos na Estrada Tripoli a caminho de Al-Houla, lembrando-me da primeira vez que vira O Incrível Hulk, me espantando com deleite quando o super monstro fez sua aparição. Sabendo o que estávamos prestes a fazer em Al-Houla, quais famílias seriam alvo do ataque, me fez sentir como se A Abominação se esgueirasse dentro de mim, esperando para me transformar em sua própria imagem.

    Massab sentava-se ao lado do motorista em nossa SUV. Ele sorriu e levantou seu smartphone para tirar uma foto minha. Tinha se tornado em um dos seus passatempos prediletos dos últimos meses, desde que eu ganhara por volta de dois quilos de músculos a cada três semanas, mais ou menos.

    – Quando acabarmos em Al-Houla, com certeza você vai sentir os primeiros espinhos crescendo –ele falou baixo. Nossos olhos se encontraram no retrovisor central.

    – Você pode não ser um super-herói como A Abominação, mas você tem a aparência de um urso enorme – eu disse.

    Ele ficou em silêncio por alguns minutos.

    – Um urso não é forte o suficiente pra te derrubar – ele respondeu finalmente, flexionando o braço direito e encarando-o. – Mas logo mais eu vou ficar tão grande que você vai ter que admitir que eu sou o mais forte.

    Eu sabia o que ele queria dizer; nos últimos dias ele estava tomando doses gigantescas de esteroides em uma tentativa determinada de ser o mais forte de todos nós. Já tinha um rumor rolando que isso tinha lhe custado a virilidade, mas ninguém ousaria mencioná-lo em sua presença. Outros sussurravam que seu fígado

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