Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

O enfoque analítico na filosofia do direito:: de Bentham a Kelsen
O enfoque analítico na filosofia do direito:: de Bentham a Kelsen
O enfoque analítico na filosofia do direito:: de Bentham a Kelsen
E-book828 páginas10 horas

O enfoque analítico na filosofia do direito:: de Bentham a Kelsen

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O autor, com seu método analítico, refina o discurso realista e o torna mais aberto a críticas, ao mesmo tempo em que o qualifica com firme fundamentação. Discute-se, com erudição e recursos da lógica formal, a experiência e produção de ilustres nomes da filosofia analítica do Direito como Austin, Pufendorf, Savigny e Jhering. Desta forma, além da análise crítica de imenso valor, o autor também escreve uma breve história da cultura jurídica ocidental, entre a segunda metade do século XVII e a segunda metade do século XX. A tradução do livro foi realizada pelos eminentes Professores Heleno Taveira Torres e Henrique Mello.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de nov. de 2020
ISBN9786588470183
O enfoque analítico na filosofia do direito:: de Bentham a Kelsen

Relacionado a O enfoque analítico na filosofia do direito:

Ebooks relacionados

Direito para você

Visualizar mais

Avaliações de O enfoque analítico na filosofia do direito:

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    O enfoque analítico na filosofia do direito: - Pierluigi Chiassoni

    Capítulo I

    ALVORECERES DA UTOPIA ANALÍTICA: Jeremy Bentham

    Uma doutrina do direito puramente empírica é (como a cabeça oca na fábula de Fedro) uma cabeça que pode ser bela, mas que, lamentavelmente, não tem cérebro.

    Immanuel Kant

    A jurisprudência expositiva, a arte de encontrar as ideias claras para reconectá-las às palavras daquele cujas ideias não eram claras.

    Jeremy Bentham

    Sumário: 1. Advertência preliminar. 2. Dois modelos de filosofia do direito positivo. 3. Hobbes e o estudo das leis civis em geral. 4. Bentham e a filosofia do direito: considerações preliminares. 5. O mapa benthamiano do saber jurídico. 5.1 Jurisprudência expositiva, jurisprudencia crítica. 5.2 Jurisprudência autoritativa, jurisprudencia não-autoritativa. 5.3 Jurisprudência local, jurisprudencia universal. 5.4 Um mapa inovador. 6. Dois exercícios de desmistificação. 6.1 Primeiro exercício: o mito da Common Law. 6.2 Segundo exercício: a natureza das obrigações jurídicas. 7. O método analítico benthamiano: instruções para aspirantes a desmistificadores. 7.1 Como mistificar o direito. 7.2 Como desmistificar o direito. 8. Variedade de imperativos. 9. Codificação do direito, ciência da legislação, teoria das normas jurídicas. 10. O conceito benthamiano de norma jurídica: considerações introdutórias. 11. Quatro teses fundamentais. 11.1 Uma proposta terminológica. 11.2 O ineludível caráter teórico da noção de norma jurídica. 11.3 Textos legislativos, normas, ideias de normas. 11.3.1 Bentham e a concepção expressiva das normas. 11.4 Preeminência teórica do conceito de norma jurídica. 12. Sujeitos, objetos, estrutura, destinatários, generalidade das normas jurídicas. 12.1 Destinatários (partes interessadas). 12.2 Normas jurídicas in populum, normas jurídicas in principem. 12.3 Normas gerais, normas particulares. 13. A fonte das normas jurídicas. 13.1 A noção de soberano. 13.2 Normas concebidas, normas adotadas (normas soberanas, normas subordinadas). 14. Normas imperativas, normas não-imperativas. 15. A lógica da vontade: aspectos da lógica deôntica benthamiana. 16. Dinâmica das normas: normas originárias, normas derivadas. 16.1 A lei universal de liberdade. 16.2 Aspectos da nomodinâmica benthamiana. 17. Uma teoria das normas permissivas. 17.1 Relevância normativa das normas permissivas. 17.2 Relações entre normas permissivas e normas imperativas. 17.3 As normas permissivas podem ser reduzidas a normas imperativas. 17.4 Caráter auxiliar das normas permissivas. 17.5 Caráter parasitário das normas permissivas. 17.6 Relevância teórica das normas permissivas. 18. Normas principais, subsidiárias, remediadoras, processuais. 19. Normas consuetudinárias, de direito tradicional, de direito escrito. 20. Normas completas, normas incompletas. 21. Notas finais sobre o imperativismo benthamiano. 21.1. Elementos constitutivos do direito. 21.2 Destinatários das normas jurídicas. 21.3 Estrutura das normas jurídicas. 21.4 Relações entre normas jurídicas: o direito como sistema.

    1. ADVERTÊNCIA PRELIMINAR

    A filosofia do direito positivo é, na cultura jurídica ocidental, o que fizeram ou fazem os estudiosos, na maioria das vezes os acadêmicos, os quais, para designar seu trabalho ou seus produtos literários, usaram ou usam tal denominação, ou denominações consideradas sinônimas, na língua portuguesa ou em outras línguas, como jurisprudence, legal philosophy, legal theory, Rechtstheorie, teoria do direito, teoría del diritto, théorie du droit, allgemeine Rechtstheorie, allgemeine Rechtslehre, general theory of law, teoria geral do direito, teoria generale del diritto teoria del derecho, etc.

    Para quem não acredita na existência de perfis disciplinares inscritos na natureza das coisas, um íncipit como este constitui um ponto de partida obrigatório. A qualquer um esse poderá parecer um péssimo início. Pelo contrário, a mim me parece um convite saudável para observar um fenômeno cultural secular e complexo, e para explicá-lo, de modo desapaixonado, sem nos deixar condicionar demais pelos próprios preconceitos.

    2. DOIS MODELOS DE FILOSOFIA DO DIREITO POSITIVO

    A filosofia do direito positivo não afeta somente o século iniciado há quase dois lustros, nem aquele precedente. Enquanto setor de investigações e de produção literária estatutariamente distinto de outros setores, no âmbito da filosofia do direito em sentido lato e das chamadas ciências jurídicas, suas origens podem de fato remontar a dois modelos disciplinares oitocentistas.²

    O primeiro modelo é constituído pela "general jurisprudence" (jurisprudência geral), frequentemente também denominada "analytical jurisprudence" (jurisprudência analítica), e tem origem na cultura jurídica inglesa.³

    O segundo modelo é constituído pela "allgemeine Rechtslehre" (teoria geral do direito, doutrina geral do direito), e tem origem na cultura jurídica alemã.

    Entre o modelo inglês e o modelo alemão de filosofia do direito, considerados em sua perspectiva diacrônica, registram-se singulares intersecções.

    Em primeiro lugar, o modelo inglês, na configuração oferecida por seu suposto fundador, John Austin, combina a ideologia reformista favorável à codificação do direito, a epistemologia empirista e o método análitico de Jeremy Bentham com objetos e finalidades (definidoras, classificadoras e sistemáticas) usuais da parte geral da pandectista tedesca – a dogmática romanista que Austin havia estudado on the spot (a expressão é de sua mulher, Sarah Taylor Austin), em seus estudos em Heidelberg e em Bonn nos anos 1827-1828, e pela qual havia maturado uma profunda admiração.

    Em segundo lugar, na segunda metade do século XIX, a mesma parte geral da pandectista constitui o ponto de partida para a elaboração do modelo alemão de filosofia do direito positivo, dentro da disciplina acadêmica e do gênero literário da denominada enciclopédia jurídica.

    Em terceiro lugar, na configuração defendida por Hans Kelsen (e por numerosos outros sobre suas pegadas) no curso do século XX, o modelo alemão – de uma filosofia do direito como abstrata e geral reflexão sobre o direito – vem a assumir as conotações epistemológicas⁶ e metodológicas⁷ do modelo inglês: ponto em que o mesmo Kelsen, em um ensaio de 1941, apresenta sua teoria do direito – a doutrina pura do direito – como a herdeira genuína e continuadora da tradição austiniana.⁸

    No segundo pós-guerra, a tradição austiniana trouxe novo vigor, na Inglaterra e sobre o continente, pela união com a filosofia analítica, nas posturas do positivismo lógico e da filosofia da linguagem ordinária oxo-cantabrigense (a chamada Oxford-Cambridge Philosophy).⁹ De modo que, para um superficial reconhecimento historiográfico, o modelo de filosofia do direito positivo que prevalece na cultura jurídica da segunda metade do século XX resulta do modelo inglês (austiniano), nas revisões kelseniana e filosófico-analíticas.

    Um dado aproxima o modelo originário austiniano daqueles do século XX de Kelsen e dos filósofos neo-analíticos do direito: trata -se da adesão aos valores da racionalidade, do empirismo, do rigor metodológico, da precisão, da clareza conceitual, da neutralidade valorativa (Wertfreiheit) e, por último, da honestidade intelectual; de modo que tais modelos podem ser considerados reflexo de um mesmo afã: o fruto de uma mesma utopia da razão no direito. Não se trata, veja bem, da Razão divinizada que habita num paraíso do qual concede títulos honoríficos a seus adoradores, nem da razão (substancial) capaz de descobrir mundos mais além da experiência; pelo contrário, trata-se de uma razão prudente e terrena, amante das distinções e do detalhe, que antepõe a decomposição meticulosa dos problemas e a articulação das soluções às sínteses, especialmente grandiosas, e é, em todos os aspectos, uma razão analítica.

    Por força disso, por razões de afinidade intelectual, senão de estrita historiografia cultural, a filosofia do direito positivo – no modelo inglês do século XIX e no modelo kelseniano-(neo)analítico do século XX – é um produto do iluminismo. E, em verdade, por trás dos perfis dos escolarcas – Austin, Kelsen, Ross, Hart e no que concerne à cultura jurídica italiana, Bobbio, Scarpelli e Tarello – se pode observar a sombra influente de um pensador que, na luta contra as trevas intelectuais, foi um paladino incansável: Jeremy Bentham.¹⁰ Ao percorrer – ainda que de forma não exaustiva – a história da filosofia do direito positivo de enfoque analítico é necessário partir deste genial pensador – não sem antes fazer uma rápida digressão sobre o pensamento jurídico de Thomas Hobbes.

    3. HOBBES E O ESTUDO DAS LEIS CIVIS EM GERAL

    Numa passagem do Leviatã (1651) – que John Austin, pouco menos de dois séculos depois, citaria como precedente notável¹¹ – Thomas Hobbes (1588 – 1679) distingue dois modos radicalmente diversos de conhecer o direito positivo: por um lado, o modo especializado, ou particular, próprio dos juristas; por outro, o modo não especializado, ou geral, próprio de qualquer indivíduo, com o que contesta a pretensão dos juristas (the students of the common laws of England) de serem os únicos depositários da (verdadeira) sabedoria jurídica.

    (O) conhecimento de leis particulares – escreve Hobbes – pertence àqueles que professam o estudo das leis de seus respectivos países; mas, o conhecimento das leis civis (civil laws) em geral (pertence, ndr) a cada homem (...) meu propósito consiste em mostrar, não qual é o direito neste ou naquele lugar, mas o que é o direito.¹²

    Na execução de tal propósito, no transcorrer de poucas, densas, páginas, Hobbes oferece ao leitor o protótipo de uma teoria geral do direito positivo. Entre seus elementos figuram:

    1. Uma concepção positivista, normativista e estatista do direito, entendido como o conjunto das "regras que o estado (commonwealth) (...) – com a palavra, o escrito ou outro signo de sua vontade – tenha ordenado usar para distinguir o lícito (right) e o ilícito (wrong)";¹³

    2. Uma concepção imperativista das normas jurídicas (civil laws), as quais estão caracterizadas, em particular, como os comandos que o estado (persona civitatis) dirige a quem esteja previamente obrigado a obedecê-los;¹⁴

    3. A idéia segundo a qual cada estado produza as regras jurídicas por meio de um representante, que Hobbes identifica com o soberano (o monarca ou a assembléia soberana, nos estados aristocráticos ou democráticos), que é o exclusivo titular da função legislativa;

    4. Uma concepção voluntarista das fontes do direito, que Hobbes considera aplicável não só ao direito escrito (legislação), mas também ao direito não escrito jurisprudencial e consuetudinário;¹⁵

    5. Uma concepção desencantada – realista avant la lettre – da interpretação jurídica, segundo a qual:

    a) todas as leis, para serem feitas valer (to make them obligatory), necessitam ser interpretadas;

    b) a interpretação se presta a erros e abusos, facilitados pela formulação, ora bastante concisa, ora prolixa, das leis, com a consequência que pela habilidade do intérprete é possível atribuir à lei um sentido contrário àquele do soberano, de modo que, assim agindo, o intérprete torna-se legislador;¹⁶

    c) para remediar semelhantes inconvenientes é necessário adotar algumas medidas normativas:

    – em primeiro lugar, se deve atribuir valor de interpretação autêntica – isto é, de interpretação que estabelece de modo vinculante qual é a (verdadeira) intenção do legislador ou o (verdadeiro) significado por este pretendido – somente às interpretações formuladas por sujeitos autorizados pelo soberano, e, de modo particular, às interpretações judiciais;

    – em segundo lugar, a relevância jurídica das interpretações autênticas formuladas pelos juízes ao decidirem uma controvérsia deve ser circunscrita à decisão singular;¹⁷

    em terceiro e último lugar, ao interpretar as leis os juízes devem presumir que a intenção do legislador seja a equidade: devem, portanto, superar eventuais dúvidas hermenêuticas recorrendo ao direito natural e, se a dúvida permanece, devem suspender o juízo até que sejam investidos de um poder mais amplo de decisão.¹⁸

    4. BENTHAM E A FILOSOFIA DO DIREITO: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

    Historicamente, a influência de Bentham (1748-1832) sobre o nascimento da filosofia do direito positivo, como disciplina caracterizada seja por um certo objeto – o direito positivo em geral, no sentido que veremos melhor dentro de pouco tempo – seja por um certo método de investigação – o método analítico -, foi uma influência indireta, que se exerceu através do trabalho de seus seguidores e, em particular, do já mencionado John Austin.

    Os escritos de Bentham sobre o tema constituem, todavia, um ponto de partida imprescindível para qualquer um que queira falar, ainda que superficialmente, das origens da filosofia do direito positivo na cultura inglesa e na cultura ocidental em geral. Trata-se, como veremos, de origens nada casuais, mas ligadas a uma consciente e precisa operação de política cultural, entendida por sua vez como prodrômica a respeito de operações de política do direito de postura radicalmente reformista.

    O interesse de Bentham pelo direito – antes de tudo, pelo modo de estudá-lo e de explicá-lo – pode remontar aos anos nos quais o jovem estudante da Universidade de Oxford teve oportunidade de assistir às lições sobre o direito inglês dadas por William Blackstone (1723 – 1780) e de ler a celebríssima obra deste: os Commentaries on the Laws of England (I ed., 1765-1769).¹⁹

    Tais experiências fizeram amadurecer em Bentham algumas ideias que o acompanhavam por toda a sua longa vida de infatigável legislador do mundo.

    Em primeiro lugar, a ideia de que o direito inglês fosse de todo inadequado para servir aos interesses do povo inglês, assegurando a maior felicidade para o maior número, que é a medida do justo e do injusto;²⁰ sendo, pelo contrário, um complexo mecanismo bastante eficiente em tutelar os interesses – nocivos para a coletividade – de particulares grupos de indivíduos, entre os quais, sobretudo, os operadores do direito (advogados e juízes) e seus clientes endinheirados.²¹

    Em segundo lugar, a ideia de que o partidarismo e o prejudicial caráter social do direito inglês estivessem ocultados sob um espesso cobertor de ritos e falsas crenças.

    Em terceiro lugar, a ideia de que o estudo do direito inglês, cujo exemplo mais sofisticado e ilustre estava representado pelos volumes de Blackstone, fosse de todo inadequado para trazer à luz a verdadeira realidade, e contribuísse, pelo contrário, para dissimulá-la:

    Se sempre há um escopo pelo qual um livro de Instituições resulta preferível a outro, este consiste – escreve Bentham²² – no remover aquele véu de mistério com o qual ficção e formalidade cobriram amplamente o direito. Nosso autor (i.e., Blackstone, ndr) acredita, todavia, fazer sua parte adornado-o e floreando-o. O direito se nos apresenta sob uma máscara. Essa máscara, nosso autor, ao invés de removê-la, a cobriu com uma mão de tinta.

    Em quarto lugar, a ideia de que o estudo doutrinário do direito positivo segundo o método de Blackstone fosse, pois, um obstáculo àquela exata compreensão dos fatos que, na opinião de Bentham, deveria preceder cada consciente e racional reforma do direito para servir, finalmente, ao interesse geral.

    Em quinto lugar, a ideia de que fosse necessário desmistificar o direito inglês e que para tal fim fossem necessários instrumentos idôneos para assegurar uma verídica exposição, conduzida não mais como estavam acostumados a fazer os juristas, segundo uma terminologia e uma sistemática técnicas, ou seja, obscuras e arbitrárias, mas segundo um método natural, que levasse em conta dois dados, para Bentham, indiscutíveis: que as normas jurídicas têm por objeto ações humanas ou formas de conduta comissivas ou omissivas; que as ações humanas tendem ou à utilidade geral ou ao seu contrário, sendo, em tal caso, danosas.²³

    Em sexto e último lugar, a ideia de que o mapa do saber jurídico deveria ser repensado, introduzindo disciplinas estatutariamente dedicadas à exposição desencantada e à reforma otimizada do direito positivo: do direito inglês e de cada outro direito igualmente defeituoso.

    Nos três parágrafos seguintes, se trará à luz alguns aspectos centrais da operação de política cultural empreendida por Bentham: falando, sobretudo, do mapa benthamiano do saber jurídico (§ 5º); analisando, posteriormente, dois exercícios benthamianos de desmistificação jurídica (§ 6º); redigindo, finalmente, um inventário, sem pretensão de completude, dos principais instrumentos do método (analítico) benthamiano (§ 7º).

    5. O MAPA BENTHAMIANO DO SABER JURÍDICO

    No capítulo XVII de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation (obra finalizada em 1780, mas publicada somente em 1789), Bentham desenha o mapa – como veremos, muito inovador – do saber jurídico; isso ocorre como resultado de um exame das diversas coisas que se pode fazer fazendo jurisprudência (jurisprudence).

    Três das múltiplas distinções benthamianas se revelam particularmente relevantes, com o fim de encontrar as origens da filosofia (analítica) do direito positivo:

    1. A distinção entre jurisprudência expositiva e jurisprudência crítica (censória);

    2. A distinção, no âmbito da jurisprudência expositiva, entre jurisprudência autoritativa e jurisprudência não-autoritativa;

    3. A distinção, em fim, no âmbito da jurisprudência expositiva não-autoritativa, entre jurisprudência local e jurisprudência universal.

    5.1 Jurisprudência Expositiva, Jurisprudência Crítica

    A primeira distinção – a distinção entre Expository Jurisprudence (jurisprudência expositiva) e Censorial Jurisprudence (jurisprudência crítica, jurisprudência censória), ou The Art of Legislation(a arte de legislar) – vem traçada por Bentham nos seguintes termos:

    A jurisprudência (jurisprudence) é uma entidade fictícia e, portanto, não é possível encontrar um significado qualquer para a palavra ‘jurisprudência’, a não ser aproximando-a a qualquer outra palavra que designe uma entidade real. Para compreender o significado de ‘jurisprudência’ devemos conhecer, por exemplo, qual o significado da expressão ‘um livro de jurisprudência’. Um livro de jurisprudência pode ter somente um ou outro dos seguintes dois objetivos (objects): 1. determinar (to ascertain) o que é o direito; 2. determinar o que ele deve ser. No primeiro caso, pode-se denominá-lo um livro de jurisprudência expositiva; no segundo caso pode-se denominá-lo um livro de jurisprudência crítica, ou em outras palavras, um livro sobre ‘a arte de legislar’: esta última, em particular, ‘ensina um modo pela qual uma multidão de homens, que compõe uma comunidade, pode ser ordenada para perseguir o curso de ações que seja, em conjunto, o mais idôneo para conduzir à felicidade da comunidade inteira’.²⁴

    Quanto ao conteúdo, a passagem benthamiana enuncia a distinção – que Bentham considera de capital importância, mas era habitualmente ignorada pelos cultores do direito, natural ou positivo, de seu tempo – entre o ser e o dever ser do direito. A essa corresponde a distinção, de que falarei em breve, entre a função do Expositor (Expositor), o qual se ocupa do direito que é ou que foi, de uma parte, e a função do Censor (Censor), o qual se ocupa, ao contrário, do direito como deve ser, ou deveria ser, para estar conforme ao critério do justo e do injusto, ou do moralmente lícito ou ilícito, de outra.²⁵

    A passagem citada é, todavia, significativa também quanto ao perfil de método analítico que caracteriza a teoria do direito de Bentham (sobre a qual, como já antecipado, falarei brevemente no § 7). Inicia-se, de fato, com uma afirmação – "A jurisprudencia (jurisprudence) é uma entidade fictícia – que se refere à denominada teoria benthamiana das ficções – como veremos, um particular emaranhado de teses ontológicas, semânticas e epistemológicas, que contém ademais uma exemplificação evidente do método da paráfrase".

    5.2 Jurisprudência autoritativa, Jurisprudência não-autoritativa

    A segunda distinção relevante, para fins de reconstruir o mapa benthamiano do saber jurídico, é, como já indicado, a distinção no âmbito do gênero expositivo, entre a jurisprudência autoritativa (authoritative) e a jurisprudência não-autoritativa (unauthoritative).

    Trata-se, em particular, da diferença entre a redação de um código, ou de outro documento normativo, por uma autoridade investida do poder de produzir direito, por um lado, e, por exemplo, a redação de um manual jurídico, dirigido a ilustrar o direito vigente em um ou mais países, por outro:

    Um livro de jurisprudência expositiva – escreve Bentham – ou é autoritativo ou é não-autoritativo. É denominado autoritativo quando é escrito por quem, ao representar o estado de direito de um certo modo, faz com que o direito seja assim (‘causeth it to be so’).²⁶

    Também a precedente passagem citada ilustra um aspecto do método analítico benthamiano.

    Aqui Bentham traça a distinção entre as duas jurisprudências com base, bem vistas as coisas, na diversa (diríamos) função lingüística dos discursos que representam o resultado delas.

    Nos termos da teoria dos atos lingüísticos (dos atos que se concluem quando se usa uma linguagem natural), tratar-se-ia, em particular, de uma função constitutiva (produtiva, criativa) no caso do discurso do legislador; tratar-se-ia, ao contrário, de uma função puramente de constatação (enunciativa, descritiva, representativa) no caso do discurso de qualquer outra pessoa não investida de poderes nomotéticos.²⁷

    5.3 Jurisprudência local, Jurisprudência universal

    A terceira distinção relevante ao construir um mapa benthamiano do saber jurídico é, finalmente, como assinalado antes, a distinção, no âmbito da jurisprudência expositiva não-autoritativa, entre local jurisprudence (jurisprudência local) e universal jurisprudence (jurisprudência universal). Entre o estudo e a exposição do conteúdo normativo específico das normas jurídicas (leis,laws), vigentes em uma determinada nação, por uma parte, e o estudo – que Bentham configura necessariamente terminológico – dos conceitos, ou noções, comuns a qualquer conjunto de leis positivas:

    o que vem dito a propósito das leis (...) pode referir-se ou às leis desta ou daquela nação em particular, ou às leis de todas as nações quaisquer que sejam; no primeiro caso, o livro pode ser considerado de jurisprudência local; no segundo caso trata-se de um livro de jurisprudência universal (...) entre as palavras que são apropriadas ao campo do direito, existem algumas que em todas as linguagens correspondem quase exatamente umas as outras (...). São desse tipo, por exemplo, as palavras que correspondem às palavras poder, direito subjetivo (right), obrigação, liberdade, e muitas outras (entre elas, sobretudo, "law, no sentido genérico de lei ou norma jurídica, ndr") (...). Para ser suscetível de uma aplicação universal, tudo do que um livro do gênero expositivo pode se ocupar consiste no significado de (tais, ndr) palavras: para ser, estritamente falando, universal, isso deve limitar-se à terminologia.²⁸

    As tarefas do Expositor não-autoritativo local, segundo Bentham, consistem, pelo contrário, em percorrer a história do direito (representar o direito na condição na qual estava, nos períodos anteriores de sua existência), e ademais em fornecer um resumo – o que Bentham chama simple demonstration – do direito atualmente existente.

    A descrição de um determinado direito positivo vigente constitui, em particular, o resultado de três operações distintas, que Bentham identifica ao imitar um trabalho dos cientistas naturais, segundo o modelo sistemático-classificatório que revolucionou o mundo da botânica.²⁹

    A primeira operação, que Bentham denomina narração, consiste em expor o direito que se supõe ser explicíto, claro e estabelecido.

    A segunda operação, que Bentham denomina conjetura ou interpretação, consiste em aclarar o direito positivo indagado, onde este resulte obscuro, silente ou instável.

    A terceira operação, que Bentham denomina sistematização ou ordenamento (arrangement), consiste, finalmente, em distribuir os materiais jurídicos investigados em diversas massas homôgeneas, na determinação da ordem na qual o conteúdo normativo de tais massas deve ser exposto, e em atribuir a estas últimas as denominações oportunas – o todo, como dizia antes, não mais sobre a base de uma sistemática qualquer ou de uma terminologia técnica qualquer (isto é, no léxico de Bentham: abstrusa e incompreensível aos profanos), mas levando em conta a natureza das ações e das normas que sobre elas recaem.³⁰

    Esta última operação, cumprida com o auxílio de conceitos universais – porque construídos sobre a base da natureza (presumida) das ações e das normas – aparece claramente como decorrência das indagações da universal jurisprudence, e é funcional à valoração de um direito positivo particular, à luz do princípio de utilidade, por obra do Censor.

    5.4 Um mapa inovador

    Para compreender o alcance inovador do mapa benthamiano do saber jurídico é suficiente uma rápida confrontação: por um lado, com a concepção da "jurisprudence" sustentada, uma geração antes, por Adam Smith (1723-1790), o célebre filósofo moral e economista escocês; por outro, com o mapa do saber jurídico defendido por Immanuel Kant (1724-1804) em um parágrafo introdutório de A Metafísica dos Costumes (1797).

    Bentham vs. Smith

    Em suas Lectures on Jurisprudence, ministradas na Universidade de Glasgow entre 1762 e 1764, Adam Smith adota uma noção de Jurisprudence – ou "juris prudence – que constitui, aparentemente, o produto da reelaboração jusnaturalística da original, genérica, definição romanista de Iurisprudentia", como humanarum et divanurum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia. Segundo Smith, de fato:

    A jurisprudência é a teoria das regras mediante as quais os estados ("civil government") devem ser regidos. Esta busca trazer à luz o fundamento dos diversos sistemas de governo nos diferentes países, e evidenciar até que ponto estes são fundados sobre a razão.³¹

    Igualmente, em algum momento de um ano posterior, Smith escreve:

    (A) jurisprudência é a ciência que indaga os princípios gerais que devem constituir os fundamentos da leis de todas as nações. Grozio parece ter sido o primeiro a buscar dar ao mundo algo parecido com um sistema ordenado (regular system) de jurisprudência natural (...). Os quatros principais objetos do direito são a justiça (justice), a ordem pública (police), os ingressos (revenue) e as forças armadas (arms).³²

    Portanto, o que Smith chama "jurisprudence – ou também juris prudence, ou natural jurisprudence" – corresponde, grosso modo, à censorial jurisprudence de Bentham, e é – ao menos na perspectiva do não-cognitivismo ético – uma disciplina primordialmente normativa, que não tem como objeto as normas do direito positivo em si consideradas, mas indaga, como o próprio Smith cuidou de esclarecer, quais devam ser os princípios inspiradores das leis das nações. Reconhecendo-os, iluministicamente, em preceitos identificáveis sobre a base da razão.³³

    Bentham vs. Kant

    Sustenta Kant que:

    o jurisconsulto (...) pode, é certo, conhecer e declarar o que pertence ao direito ("quid sit juris"), isso é, o que as leis num certo lugar e num certo tempo prescrevem ou prescreveram; mas, se o que essas leis prescrevem é também justo, e o critério universal pelo qual se pode reconhecer em geral o que é justo e o que é injusto (iustum et iniustum), permanece completamente oculto se ele não abandona por um certo tempo aqueles princípios empíricos e (...) não busca as origens daqueles juízos na razão pura como único fundamento de cada legislação positiva possível.³⁴

    A passagem antes citada contém um evidente recurso ao mapa do saber legal, como se vinha delineando na cultura jurídica ocidental por influência das escolas jusnaturalistas do século XVII.³⁵ Aquele mapa se articulava dualisticamente:

    – em uma ciência do direito (iuris prudentia, scientia iuris) radicada na practica legalis, orientada à solução de casos (quid iuris?) e tradicional prerrogativa dos juristas, de uma parte;

    – em uma filosofia do direito, que percorria as mais abstratas regiões do espírito em busca do critério universal do justo e do injusto, resolvendo-se, assim, em uma doutrina da Justiça e era, pelo contrário, prerrogativa dos filósofos, de outra.

    Por fim, ao mapa dualista tradicional-kantiano, Bentham contrapõe um diverso mapa do saber jurídico, mais articulado, no qual, ao lado da ciência do direito (homólogo a jurisprudência expositiva não-autoritativa local) e da filosofia do direito (homólogo da jurisprudência crítica ou arte da legislação), vem introduzida uma nova disciplina: a jurisprudência expositiva não-autoritativa universal: ou então, com a denominação corrente, a filosofia do direito positivo ou teoria do direito.

    A introdução da filosofia do direito positivo (teoria do direito) não se reduz, de outro modo, a uma simples redefinição inovadora dos confins das disciplinas jurídicas. Mas é acompanhada de uma reflexão sobre o método do conhecimento jurídico: em particular, sobre a teoria do direito mesma, que é, como dito, e se verá melhor nos parágrafos seguintes, um método analítico.

    6. DOIS EXERCÍCIOS DE DESMISTIFICAÇÃO

    Bentham considerava, como já mencionado anteriormente, que o direito inglês se apresentava a seus destinatários sob um véu de mistério, habilmente tecido pelos juízes e pelos juristas, no decorrer dos séculos, para ocultar a verdadeira natureza e assim poder perseverar impunemente na promoção e na tutela de seus interesses privados, contrários à utilidade geral.³⁶

    Ilustrarei em seguida dois exercícios benthamianos de desmistificação jurídica: o primeiro exercício versa sobre o mito do common law, cujo núcleo é representado pela ideia do caráter puramente declaratório, ou probatório, da jurisprudência do common law; o segundo exercício, sobre a noção de obrigação jurídica.

    6.1 Primeiro exercício: o mito do Common Law

    Bentham observa como na cultura jurídica de seu tempo o common law (também a common law, como se evidencia por expressões como Our Lady the Common Law) – ou seja, a parte considerada mais importante e quantitativamente mais relevante do direito positivo inglês – era considerado um conjunto de máximas: (1) de origem consuetudinária ("customs and maxim"), estabelecidas desde tempos imemoráveis; (2) provenientes, com relação a seu conteúdo, das próprias fontes de Justiça ("working itself pure from the fountains of Justice", segundo as palavras de Lord Mansfield); (3) sustentadas pelo consenso do povo; e (4) completamente preconstituídas à sua aplicação judicial; tratar-se-ia, em suma, de um direito, nas palavras de Bentham:

    que não tem nenhuma pessoa conhecida como seu autor, nenhum conjunto conhecido de palavras como sua substância, e forma (...) o corpo principal do edifício do direito: como aquele éter imaginário que, na ausência de matéria sensível, preenche a medida do universo.³⁷

    Ou ainda, nas palavras de Austin:

    qualquer coisa de milagrosa não criada por ninguém existente (...) desde o início dos tempos, e simplesmente declarado, segundo as circunstâncias, pelos juízes (ao decidirem as singulares controvérsias, ndr).³⁸

    Este modo de pensar permitia conseguir três resultados práticos importantes, estreitamente vinculados entre si.

    Um primeiro resultado consistia em reconhecer a ideia da (diríamos nós) autonomia do common law da política, da arbitrariedade, dos interesses partidários (sinister interests): o direito tinha, de fato, um domínio próprio e um princípio vital último (a Justiça), acima da mescla.

    Um segundo resultado consistia em reconhecer a ideia da virtual imutabilidade do common law: em sugerir, particularmente, que a reforma legislativa do common law, em consideração a suas origens e a seu conteúdo, não fosse possível, ou o fosse somente por aspectos marginais; e fosse, em cada caso, uma operação a ser conduzida com a máxima cautela.

    Um terceiro resultado consistia, em fim, no reconhecer a ausência de qualquer responsabilidade política ou moral na cabeça dos juízes, apresentados como meros declaradores e pontuais aplicadores de um direito preconstituído e completo em si mesmo.

    Portanto, Bentham submete a crítica radical a concepção consuetudinária do common law, e a respectiva teoria declaratória de sua aplicação judicial.

    À primeira ideia – a ideia da vetustez imemorável – Bentham opõe a constatação de que muitíssimos princípios do common law – entre os quais, por exemplo, aqueles de matéria hereditária e de transferência de propriedade inter vivos – longe de se remontarem aos tempos do rei Alfred, ou de serem de uma antiguidade que supera os confins da história e da memória, eram, ao contrário, o produto, bastante mais recente, de atos legislativos bem determinados e de bem determinadas decisões judiciais.³⁹

    À segunda ideia – a ideia do caráter declaratório, ou puramente probatório, da jurisprudência nas matérias disciplinadas pelo common law – Bentham opõe a tese da artificialidade e da arbitrariedade do direito positivo: de todo o direito positivo e, portanto, também daquela sua parte constituída, na Inglaterra, pelo common law. A tese da artificialidade do direito sustenta que, vistas as coisas adequadamente, não existe norma de direito positivo qualquer que não seja o produto de atos humanos;⁴⁰ essa tese, de outra parte, não contrasta necessariamente com a ideia da natureza consuetudinária do common law. Ajuda, porém, nesse ponto, a segunda tese. A tese da arbitrariedade do direito sustenta que todo o direito positivo é sempre, bem analisado, o produto de atos de vontade discretos, direta ou indiretamente imputáveis ao soberano de um estado: ou seja a pessoa ou o conjunto de pessoas a cuja vontade se supõe que uma comunidade política inteira se disponha a obedecer: e isso com preferência à vontade de cada outra pessoa.⁴¹

    À luz disso, apesar de parecer o contrário, teria caráter arbitrário também o common law, para o qual Bentham cunhou a denominação, vinda do uso corrente, de direito judicial ou direito-feito-pelos-juízes ("judge-made law").

    As normas (laws) do common law, de fato, não seriam:

    outra coisa que outros tantos atos e ordens autocráticos (dos juízes, ndr), cujos mandamentos, em virtude da interpretação mais ampla que os cidadãos estão dispostos a lhes atribuir, têm efeitos assimiláveis àqueles das leis em geral.⁴²

    Esta conclusão, que Bentham considerava absolutamente apoiada pela experiência, vale, seja no caso em que o common law esteja verdadeiramente fundado sobre costumes pré-existentes, seja, com maior razão, ainda quando se considere que a ideia da natureza consuetudinária do common law seja (díriamos) uma ideologia (uma falsa representação do mundo em vista de uma utilidade prática), com a qual se pretende ocultar o fato de que tal área do direito inglês é uma criação dos juízes.

    Sobre o primeiro ponto, depois de se haver distinguido a acepção comum de costume daquela jurídica, Bentham considera que não se pode falar propriamente de um costume jurídico, enquanto algo distinto de meras regularidades de comportamentos sociais difundidos (ou, diríamos: de normas sociais juridicamente irrelevantes), senão na presença de atos específicos de legalização, que conectam uma sanção jurídica (punishment) aos comportamentos não-conformes.⁴³

    Sobre o segundo ponto, Bentham desenvolve uma argumentação complexa na qual se pode verificar cinco passagens fundamentais.

    Blackstone sustenta que as decisões judiciais são "a prova principal e mais autorizada que pode ser dada sobre a existência de um costume" fazendo parte do common law.

    Tais decisões, todavia, não comprovam costumes sociais com base, diríamos, na detecção dos comportamentos e das condutas socialmente difundidas (segundo o modelo, diríamos, do juiz-sociólogo); pretendem, pelo contrário, dar voz às normas do common law, extraindo-as diretamente, como os oráculos da Pítia pretendiam reproduzir as palavras de um Apólo invisível (ou, mais prosaicamente, assim como se extrai água de um poço).

    Por força disso, as decisões judiciais fazem exclusiva referência às decisões judiciais precedentes, compiladas e conservadas nos repertórios: de modo que o raciocínio normativo (isto é, o raciocínio dirigido a encontrar a norma aplicável) dos juízes do common law, longe de consistir na definição de parâmetros jurídicos externos ao direito judicial e heterônimos em relação a esse (como seriam os costumes sociais) é, pelo contrário, um processo autorreferencial, no qual os juízes posteriores dialogam, e disputam, com os juízes precedentes.

    Bem vistas as coisas, os juízes que sucedem não estão obrigados de modo absoluto a preservar e expor o direito pré-existente, como o encontram nas decisões judiciais precedentes. Pelo contrário, eles podem desligar-se dele "no ponto onde a decisão precedente seja manifestamente contrária à razão. A razão, todavia, a não ser que se acredite nas fábulas dos jusnaturalistas, não provém de um conjunto de parâmetros normativos objetivos e unívocos, mas é antes o reino do questionável; de modo que os juízes seriam, em última análise, os destinatários de uma regra que, por trás das aparências, soa assim: Siga o precedente, a não ser que ele seja contrário, no modo mais evidente, ao que gosta. Isso, e não outra coisa, prescreveria a denominada Rule of reason" invocada por Blackstone.

    Quando um juiz decide desligar-se de um precedente, porque é manifestamente absurdo ou injusto, ele – sustenta Blackstone – não deve declarar que o precedente era direito mau, mas sim que não era direito de modo nenhum (adequado): que não fazia parte, nem nunca podia ter feito parte, dos costumes estabelecidos do reino, tendo-se tratado, pelo contrário, de uma decisão errônea. E, assim opinando, conclui Bentham:

    nosso Autor (i.e., Blackstone) (...) ensina a um juiz dotado de vontade própria, por meio de quais sofismas ele pode esconder sua presunção.

    6.2 Segundo exercício: a natureza das obrigações jurídicas

    Poder, direito subjetivo, proibição, dever, obrigação, ônus, imunidade, isenção, privilégio, propriedade, garantia, liberdade – todas essas coisas – sustenta Bentham⁴⁴ – com muitas outras que poderiam ser aqui nomeadas – são outras tantas entidades fictícias que, segundo o modo de falar comum, se considera que o direito (…) crie ou elimine. Não há operação realizada pelo direito que não se considere dirigida a criar ou (…) a eliminar esses produtos imaginários.

    Segundo o modo de falar – e de pensar – comum, as obrigações jurídicas seriam, portanto, peculiares e um tanto misteriosas entidades, segundo as circunstâncias criadas ou destruídas pelo direito, assim como um construtor ergue ou demole edifícios.

    Bentham considera, todavia, que o comum modo de falar reflete um erro ontológico fundamental: as obrigações jurídicas não são, em absoluto, entidades reais. São entidades fictícias: entidades que devem sua existência, sua impossível e, não obstante, indispensável existência à linguagem, e somente à linguagem,⁴⁵ de modo que tudo isso sobre o qual se pode indagar e refletir, acerca das obrigações jurídicas, reduz-se, vendo bem, ao nome legal obligation (obrigação jurídica) e ao significado que uma expressão como esta – e outras equivalentes na língua inglesa ou em outras línguas naturais – assume, ou pode assumir, nos discursos jurídicos.

    Com base nessas premissas, Bentham considera que, se se quer esclarecer o significado de obrigação jurídica não se pode seguir a via tradicional representada pelo recurso a uma definição qualquer por gênero e diferença específica (por exemplo: obrigação jurídica é um vínculo espiritual, imposto por uma lei civil). Esta última via, de fato, pode ser utilmente recorrida somente quando se trate de definir o significado de nomes que designam (classes de) entidades reais. Para as expressões que denominam entidades fictícias, ao contrário, é necessário adotar um método expositivo. Bentham chama esse método de exposição mediante paráfrase ou método da paráfrase.⁴⁶

    Das regras do método da paráfrase falarei no tópico seguinte. Agora interessa trazer à luz o modo como Bentham esclarece uma noção – aquela de obrigação jurídica – que suscita ainda hoje perplexidade entre os cultores do direito, e permanece misteriosa para os profanos.⁴⁷ Bentham considera que para comprender a noção de obrigação jurídica seja, antes de tudo, oportuno esclarecer a noção de obrigação em geral e, pois, trazer à luz o que distingue as obrigações jurídicas das obrigações de outra natureza: físicas, morais e religiosas.

    Isso posto, Bentham sustenta que para explicar uma noção genérica de obrigação é necessário perguntar-se qual é o significado de um enunciado como, por exemplo:

    (E) Uma obrigação de fazer ƒ incumbe a um homem

    ou, em termos a nós mais familiares:

    (E’) Um homem tem a obrigação de fazer ƒ.

    Portanto, sustenta Bentham, afirmar E (ou E’), equivale a formular a proposição, empiricamente verdadeira ou falsa, segundo a qual:

    No caso de um homem não fazer ƒ, é provável que ele sofra uma sanção, seja uma dor ou uma perda de prazer.

    Bentham distingue quatro tipos de sanções: as sanções físicas; as sanções políticas ou jurídicas; as sanções morais ou populares; e, por fim, as sanções religiosas.

    A cada tipo de sanção corresponde um diverso tipo de obrigação.⁴⁸ Em particular, um indivíduo tem a obrigação jurídica de fazer ƒ se, quando não fizer ƒ, sofrerá provavelmente uma sanção jurídica, isto é, uma sanção disposta numa norma jurídica e imposta por um juiz. Na perspectiva de Bentham, em particular, o proferir a (diríamos) proposição normativa segundo a qual, em um certo ordenamento estatal,

    Tício tem a obrigação jurídica de não cometer furtos

    equivale a afirmar, simultaneamente, as seguintes coisas:

    1. Que o soberano (daquele certo estado) produziu – e não revogou posteriormente – uma norma principal imperativa simples, segundo a qual nenhum homem deve cometer furto;

    2. Que o soberano produziu – e não revogou – uma norma subsidiária punitiva, segundo a qual, por exemplo, o juiz deve condenar à prestação de serviços socialmente úteis qualquer um que tenha sido julgado culpado por furto;

    3. Que, se um indivíduo qualquer como Tício viola a norma imperativa simples, existe a probabilidade – ou segundo Hart: a relevante probabilidade⁴⁹ – de que ele será efetivamente condenado a prestar serviços socialmente úteis, por ordem de um juiz, em aplicação da norma subsidiária punitiva.⁵⁰

    Na perspectiva de Bentham, saliente-se, as proposições 1-3 fornecem em seu conjunto uma tradução clara da obscura proposição normativa inicial (Tício tem a obrigação jurídica de não cometer furtos): uma tradução que traz evidentemente à luz as condições de verdade das proposições normativas em questão: condições que são constituídas por um conjunto de fatos sociais e, dessa forma, realiza o objetivo desmistificador por ele perseguido.

    7. O MÉTODO ANALÍTICO BENTHAMIANO: INSTRUÇÕES PARA ASPIRANTES A DESMISTIFICADORES

    A renovação do mapa do saber jurídico, centrado sobre os papéis, distintos mas complementares, do Expositor e do Censor, está ligada ao uso de um instrumental – em boa parte forjado pelo próprio Bentham – que é funcional à verídica descrição e à crítica desapaixonada do direito positivo.

    Na tentativa de oferecer um (incompleto) inventário do instrumental benthamiano, parece ser útil partir de um exame sumário dos instrumentos dos quais, segundo a indagação (as compilações sistemáticas) do próprio Bentham, os juristas ingleses haviam servido-se para oferecer uma imagem falsa, distorcida, enganadora (mistificar) do seu direito.

    7.1 Como mistificar o direito

    Os instrumentos utilizados pelos juristas ingleses para este fim seriam, na perspectiva de Bentham, pelo menos cinco.

    Um primeiro instrumento de mistificação do direito consiste no uso de formulações não-imperativas, mas declarativas, na redação das leis – por exemplo, É proibido fumar, É permitido exportar capitais, O assassinato de um homem é um delito, etc. Isto, segundo Bentham, contribuiría para suscitar a impressão, enganosa, de que a atividade do legislador consistiria essencialmente em informar a presença de normas de qualquer modo pré-existentes, ao invés de produzir novas normas, perpetuando, com isso, a ideia apreciada pelos jusnaturalistas e pelo conservadorismo tradicionalista de um legislador impotente ou dotado, de todo modo, de poderes nomopoiéticos bastante limitados.

    Um segundo instrumento de mistificação do direito consiste na frequente utilização de expressões fictícias – isto é, de expressões que denominam entidades fictícias, como deveres, direitos, proibições, privilégios, liberdades, etc. – sem evidenciar a natureza fictícia e sem, por isso, prover as explicações idôneas para dissipar a aura de mistério que tipicamente as cercam.

    Um terceiro – pestilencioso – instrumento de mistificação do direito consiste no frequente recurso às ficções jurídicas: o instrumento portentoso mediante o qual os juízes constroem – assumem arbitrariamente a existência de – uma realidade jurídica, de todo fantástica do ponto de vista da realidade empírica (histórica, geográfica, social, etc.), que vem substituída a essa última na aplicação das normas do direito e na decisão concreta de controvérsias.⁵¹

    Um quarto instrumento de mistificação consiste no uso de expressões pseudo-descritivas: expressões que se apresentam como descritivas, mas são, na realidade, dotadas de um significado valorativo oculto (o filósofo da linguagem Charles Leslie Stevenson, duzentos anos depois, falará de significado emotivo), pelo que servem para suscitar clandestinamente a aprovação ou a reprovação dos destinatários a respeito das coisas por elas denominadas.⁵²

    Um quinto instrumento de mistificação do direito consiste, por fim, no recurso, por parte dos advogados e dos juízes, a pseudo-tecnicismos ou jargões os quais têm o efeito de fazer seus discursos incompreensíveis aos leigos, contribuindo assim a cercar sua obra de uma aura de fictícia sacralidade.⁵³

    7.2 Como desmistificar o direito

    Dentre os instrumentos para desmistificar o direito, obteníveis dos escritos de Bentham, é necessário distinguir: (1) os instrumentos para a análise do discurso jurídico; (2) os instrumentos para a elaboração de um aparato conceitual claro e moralmente neutro. Estes instrumentos apoiam-se sobre três pressupostos fundamentais, que devem ser preliminarmente considerados.

    7.2.1 Pressupostos fundamentais

    O primeiro pressuposto está constituído, com a explicação da qual falarei, de uma ontologia empirista. Bentham distingue, em honra à verdade, entre as entidades reais e as entidades fictícias, que seriam instrumentos conceituais como, por exemplo, na zoologia: reino, classe, ordem, gênero, espécie, variedade.⁵⁴ Distingue, ademais, no âmbito das entidades reais, entre as entidades inferenciais, cuja existência não é perceptível aos sentidos, mas é fruto de conjeturas (a alma, os anjos, os demônios, os fantasmas, etc.), e as entidades perceptíveis, com base no imediato testemunho dos sentidos. Porém, ele considera que as únicas entidades reais das quais se deva ocupar no âmbito das investigações científicas – e, portanto, de indagações úteis e meritórias – sejam constituídas pelas entidades perceptíveis: substâncias corpóreas, objetos materiais, comportamentos, impressões sensoriais e ideias, com isso devalorizando as entidades reais inferenciais.⁵⁵

    Os outros pressupostos estão na base da distinção entre o Expositor e o Censor. Podem ser entendidos, alternativamente:

    – como duas versões – uma empírica, outra epistemológica – de uma mesma tese: a denominada tese da separação entre direito e moral, que constitui uma das teses centrais do positivismo jurídico na reconstrução de Herbert Hart e de seus seguidores (como veremos no segundo volume);

    – ou bem, mais simplesmente, como duas das teses geralmente denominadas, de modo indistinto, sob a opaca fórmula da tese da separação entre direito e moral.⁵⁶

    Com as explicações precedentes, o segundo pressuposto do aparato metodológico benthamiano está constituído pela tese empírica da conexão contingente (que pode existir ou não existir) entre direito e moral, entre o direito como é e o direito como deve ser. Para Bentham, trata-se de uma tese absolutamente pacífica: por exemplo, o direito inglês não é de fato como deveria ser, do ponto de vista daquilo que para Bentham é a única moral razoável (a moral utilitarista centrada sobre o princípio da máxima felicidade para o máximo número), se bem possa ser reformado – no caso de verificarem-se as oportunas circunstâncias culturais, políticas, econômicas, etc. – de modo a conter preceitos conformes ao princípio de utilidade.

    O terceiro pressuposto da metodologia benthamiana está constituído, por fim, pela tese meta-teórica, e marcadamente epistemológica, da separação conceitual entre direito e moral; ou, em termos mais precisos, pela tese epistemológica da não-valoração moral dos conceitos jurídicos. Segundo essa tese, uma teoria do direito, se quiser ser realmente expositiva (descritiva, explicativa), se quiser de verdade ocupar-se exclusivamente do direito como ele é, deve dar conta dos fenômenos jurídicos mediante um aparato conceitual – a partir do conceito de direito (objetivo) – que não esteja comprometido com qualquer doutrina moral, inclusive com a verdadeira doutrina moral.

    7.2.2 Instrumentos para a análise dos discursos jurídicos

    Os principais instrumentos benthamianos para a análise da linguagem jurídica – instrumentos ainda utilizados, e utilizáveis, por quem queira desenvolver investigações meta-jurisprudenciais – são quatro: 1. A distinção entre a forma gramatical e a forma lógica dos enunciados; 2. A distinção entre termos e expressões valorativos e termos e expressões neutros; 3. A distinção entre termos reais e termos fictícios; 4. A distinção entre discursos em função descritiva e discursos em função prescritiva.

    1. Um primeiro instrumento de análise dos discursos jurídicos é constituído por uma distinção que, na filosofia analítica contemporânea, é conhecida como distinção entre a forma gramatical e a forma lógica dos enunciados.

    A forma gramatical de um enunciado é sua forma visível e acidental: a forma que um emissor de carne e osso deu a um enunciado, ao formulá-lo com a palavra ou ao escrevê-lo.

    A forma lógica de um enunciado é, ao contrário, a forma que por hipótese corresponde exatamente ao (alegado) significado do enunciado – a qual, portanto, pode inclusive não coincidir com a forma gramatical que a este último tenha sido dada num discurso.

    Por exemplo, apurou-se como os enunciados que contém descrições definidas tenham habitualmente uma forma gramatical à qual não corresponde sua forma lógica, gerando perplexidade.

    O atual rei da França é calvo

    para retomar o célebre exemplo de Bertrand Russell, é um enunciado cuja forma gramatical acidental (do tipo M é P) não corresponde por inteiro a sua (por hipótese, correta) forma lógica. Esta última, com efeito, seria, grosso modo, do seguinte teor:

    Vive atualmente um indivíduo que é rei da França, e tal indivíduo é calvo

    ou, em termos gerais: Existe um M, e tal M é P.

    Como foi assinalado ao tratar dos instrumentos para mistificar o direito, Bentham releva – e atrai a atenção do aspirante a Expositor do direito sobre – a possível separação entre (diríamos nós) a forma gramatical e a forma lógica dos enunciados legislativos – ou, em geral, diríamos nós, dos enunciados que expressam normas jurídicas.

    Estes enunciados, de fato, apresentam-se frequentemente com uma forma gramatical indicativa, ou declarativa (Está proibido exportar grão, Quem exporta grão é punido com reclusão: M é P) – apropriada a veicular significados de tipo assertivo ou descritivo – onde se trata, pelo contrário, de enunciados dotados de um significado normativo ou diretivo, cuja forma lógica, ou forma gramatical apropriada, seria inversamente uma forma imperativa (Ninguém exporte grão: P!), ou outra forma diretamente prescritiva (É minha vontade que M faça P, Nenhum M deverá P, M deve P, Nenhum M deve P, etc.).⁵⁷

    2. Um segundo instrumento de análise dos discursos jurídicos é constituído pela distinção entre, diríamos, termos e expressões valorativos – que veiculam, na maioria das vezes sub-repticiamente, comentários positivos ou negativos das coisas sobre as quais discutem – e termos e expressões neutros, que permitem falar das coisas de modos desapaixonados e imparciais.

    O Expositor deve saber reconhecer as expressões valorativas em seus contextos nos discursos jurídicos (pensa-se em termos como direito, ordenamento jurídico, poder legítimo, poder constituído, democracia, estado de direito, autocracia e muitos outros), tirando-lhe a carga emotiva; na sua obra de teórico, deve, ademais, servir-se exclusivamente de expressões neutras ou, pelo menos, redefinidas de forma que não incorporem, expressa ou ocultamente, valorações práticas, em obséquio à tese epistemológica da separação entre direito e moral.

    3. Um terceiro instrumento de análise dos discursos é constituído pela distinção, a qual antes havia acenado ainda que de modo incidental (§ 6.2.), entre termos reais, que denominam ou designam entidades reais, e termos fictícios, que são os nomes de instrumentos conceituais indispensáveis para conhecer (pensa-se nos chamados universais) e/ou para agir. É necessário, em particular, que o Expositor saiba individualizar aqueles termos, muito frequentes em discursos jurídicos, que, denominando entidades fictícias, não designam coisa alguma (como obrigação, direito subjetivo, isenção, privilégio, etc.), e saiba por à luz os eventuais abusos dos mesmos, consistentes em tratá-los inconscientemente – ou em incitar terceiros a tratá-los inconscientemente – como se designassem verdadeiramente as entidades reais.⁵⁸

    4. Um quarto instrumento de análise dos discursos jurídicos, muitas vezes evocado neste inventário, está constituído, por fim, pela distinção entre (diríamos nós) discursos em função descritiva, que se destinam à obra do Expositor, e discursos em função prescritiva, que se destinam, pelo contrário, à obra do Censor. Essa distinção tira sua relevância teórica da ideia, conhecida na filosofia contemporânea como Lei de Hume, segundo a qual os discursos descritivos e aqueles prescritivos são radicalmente heterogêneos e não inter-traduzíveis, de modo que não é possível derivar logicamente conclusões prescritivas de premissas que sejam todas descritivas, e vice-versa.

    O que aumenta ainda mais a dificuldade de entender (o significado das afirmações de Blackstone, ndr) – observa Bentham num momento de sua primeira obra publicada: A Fragment on Government,⁵⁹ de 1776 – é uma prática que já tivemos chance de destacar mais de uma vez nele – um tipo de versatilidade, pela qual nada pode ser mais vexatório a um leitor que se proponha a penetrar nos sentimentos de seu Autor. Ele (Blackstone, ndr) inicia enchendo a boca com a palavra dever e, na qualidade de um Censor, com toda a gravidade exigida pelo argumento, começa a nos falar do que deve ser. Mas bem no meio de sua lição, nosso Proteo escapa rápida e sub-repticiamente. Assume a qualidade de historiador, dá uma volta imperceptível no discurso e, sem advertir dessa mudança, termina por dizer-nos o que é. Entre esses dois pontos, o ser ("the is") e o dever ser ("the ought to be"), que são frequentemente reputados como opostos por outros homens, o espírito de obsequioso quietismo arraigado em nosso Autor o impede de discernir a mínima diferença.

    7.2.3 Instrumentos para um aparato conceitual claro e moralmente neutro

    Os pressupostos fundamentais e os instrumentos de análise da linguagem jurídica intervêm não somente na fase descritiva e crítica (pars destruens) da atividade do Expositor benthamiano, mas também naquela construtiva (pars construens). Nesta última fase, este é chamado a elaborar – ou a contribuir com a elaboração de – um aparato de conceitos jurídicos universais (ou quase universais): úteis para conhecer e para representar o direito como ele é, nas mais diversas experiências. Aos instrumentos antes mencionados, portanto, é necessário agora agregar outros dois: o método dicotômico e o método da paráfrase.

    O método dicotômico – também denominado método analítico, método analítico exaustivo, ou método das bifurcações – consiste em falar sobre o fenômeno indagado mediante um aparato de conceitos articulados em classes e subclasses reciprocamente exclusivos e conjuntamente exaustivos, segundo o esquema dos diagramas de árvore (árvores de Porfírio).⁶⁰

    O método da paráfrase – ou da exposição mediante paráfrases – serve para determinar o significado dos termos fictícios. É particularmente útil para o Expositor, já que, na perspectiva de Bentham, os principais termos da linguagem jurídica são, como se viu, prevalentemente termos fictícios.

    A seguir, além de falar brevemente sobre o método em si (ponto 3), me deterei brevemente sobre os pressupostos (pontos 1 e 2); indicarei por fim a crítica benthamiana da universalidade do método definitório per genus et differentiam (ponto 4).

    (1) Um primeiro pressuposto do método da paráfrase está constituído por uma concepção referencial do significado das palavras. Na perspectivia empirista de Bentham, têm significado, propriamente dito, somente as expressões em linguagem que designem diretamente um objeto qualquer da realidade empírica ou, mais precisamente, as que se refiram a objetos que assumimos que tenham uma existência real.⁶¹ Disso segue-se que as expressões fictícias – as quais, por definição, não designam nenhuma entidade real ou classe de entidades reais – não têm, nesse sentido de significado, nenhum significado.

    (2) Um segundo pressuposto do método da paráfrase está constituído por uma concepção parasitária e reducionista do significado dos termos fictícios. Como foi dito antes, os termos fictícios não têm referência e, pois, nesse sentido, não têm significado. Para Bentham, no entanto, isto não quer dizer que deles se deva fazer pouco; pelo contrário, os termos fictícios que se apresentam nos discursos jurídicos – dentre os quais, como se viu, direito subjetivo, dever,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1