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A Fronteira Sutil entre Projeto e Conservação
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A Fronteira Sutil entre Projeto e Conservação
E-book563 páginas4 horas

A Fronteira Sutil entre Projeto e Conservação

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Sobre este e-book

Existe uma fronteira sutil entre a cultura do projeto do novo e a da conservação do existente que ainda não foi devidamente explorada. O autor se propõe trabalhar esse desafio e o faz pondo ao centro da sua reflexão o estudo das obras, a partir das quais será possível começar qualquer tipo de teoria arquitetônica e de projeto.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de nov. de 2020
ISBN9786586034547
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    A Fronteira Sutil entre Projeto e Conservação - Federico Calabrese

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Prefácio

    (ao livro de Federico Calabrese)

    Para a comunidade acadêmica, Federico Calabrese não é um novato, mas para um público mais eclético este seu primeiro livro pode ser uma grata surpresa, incluindo arquitetos que militam na profissão, não os autistas, mas os que querem dialogar com contextos urbanos que Caetano Veloso chama de realidade, que podem ser toleráveis ou o avesso, do avesso, ou profissionais conservadores, que sentem a angústia das decisões ao intervirem em edifícios culturalmente relevantes.

    O livro resulta de sua tese de doutorado Uma fronteira sutil: entre o projeto do novo e a conservação do existente – Brasil e Itália no século XXI, defendida no convênio da Universidade Federal da Bahia com a Universitá degli Studi di Napoli, Frederico II. Tive a honra e o prazer de ser seu examinador ao lado de eminentes colegas das duas universidades.

    Federico já vinha tratando o tema de forma fragmentária na sua numerosa produção acadêmica, mas na tese e no livro resultante, a questão, com enorme erudição, ganha status de uma teoria. A escolha da relação entre o Brasil e a Itália no campo do projeto e da preservação se deve à sua vinculação afetiva aos dois países: o de origem e o de adoção.

    No primeiro capítulo, Federico analisa a relação entre a conservação do existente e o projeto do novo, duas linhas conceituais aparentemente antagônicas, através do pensamento dos principais teóricos da preservação e como suas ideias se espelham na prática do projeto de intervenção, envolvendo a tradição, a continuidade e a história. É muito interessante a recapitulação do pensamento de teóricos atuais da conservação, como Dezzi Bardeschi, Paolo Marconi e Giovanni Carbonara, que não excluem a inovação na preservação.

    Federico traz de outros campos do conhecimento instrumentos interessantes de análise que aplica pioneiramente nos estudos sobre a arquitetura e o urbanismo, como o conceito de genealogia originário de Nietzsche e reinterpretado e enriquecido por Foucault. É sobre o conceito relacionado de proveniência, que não exclui a história, mas acolhe outras tramas, que ele constrói um sistema de relações que supera as aparentes contradições entre as duas correntes de pensamento e chega a uma síntese dialética.

    No segundo capítulo o autor analisa a contribuição de três mestres do século passado no pensamento da geração atual através de formulações teóricas e prática profissional: Lucio Costa, diretor do IPHAN, como representante do Brasil, Ernesto Nathan Rogers, redator chefe e crítico da revista Casabella, como representante da Itália e Lina Bo Bardi, a criativa arquiteta ítalo-brasileira, como a ligação entre os dois enfoques nacionais.

    No último capítulo, o autor analisa as relações entre projeto novo e conservação em seis intervenções contemporâneas em edifícios de interesse cultural, a maioria transformada em museus, no Brasil e na Itália, para respaldar os fundamentos exarados nos dois capítulos anteriores. Analisa esses projetos segundo três critérios: contexto, preexistência e projeto, permanências e inovações. Nele confirma ser um crítico sagaz de arquitetura, já revelado em numerosos artigos anteriormente publicados. Preenche, assim, uma grande lacuna crítica nos estudos sobre a arquitetura e o urbanismo brasileiro. E faz isso, não como a maioria dos críticos de arte desconhecedores das questões técnicas e de uso social, que no caso da arquitetura são muito importantes, mas com profundo conhecimento dessas questões, como projetista do novo e da preservação.

    Federico além de professor é um arquiteto atuante e ativista junto a conselhos da profissão da causa arquitetônica/urbanística e autor de projetos premiados no Brasil, na Itália e na Espanha.

    Em suma, o livro de Federico Calabrese é um trabalho inovador, seja como enfoque metodológico, seja na categoria interpretativa, e antevejo o aparecimento de um grande crítico de arquitetura no Brasil.

    Paulo Ormindo de Azevedo

    Doutor em Perfezionamento Per Lo Studio Dei Monumenti pela Università degli Studi Roma Ter (1970).

    Professor titular da Universidade Federal da Bahia.

    Apresentação

    Este livro trata da relação entre duas culturas aparentemente diferentes: a da conservação do existente e a do projeto do novo. Realiza-se uma primeira aproximação inteiramente dentro do âmbito da restauração e conservação, através do pensamento dos principais teóricos atuais destes campos disciplinares. O trabalho examina as questões teóricas que esse dualismo traz, que podem ser consideradas como palavras-chave – tradição, continuidade, história – e que se condensam na prática projetual através do modus operandi do construir no construído. Isso é feito a partir da experiência projetual e da especulação teórica de três mestres do século passado, que representam, em primeiro lugar, as duas áreas geográficas do trabalho – o Brasil e a Itália – com três protagonistas: Lucio Costa para o Brasil, Ernesto Nathan Rogers para a Itália e Lina Bo Bardi como ponte entre os dois países. Isso traz algumas questões cruciais na nossa pesquisa: a relação entre a teoria e a prática projetual; como, e se, em uma sociedade altamente fragmentada e instável como a nossa, ainda faz sentido falar sobre teoria no campo disciplinar da arquitetura que, para nós, também inclui o campo da restauração e conservação. Finalmente, através da análise de projetos que intervêm em construir no construído nas duas áreas geográficas da pesquisa (Brasil e Itália), tentamos entender se e como as novas gerações de arquitetos conseguem resolver esta relação delicada entre duas culturas que, durante muito tempo, foram consideradas antitéticas e que, para alguns estudiosos, ainda são. São projetos deste século e de arquitetos que não têm formação específica nas áreas da restauração e conservação, mas atuam de forma cuidadosa, com sensibilidade e com rigor ao se aproximar do texto histórico sem, contudo, cair na armadilha da imitação e sempre afirmando, com o projeto, um ato de cultura contemporânea. Ao longo do texto essas tramas descritas vão entrelaçando-se de forma não linear, criando conexões inesperadas que dão vida a uma história genealógica capaz de ser lida a partir do final ou desde o meio da narrativa que, como as tramas tecidas que compõem esta história, pode ser comparada a um emaranhado sem começo nem fim.

    Sumário

    introdução 13

    1

    CONSERVAÇÃO E PROJETO DO NOVO: DEFINIÇÕES E ORIENTAÇÕES A PARTIR

    DO ÂMBITO DO RESTAURO 27

    2

    TRÊS MESTRES ENTRE PENSAMENTO E PRÁTICA: LÚCIO COSTA, ERNESTO NATHAN ROGERS E LINA BO BARDI 53

    2.1 Tradição 60

    2.2 Continuidade 71

    2.3 História 80

    2.4 Construir no construído 90

    3

    ENTRE PROJETO DO NOVO E A CONSERVAÇÃO DO EXISTENTE – O SÉCULO XXI 135

    3.1 BRASIL 139

    3.1.1 Red Bull Station, São Paulo, 2013 – Centro Cultural na antiga subestação

    elétrica da São Paulo Tranway, Light and Power Company 139

    3.1.2 Cinemateca brasileira, São Paulo, 2007 – Cinemateca brasileira

    no antigo matadouro da Vila Mariana 189

    3.1.3 Museu Rodin, Salvador, Bahia, 2006 – de Palácio eclético de

    Bernardo Martins Catharino (1912) a Museu Rodin de Salvador (2006) 221

    3.2 ITÁLIA 268

    3.2.1 Museu da Merda de Castelbosco, 2015 – felizes desvios 268

    3.2.2 Forte Pozzacchio, Rovereteo, 2015 – ver sem ser visto 290

    3.2.3 Centro educacional e teatro na antiga Olaria de Riccione, 2014 –

    a província impregnada de arquitetura 327

    4

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 353

    Por uma genealogia do projeto do novo no existente – algumas conclusões 355

    REFERÊNCIAS 365

    ÍNDICE REMISSIVO 375

    INTRODUÇÃO

    Por uma genealogia do projeto do novo no existente – hipóteses iniciais

    É possível estabelecer um diálogo entre a cultura do projeto do novo e a cultura da conservação? O diálogo entre a cultura do projeto do novo e a cultura da conservação arquitetônica insere-se em qual âmbito disciplinar? Que tipo de diálogo pode tornar essa relação fecunda? Quais as estratégias projetuais mais adequadas para criar esse diálogo?

    Essas perguntas iniciais fazem emergir com evidência o objeto da pesquisa, que é relação entre a cultura do projeto do novo e a cultura da conservação arquitetônica.

    As perguntas feitas e, consequentemente, o objeto do trabalho trazem consigo muitos conceitos e questões, relacionados com tais culturas que se inserem no perene dualismo entre projeto e história; inovação e tradição; continuidade e ruptura; que produziu, tanto na Europa quanto em outros lugares, durante todo o século XX, intenso debate cultural.

    Neste livro, propõe-se tratar tal tema evitando recorrer à dialética dos opostos assinalada anteriormente, que tem no seu moralismo implícito o seu limite. Ao contrário, quer-se sugerir uma abordagem, partindo da pesquisa que identifica na transformação o resultado de contínua alternância exatamente entre continuidade e ruptura, entre inovação e tradição.

    A própria origem do termo tradição, de etimologia latina, derivado do verbo trado, is, tradidi, traditum, ere, significa entregar, estender, colocar à disposição, confiar, mas também abandonar, deixar à deriva.

    Por sua vez, o termo inovação, também de origem latina, deriva do verbo renovo, as, avi, atum, are, que significa renovar, refazer, restaurar, rejuvenescer, repetir, reevocar, lembrar-se.

    Nesse sentido, provavelmente, o debate ao redor desses temas não encontrou ainda, na pesquisa, um ponto de síntese e equilíbrio, que parece hoje mais difícil do que nunca, mas necessário. Especialmente diante da realidade contemporânea, tão instável e desenraizada, ou melhor, líquida, parafraseando Baumann¹.

    Em 2007, em Turim, Rafael Moneo realiza uma conferência com o título Construir no construído, que se torna posteriormente um livro (MONEO, 2007) em homenagem ao arquiteto italiano Roberto Gabetti², morto no ano 2000.

    Segundo Moneo (2007), construir no construido trata-se de uma das questões primordiais da arquitetura e um dos temas que melhor definem a atividade do arquiteto.

    Tal questão tão importante reflete-se continuamente na relação entre teoria e prática, que pode ser retomada, tomando emprestados o pensamento e as palavras do próprio Moneo (2007), em três pontos chaves:

    consciência e responsabilidade de construir dentro de um tempo histórico;

    leitura crítica e interpretativa do lugar no qual se constrói;

    escolha de uma linguagem apropriada que possa criar um equilíbrio entre a interpretação do existente e o projeto do novo, entre aquilo que permanece e aquilo que semodifica.

    A partir dessas lentes, serão analisados os projetos tratados nesta pesquisa.

    Este estudo, dessa forma, quase inevitavelmente, move-se entre teoria e prática projetual, entendendo a teoria, tal como assinala Vittorio Gregotti (1991), como um modo de ser do projeto, fundamento, escolha e instrumento concreto não distinguível do seu resultado.

    Como já mencionado, os objetos de estudo são conceitos, mas, também, projetos recentes, que intervêm no patrimônio construído, com umas estratégias que conferem um novo conteúdo funcional, formal e simbólico aos elementos edificados e urbanos, dotados de valores históricos e/ou arquitetônicos, que podem ser confirmados e potencializados, passando, em todos os casos, por modificações. Entende-se o patrimônio, aqui, na sua acepção mais ampla, um patrimônio construído existente que frequentemente é aquele de fronteira, ou seja no limite, entre a arqueologia industrial semiabandonada e a dolorosa memória bélica.

    São projetos realizados no século XXI, que enfrentam e colocam questões a respeito da relação entre a cultura do projeto do novo e a história, entre inovação e conservação.

    A inovação é entendida como nova contribuição, autônoma, que deixamos impressa na construção como testemunho do nosso uso e da nossa passagem (DEZZI BARDESCHI, 2009, p. 61).

    Este estudo restringe-se a um âmbito geográfico que inclui dois países: Brasil e Itália, de modo coerente com a gênese deste trabalho. A pesquisa, de fato, foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, em cotutela com a Scuola di Dottorato di Ricerca in Storia e Conservazione dei Beni Architettonici e del Paesaggio da Università Federico II de Nápoles, na Itália.

    O objetivo geral do trabalho é investigar as relações entre a cultura da conservação e a do projeto do novo a partir de uma reflexão pautada na articulação entre a teoria e a prática projetual, dentro de um recorte espacial que inclui os dois países citados anteriormente e dentro de recortes generacionais: um do século XX e outro do século em curso, que serão especificados nas páginas a seguir.

    Após a realização de uma revisão bibliográfica sobre os temas que relacionam a conservação com o projeto do novo, objetiva-se, no Capítulo 1, apresentar algumas definições conceituais e teóricas sobre tal relação, dentro do campo do restauro arquitetônico.

    Dentro desse âmbito, a Itália continua, até a atualidade, a ter um papel central no debate internacional e, assim, a questão será tratada a partir das perspectivas e das observações de alguns dos principais protagonistas que, ainda hoje, representam e identificam as principais fontes teóricas da disciplina do restauro: B. Paolo Torsello, Amedeo Bellini, Marco Dezzi Bardeschi, Paolo Marconi, Giovanni Carbonara e Claudio Varagnoli. São por essas razões que a Itália é um dos ambientes geográficos da pesquisa. Além do que, na Itália, o tema da inserção da arquitetura contemporânea nos contextos históricos influenciou e inspirou os debates internacionais, inicialmente devido à urgência da reconstrução do segundo pós-guerra e, sucessivamente, por ter focalizado sua atenção sobre a questão da compatibilidade entre as instâncias da conservação e do projeto do novo.

    Essa reflexão teórica posteriormente traduziu-se em ação projetual, a partir das obras amplamente conhecidas e estudadas na Itália e no exterior, de Carlo Scarpa, Ignazio Gardella, Franco Albini, Franco Minissi, e Ludovico Quaroni, mencionando apenas alguns dos protagonistas. Vale a pena citar alguns dos seus projetos paradigmáticos: o Museu do Castelvecchio, em Verona, e o Palazzo Abatellis, em Palermo, ambos de Carlo Scarpa (Figuras 1, 2 e 3); a Casa Cicogna alle Zattere, em Veneza, de Ignazio Gardella (Figura 4); os museus de Franco Albini em Génova (Figura 5) os projetos de Franco Minissi na Sicília, como o projeto para a Villa Romana del Casale, ou o anfiteatro grego de Eraclea Minoa (Figuras 7 e 8).

    O objetivo específico desta reflexão é extrapolar os limites da pesquisa em torno do restauro para colocá-la na relação com a compreensão da cultura do projeto, identificando possíveis pontos de tangência e divergência.

    Considerar essa operação, também, como escolha ética³ e responsável, de continuidade entre tradição e inovação, é uma das questões que será problematizada nas páginas a seguir.

    Provavelmente a responsabilidade de admitir o dever de resolver a continuidade entre o nosso passado mais ou menos remoto e o futuro é uma das questões que a cultura arquitetônica atual não pode mais deixar de enfrentar, justificando-se, assim, a atualidade e pertinência desta pesquisa. Consciência e responsabilidade de construir em um contexto historicizado é um dos pontos destacados por Moneo (2007) como fundamental para que se possa aproximar e enfrentar essa delicada relação.

    Assim, faz-se ainda mais necessário realizar um estudo que possa aprofundar e fundir teoria e prática na via da continuidade, da tradição e da história, e de uma possível e desejável convivência entre a cultura da conservação e aquela do projeto do novo, mediante uma síntese convergente e equilibrada, que se materializa, na estratégia projetual do construir no construído.

    O Capítulo 2 tem como objetivo realizar uma análise de determinados conceitos teóricos (continuidade, história e tradição) e a sua relação com a prática (construir no construído), como se fossem um fil-rouge genealógico, mais ou menos emaranhado, que coloca junto três mestres da arquitetura do século XX, e dois países que representam: Lúcio Costa, no Brasil, Ernesto Nathan Rogers, na Itália, e Lina Bo Bardi, também da Itália, como importantíssima ponte entre as culturas, não apenas arquitetônicas, dos dois países. Essa é mais uma das motivações para compreender o âmbito geográfico desta pesquisa.

    Lúcio Costa, Ernesto N. Rogers e Lina Bo Bardi influenciaram, sem dúvida, muitas gerações de arquitetos, e, talvez mais do que outros, contribuíram para resolver, mesmo que parcialmente, este delicado encontro entre a história e o projeto. A partir dos conceitos-chave mencionados, pretende-se esclarecer qual tipo de herança deixaram, seja no campo projetual ou no teórico, e como, e se, essa herança entra em contato com as definições conceituais presentes no primeiro Capítulo.

    Encontrar essa interseção entre culturas distintas, entre atores diversos, e entre países distantes, não apenas geograficamente, é possível, também por meio do estudo e das análises críticas dos projetos, que é o objetivo do Capítulo 3. Examina-se como a transformação é usada como "processo de releitura dos materiais do existente, e "reescritura e refundação das relações entre aquilo que permanece e aquilo que muda" (PURINI, 1987, p. 55).

    De um lado, parece existir uma aspiração profunda do existente que se manifesta com o seu manter-se em transformação, e, de outro, as razões da cultura do projeto, que devem se esforçar para entregar à contemporaneidade um patrimônio atualizado e renovado.

    É por meio das análises e da leitura crítica dos projetos que se procura tornar explícito o quanto esses temas sejam hoje, mais do que nunca, importantes desafios para a cultura arquitetônica em geral e para os arquitetos em particular.

    Inicialmente foi realizada uma seleção preliminar da produção projetual sobre o tema, que foi sistematizada e analisada com base em uma pesquisa de dados textuais e iconográficos, a partir da bibliografia existente.

    Em seguida foram escolhidos alguns projetos do século XXI entendidos como significativos. Foram realizadas viagens de estudo no Brasil em um primeiro momento, e na Itália posteriormente, durante o período da cotutela. Finalmente os dados coletados foram sistematizados e abordados a partir de uma análise crítica das obras selecionadas.

    A leitura e compreensão de algumas intervenções, seja na Itália ou no Brasil, tem como objetivo verificar se, e como, a herança dos mestres é recolhida pelas novas gerações de arquitetos, e se essa herança se sobrepõe e interage, mais ou menos conscientemente, com o pensamento dos especialistas em conservação, e de que modo e em que grau umas podem se alimentar das outras sem, necessariamente, entrarem em conflito.

    A análise dos projetos é útil para satisfazer, se possível, usando as palavras de Dezzi Bardeschi (2009, p. 82), "uma escolha responsável de uma aliança virtuosa" entre a cultura do projeto contemporâneo e aquela da conservação do construído.

    Estabelecer a existência de pontos de contato ou intersecções entre as duas culturas, aparentemente tão distintas entre si, é útil para verificar a possível existência de uma genealogia entre os arquitetos das novas gerações, examinados por meio do estudo das intervenções realizadas, e alguns dos principais protagonistas do debate teórico no âmbito da conservação, e, também, de alguns mestres da arquitetura do século XX.

    O conceito de genealogia é a base desta pesquisa. A genealogia é usada como método para tecer tramas não lineares e não progressivas que não partem de uma origem predeterminada.

    O conceito é a base da intuição de Nietzsche que, na obra Genealogia da Moral (1967, p. 12), escrita em 1887, produz uma crítica corrosiva à moral, afirmando que os princípios e valores que essa possui não têm uma origem filosófica, mas, sim, social e remota, uma verdadeira genealogia que precisa ser reconstruída.

    Michel Foucault (1977) propõe uma leitura original da genealogia nietzschiana e explica, em Nietzsche, a genealogia, a história, que à origem como verdade (Ursprung), Nietzsche opõe a origem como emergência (Entstehung) e proveniência (Herkunft). Foucault, na sua interpretação pessoal de Nietzsche, acrescenta uma terceira dupla, que liga a origem à invenção (Erfindung).

    O conceito de proveniência é fundamental para construir um sistema de tramas e relações dentro deste trabalho. Não se trata de encontrar caráteres genéricos que permitam assimilar outros, mas traçar os sinais sutis, singulares e individuais que possam se encontrar e formar uma rede difícil de desemaranhar.

    A proveniência não é uma categoria de semelhança, mas uma tal origem permite desembaraçar, para separar, todos os sinais diversos (FOUCAULT, 1977, p. 34). A emergência, por sua vez, é a evidenciação das forças e das suas irrupções, nas quais os eventos casuais têm um papel importante. A terceira díade de Foucault é a origem entendida como invenção: de um lado como ruptura e descontinuidade, mas, de outro:

    [...] algo que possui um pequeno início, baixo, mesquinho, inconfessável. [...] à solenidade da origem é necessário propor, segundo um bom método histórico, a pequenez meticulosa e inconfessável destas fabricações, dessas invenções (FOUCAULT, 2007, p. 89).

    A proveniência está relacionada com o corpo, com a matéria. O corpo que, segundo Foucault (1977), leva na vida e na morte a sanção por toda a verdade e todo o erro, como também leva, inversamente, à origem-verdade.

    O corpo, para Nietzsche, segundo Foucault (1977), é tudo que se relaciona com isso, é o lugar da herkfunt-Invenção: sobre o corpo se acha o estigma dos eventos passados, assim como disso nascem os desejos. O corpo é a superfície de inscrição dos eventos, em que a linguagem os distingue e as ideias se dissolvem. Corpo que pode ser aproximado ao conceito de palimpsesto arquitetônico, acumulação de histórias e eventos, que será retomado nos discursos a seguir, no primeiro Capítulo, por Marco Dezzi Bardeschi e outros.

    A genealogia como análise de proveniência é, portanto, a articulação do corpo na história: deve mostrar tudo marcado com história, a história que assola o corpo.

    O método genealógico segue uma via que não é linear, mas tortuosa, que não conduz do início ao fim, mas é feita por desvios e não se sabe onde levará ao final. O genealogista escuta com cuidado e trabalha minuciosamente na procura de inumeráveis inícios, analisa aquilo que ocorreu e foi documentado, verificado, existido, mediante um procedimento hermenêutico que não pretende ser exaustivo. O genealogista apreende que atrás das coisas há outra coisa: uma essência construída pedaço por pedaço, a partir de figuras que lhe eram estranhas.

    Trabalha sobre pergaminhos enrolados, rasgados, mais de uma vez reescritos, a genealogia é cinza, meticulosa, paciente (FOUCAULT, 1977, p. 148). Foucault atribui à genealogia a cor cinza, que exprime a miríade de interpretações que se apresentam de modo não ordenado, e que é necessário decifrar sem pretender reordenar de forma teleológica.

    A genealogia não se opõe à história, mas à busca de uma origem. Opõe-se ao desdobramento meta-histórico dos significados ideais e das indefinidas teleologias.

    Mas, para o genealogista, aquilo que ocorre no presente pode ser compreendido apenas com base naquilo que já ocorreu. Isso é possível sem retraçar um caminho progressivo em direção a um fim último melhor daquilo que existia na origem, apenas porque aquilo que temos para entender o presente é o passado e como, desse, chegou-se a hoje.

    O conceito de origem como meio para transtornar a cronologia progressiva da história oficial é fundamental para Nietzsche (1967), Foucault (1977) e também para Walter Benjamin (1940). A distinção entre origem e fenômeno atual serve para desestabilizar a ideia de história e do conhecimento em geral, como aquilo que procede progressivamente e teleologicamente por acumulação.

    Distinguir a origem e o escopo final significa que tudo aquilo que existe é continuamente e novamente interpretado tendo em vista novos propósitos e novas utilidades e, desse modo, o propósito e o sentido atribuídos às coisas até aquele momento sucessivamente se ofuscam, são abandonados e substituídos. Este último conceito se liga profundamente à tradição e à inovação, que são questões fundamentais para esta pesquisa e que serão aprofundadas no decorrer deste texto.

    A genealogia à qual se refere neste trabalho é aquela que "não vê a origem como verdade em si, mas substitui a procura

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