Pensar é transgredir
De Lya Luft
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Pensar é transgredir - Lya Luft
À memória de Mafalda Verissimo, a dos inesquecíveis olhos azuis: que me quis bem, me compreendeu, queria me proteger, dividiu comigo alegrias e tristezas, e sobretudo mostrou que a passagem do tempo pode nos tornar mais amorosos, ainda interessados, e muito mais interessantes.
Sumário
| Convite
1 | Laços e punhais
2 | Agendar a vida
3 | Canção das mulheres
4 | Pensar é transgredir
5 | O menino e sua mãe
6 | Visitas à velha senhora
7 | Relacionamento perfeito
8 | O lado negro
9 | Um pouco de silêncio
10 | Osteoporose na alma
11 | História dos sentimentos
12 | Nós, os brasileiros
13 | Um tema tão delicado
14 | Ponto-e-vírgula
15 | Nós, os diferentes
16 | A visita do anjo
17 | Infância
18 | O rio das perdas
19 | Eu sou meus personagens
20 | Nem tanto assim
21 | Aquelas ilusões
22 | Tambores de guerra
23 | Velhice, por que não?
24 | O tassivelo
25 | Não somos santas
26 | A velhinha no saguão
27 | Testemunho
28 | Numa cidade distante
29 | Para não dizer adeus
30 | Prioridades
31 | Canção dos homens
32 | Eu falo é da vida
33 | Histórias de bruxa boa
34 | Anistia
35 | Somos gente
36 | Subir pelo lado que desce
37 | Caras na minha janela
38 | Revogue-se
39 | Dicionário para crianças
40 | Uma flor selvagem
41 | Machos e fêmeas
42 | Mais infância
43 | Pode tudo
44 | Quem nos desgoverna
45 | Legado
46 | Teorias da alma
47 | O sexo mais oprimido
48 | Pensar é viver
49 | Escrever, por quê?
50 | Dizer sim
, dizer não
| Convite
Rótulos me parecem cada vez mais precários. Às vezes mais confundem do que esclarecem. Mas eventualmente são indispensáveis para que as coisas tomem forma, destacando-se da complexa realidade e do nebuloso pensamento nosso.
A maior parte dos textos deste livro podem-se chamar crônicas. Muitos foram publicados em jornal, outros são avulsos que saíram não lembro bem quando nem onde, ou apenas salvei no computador. Vários escrevi especialmente para este livro.
Romances, ensaios, poemas e textos breves são o meu jeito de rondar algo que me assusta ou seduz. São os meus temas, alguns dos temas humanos: tramas e dramas existenciais, o sentido e o valor da vida, o banal e o misterioso. A sentença que lançamos sobre nós mesmos, em nossas escolhas ou silêncios.
Escrevo sobre isolamento e ternura, a perturbadora ambivalência nossa, frivolidade e covardia, às vezes a graça e o riso.
Aqui e ali, a noite escura.
Não inventei ao dizer que meu leitor é cada vez mais a síntese dos amigos imaginários que me fizeram companhia na infância das minhas perplexidades.
Então, venha comigo.
1 | Laços e punhais
Certa vez errei uma tecla do computador, e em lugar de perdas
saiu peras
.
Eu ia corrigir mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores.
Quem sabe um dos que estudam minha obra, preparando com a maior gravidade sua dissertação ou tese, pare, pense, morda a ponta da caneta ou fique olhando o computador, perplexo. Para depois discorrer filosoficamente sobre aquelas frutas perdidas num texto que nada tinha a ver com elas.
Dessa maneira acontecem mal-entendidos: amizades se perturbam, amores se rompem, pessoas se desencontram e magoam.
— Mas você tinha dito peras!
— Não, eu falei perdas!
— Peras...
— Perdas...
Perdeu-se nesse jogo inconsistente um pedaço de vida, um brilho de entendimento se apagou.
— Eu ia dizer que você me faz muita falta
, mas você entendeu Você está em falta
... comigo, com a vida, consigo mesmo.
E passamos meia hora evitando nos olhar de frente, nesses momentos o universo esteve em desconserto, e nós desconcertados.
Quando eu era menina, certo dia num almoço fiquei observando a família à mesa, e aquelas pessoas tão conhecidas me pareceram umas enormes salsichas com tufos de pêlos no alto, bolinhas se mexendo (chamadas olhos — ansiosos, tranqüilos, amorosos ou hostis) e aquele furo no centro que se abria e fechava emitindo sons. A boca do beijo, do silêncio ou do insulto.
As outras salsichas também olhavam com seus botõezinhos de vidro brilhante, viravam-se para os lados, agitavam mãos ou abriam e fechavam seus furinhos-boca respondendo.
Palavras esvoaçavam sobre a mesa como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas. Um falava, outro compreendia e devolvia sinais sonoros. Mas de repente alguém não ouviu direito: os olhinhos ficaram duros, os sons da boca estridentes, ou baixos mas furiosos.
Agitação na sala de jantar. Briga em família.
Então nem sempre que alguém dizia flor
o outro pensava flor
? E podia entender pedra
? Em lugar de enviar sobre a mesa palavras-borboleta, jogavam palavras-pedra? Nada era simples. O mundo se desarrumava um pouco por causa desses mal-entendidos.
Até ali, para mim palavras eram objetos mágicos: agora via que podiam ser traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes; caramelos de vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia se engasgar, até morrer.
Não era só prazer a linguagem: peras, perdas, fazer falta, estar em falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto.
Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, enredam em doces laços, ou nos matam dolorosamente — como punhais.
2 | Agendar a vida
Abro uma página da minha agenda para demarcar mais uma vez o território de minha liberdade e o dos meus deveres — que é onde ela começa a perder pé.
A fantasia não pede licença para se desenrolar: logo vejo uma infinidade de mesas e escrivaninhas, cada uma com sua agenda, nela a floresta dos compromissos, mal sobrando alguma trilha estreita para andar e respirar. (Nas folhas desta minha atual quero abrir entrelinhas para contemplar a árvore em flor diante de minha janela, ou pegar nos braços uma das crianças que povoam esta casa.)
Vejo também agendas quase vazias onde se procura melancolicamente algo para quebrar o sem-sentido da vida: nem uma visita, uma data de aniversário, nenhum afeto nomeado, nem ao menos um pagamento nesses dias que parecem um deserto sem contornos.
Nem uma miragem ao longe?
Pessoalmente não vivo sem uma agenda, aquelas de bloco, ao lado do computador. Às vezes olhar a folhinha me dá alegria: um encontro bom, ou um dia inteiro só pra mim. Em outras folhas, um engarrafamento de garatujas (minha letra, horror das professoras desde os primeiros anos de escola) com mais compromissos do que meu fundamental desejo de liberdade quereria.
Agenda pode ser tormento e prisão. Mas pode ser liberdade, se a gente inventar brechas: em plena tarde da semana, caminhar na calçada; sentar ao sol na varanda do apartamento; deitar na grama do parque ou jardim, por menor que ele seja, e como criança olhar as nuvens, interpretando suas formas: camelo, coelho, árvore ou anjo.
Ou: quinze minutos para se recostar para trás na cadeira (pode ser do escritório mesmo) e espiar o céu fora da janela; ir até a sala, esticar-se no sofá com as pernas sobre o braço do próprio, e ouvir música, ver televisão, ler, ler, ler... ou simplesmente não fazer nada.
O ócio é uma possibilidade infinita a ser explorada.
Não falo da inércia, do desânimo, do vazio melancólico. Jamais falarei de ficar de robe velho e pantufas (vi numa vitrine algumas com cara de cachorro e até orelhas!) pela casa até o meio da tarde.
Falo de viver.
Parar, olhar, escutar
, dizia um aviso nos trilhos do trem quando havia trem entre minha cidade e Porto Alegre. A gente passava de carro sobre o trilho, e eu imaginava o horror de alguém infringir isso e ser explodido pelo monstro de ferro e fumaça.
A vida há de rolar por cima da gente, reduzindo a poeirinha inútil quem