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Dignidade da pessoa humana, base e fim da promoção dos direitos humanos
Dignidade da pessoa humana, base e fim da promoção dos direitos humanos
Dignidade da pessoa humana, base e fim da promoção dos direitos humanos
E-book628 páginas7 horas

Dignidade da pessoa humana, base e fim da promoção dos direitos humanos

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Sobre este e-book

O livro apresenta a dignidade da pessoa humana e seus direitos universais, invioláveis e inalienáveis. É indispensável predicar que os valores cristãos auxiliam a pessoa no descobrimento do mistério de Deus que se revela em cada ser humano e que os obstáculos existentes podem se transformar num dom de promoção humana. Estes contribuem para que cada pessoa humana redescubra a sua real identidade, bem como o seu posto no mundo. Neste horizonte, surge a CNBB como promotora e defensora de uma cultura que desenvolva e aperfeiçoe de maneira equilibrada a pessoa humana integral e ajude a ser humano a desempenhar as suas funções a que são livremente chamados.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de jan. de 2021
ISBN9786558775102
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    Dignidade da pessoa humana, base e fim da promoção dos direitos humanos - Reginaldo Albuquerque da Silva

    1.

    PRIMEIRO CAPÍTULO

    DIREITOS HUMANOS E DIGNIDADE DA PESSOA POSSIBILIDADES E DESAFIOS

    INTRODUÇÃO

    Observa-se como muitos diários, revistas, jornais abrem sessões sobre os Direitos Humanos. Na televisão, por exemplo, o tema vem sendo tratado em horários nobres. Tornou-se comum o tema direitos nas declarações políticas, nacionais e internacionais. Todas as grandes organizações políticas, sindicais, religiosas criaram ou desenvolveram suas comissões de Direitos Humanos. Fala-se muito dos Direitos Humanos, todavia pode ocorrer que discorrendo facilmente se ignore o seu significado verdadeiro.

    No contexto atual universal quando falamos de Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa humana podemos correr o risco de não ter presente o percurso feito com tantas lutas, revoluções, discussões. Com isso, gostaríamos primeiramente de iniciar a desenvolver nosso argumento enquadrando seu objeto; examinando sua origem e suas perspectivas, suas possibilidades e desafios.

    O reconhecimento dos Direitos Humanos, mesmo que ainda navegando em águas revoltas, operou-se por lentas e dolorosas conquistas históricas. Neste ponto, para melhor entender o percurso histórico dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana, descreveremos algumas questões relevantes que antecederam a magnífica Declaração dos Direitos Humanos e sua conceituação. Para isso, gostaríamos de iniciar utilizando o termo revolução, pois neste contexto a palavra caracteriza «aqueles que agem em torno da pessoa e visam a realização da comunidade, onde a pessoa encontra comunhão. Uma sociedade assim constituída transcende a história e se constitui um ideal moral de empenho humano e de determinação nas suas ações»¹⁶.

    Na sequência, matutaremos os acontecimentos que se sucederam 1948, como por exemplo, o desenvolvimento da dimensão internacional dos direitos humanos e o aprofundamento da utilização dessa noção tanto pelos indivíduos quanto pelos grupos.

    Ainda no tocante a Declaração, gostaríamos de explanar sobre a posição da Igreja diante da referida Declaração, sua notável contribuição e proteção da dignidade humana, bem como a necessidade de que as nações incluíssem nas suas respectivas legislações particulares uma verdadeira proteção jurídica para a pessoa.

    Neste horizonte, observaremos que Igreja tem demonstrado ao longo dos séculos de história uma constante preocupação pela defesa dos Direitos Humanos e dignidade humana, unindo o anúncio da fé com a promoção de um fecundo movimento de promoção e ascensão da pessoa latino-americana.

    Tendo sempre presente o panorama proposto, gostaríamos então de discorrer sobre os Direitos Humanos na sociedade democrática. Nela encontraremos elementos políticos, econômicos e sociais que devem informar uma sociedade democraticamente organizada, e daí estarão reunidos os Direitos Humanos fundamentais dos quais resultam deveres concomitantes.

    Neste cenário supramencionado, merece um olhar sobre os Direitos dos Povos e Nações, uma vez que eles somente serão possíveis a partir do estabelecimento de uma ordem internacional, que implicará uma nova ordem econômica internacional, que seja justa e contemple as necessidades de todos. Neste caso, devem ser repensadas as relações entre os povos ricos e os pobres, entre os povos explorados e os exploradores a nível militar, cultural, ideológico.

    Na sequência, colocaremos em relevo uma das questões fundamentais da atualidade no que diz respeito aos Direitos Humanos, trata-se da universalidade dos Direitos Humanos e da Declaração de 1948, bem como os direitos categoricamente proclamados invioláveis e inalienáveis.

    Finalmente pretendemos abordar sobre os Direitos Humanos perante o pluralismo a diversidade cultural. Apesar de sua abrangência, não almejamos discorrer o tema de forma exaustiva, mas avaliar e propor um caminho a ser seguido. Navegando nessas ondas revoltas, mas necessárias e positivas, gostaríamos de expor seguidamente a questão dos quatro princípios norteadores dos direitos da pessoa, trata-se de tentar conformar esses princípios dentro dessa pluralidade e diversidade cultural.

    Nosso objetivo é de dissertar sobre as suas possibilidades e desafios mais emergentes, propondo um conhecimento cuidadoso e contextualizado no que diz respeito a referida Declaração, uma vez que ela continua sendo um dos mais importantes marcos referenciais no combate as inúmeras violações dos Direitos Humanos e consequentemente da dignidade da pessoa.

    1. PANORAMA HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS

    A compreensão dos direitos humanos traz em si um impulso conflituoso e revolucionário¹⁷. Além disso, a consciência dos direitos humanos surgiu no conflito com o princípio da soberania absoluta e se impôs em movimentos revolucionários: nas revoluções americana e francesa¹⁸. Foram séculos de história, em um evento assinalado com muitas luzes e sombras¹⁹, mas foi também fruto de um longo caminho feito da consciência da humanidade. Progressivamente se descobriu a caro preço, os valores da dignidade humana e lentamente declinados nas diversas dimensões e nos diversos âmbitos da vida do ser humano²⁰.

    Esse conflito chamado revolução foi devido a uma nova concepção do cosmo, da sociedade e da antropologia. A partir do renascimento, com as descobertas científicas e a evolução técnica, que provocam uma revolução comercial, industrial, política e social, o ser humano passa a ter uma nova imagem de si próprio, diferente daquela que teve desde a sua origem. A pessoa se descobre o centro do universo, da filosofia, da ordem social e jurídica. Trata-se de uma cosmovisão nova e, pois, de uma globalidade sociocultural, típica da modernidade (idades moderna e contemporânea), substituindo uma cosmovisão antiga e uma globalidade sociocultural típica da antiguidade²¹.

    Na antiguidade, o ser humano se sente indefeso diante da natureza e colocado dentro de uma ordem estabelecida. A falta da defesa, com efeito, favorece nele o teocentrismo, onde o sagrado ou transcendente ditam através de convicções religiosas (mitos ou modelos exemplares), o comportamento humano, tanto em termos de deveres quanto de direitos: as crenças dominam todo movimento físico e psíquico do homem. A observação e o estudo do universo lhe mostram leis em toda a natureza, donde segue que para o universo existe uma ordem estabelecida colocada pela divindade. Esta ordem estabelecida é transferida para a natureza do homem e para a sociedade humana²².

    Daí o conceito filosófico do homem da antiguidade, cujos direitos e deveres provêm da sua natureza fixa e imutável. Para Platão, o homem é uma alma com ideias eternas, aprisionada num corpo material²³, por outro lado, como expõe Roxo: «a antropologia aristotélica situa-se no plano metafísico do hilemorfismo: matéria-forma, corpo-alma; e no plano da essência: o homem é animal racional, composto substancialmente de um corpo perecível e de uma alma imortal»²⁴. E continua:

    Como pessoa, é a celebre solidão metafísica de substância individual de natureza intelectual. Uma antropologia perenemente válida; nem por isso, definitivamente acabada. A antropologia moderna pede outras dimensões em linha de natureza, origem, história, existência, sociedade. Nelas o homem aparece como dialética de grandeza e de miséria, criado para o infinito de Deus, mas carregando em si a pobreza do nada original; dividido, por isso, na bipolaridade de tender efetivamente para Deus e de tender também para a corrupção²⁵.

    Neste caso, podemos assim afirmar que os direitos fundamentais do ser humano derivam o fato de ser animal racional, isto é, por pertencer a uma natureza imutável. É nesta natureza imutável, à qual o ser humano pertence, a fonte de seus direitos, e não o indivíduo a quem pertence uma natureza²⁶.

    Nessa concepção do ser humano que pertence a uma natureza, concebida como expressão estática de uma ordem universal definida, podemos colher também a explicação daquele fenômeno da escravidão que condicionou por séculos o conceito de direitos humanos e dignidade humana, porque impediu ou retardou de perceber em sua extensão universal, o conceito de pessoa humana e sua dignidade, mas seguramente já era preâmbulos de certas prerrogativas. No mundo helênico, por exemplo, livres eram apenas os cidadãos que participavam da formação da vontade soberana da Pólis²⁷.

    No estado renascentista²⁸, livres eram os cidadãos a quem o monarca garantia direitos definitivos. Isso porque a lei primordial da natureza é a agressividade no regime da concorrência. O mais forte domina o mais fraco. De modo que o conceito de liberdade tornou-se essencialmente o privilégio de uma elite constituída dos mais fortes. Os mais fracos passam a servir os mais fortes, chegando, às vezes, a serem considerados seres inferiores. As injustiças e as tensões que tecem a história da humanidade são devidas a esta divisão dos homens: os poderosos e livres, de uma parte; os fracos e escravos, de outra²⁹.

    A partir do renascimento a cosmovisão mítico-religiosa antiga de uma natureza com a ordem estabelecida cede lugar a uma cosmovisão moderna que elabora o antropocentrismo, onde o ser humano constitui o centro do universo, da filosofia, da ordem social. Como comenta Vaz:

    Na medida em que os fios da história se entrelaçam numa complexidade sempre maior e em que a civilização ocidental amplia suas bases materiais e efetivamente se universaliza, as concepções do homem [...] tornam-se também mais complexas e passam e enfrentar o difícil problema da chamada pluralidade antropológica, quando a unidade cultural (como na Grécia) ou religiosa (como na Idade Média) da imagem do homem é desfeita pela descoberta da imensa diversidade das culturas e dos tipos humanos e pelo próprio avançar das ciências do homem que submetem o seu objeto a uma análise minuciosa e, aparentemente, desagregadora da unidade³⁰.

    A modernidade, descobrindo a evolução e, pois, a maleabilidade da própria natureza, converge a sua atenção sobre o ser humano concreto, histórico e social, que pertence a uma natureza e a realiza, que não existe em si, mas apenas enquanto indivíduos³¹. Compreende, assim, que os direitos humanos não se fundam mais apenas no absoluto, mas também no homem, artífice de sua história, senhor da natureza e responsável pela comunidade onde vive e pela ordem internacional³².

    A formulação atual dos Direitos Humanos tem como base este antropocentrismo. Por isso não podemos considerá-los simples continuidade do passado e nem uma negação, mas uma dilatação, uma síntese nova que leva em conta valores modernos, que os antigos ignoravam e que afetam a própria inteligibilidade do ser humano. Contribui grandemente para esta nova cosmovisão antropocêntrica e respectiva formulação dos Direitos Humanos, o Cristianismo com o Teocentrismo que se historiciza como Cristocentrismo e este como antropocentrismo³³.

    Os Estados Unidos da América procuraram assegurar aos seus cidadãos a liberdade da palavra, de reunião, de profissão e de culto – o que se explica perfeitamente à luz da experiência pela qual os imigrantes ingleses haviam passado especialmente no tocante às dissensões religiosas na metrópole. A França, por sua vez, tonava-se na Europa porta-estandarte da liberté, égalité e fraternité³⁴. A República Americana foi influenciada pelo pensamento liberal de John Locke (1632-1704) e os Enciclopedistas e, sobretudo J. J. Rousseau (1712-1778) que pesaram na elaboração do pensamento liberal francês³⁵.

    Contudo, a mais ambiciosa tentativa de codificação até hoje empreendida é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, das Nações Unidas. Com ela os Direitos Humanos encontram uma porta de acesso ao Direito Internacional, que assim evolui para um direito humanista universal, passando de uma declaração geral para contratos de direito internacional de ordem compulsória. Através da ratificação em cada país obteriam validade legal, mas foi preciso ainda um tempo até que o número necessário de ratificações existisse e os dois pactos sobre estes direitos pudessem entrar em vigor, daí a necessidade da criação do Comitê dos Direitos Humanos³⁶.

    Como afirma Comparado, a unidade essencial do sistema de Direitos Humanos foi afirmada pela Resolução n. 32/120 da Assembleia Geral da ONU, em 1968, e confirmada pela Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, na Declaração de Viena, com as seguintes palavras:

    Todos os direitos humanos são universais, individuais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de modo justo e equitativo, com o mesmo fundamento e a mesma ênfase. Levando em conta a importância das particularidades nacionais e regionais, bom como os diferentes elementos de base históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais³⁷.

    O pacto sobre direitos políticos e civis, parte do princípio de que os países participantes, através de medidas legislativas, encarregam-se da imediata observância dos respectivos direitos. A concretização dos direitos econômicos, sociais e culturais, pelo contrário, funciona como processo paulatino: os países do contrato se comprometem a fazer todo o possível para que, pouco a pouco, a consecução total destes direitos seja alcançada, como vemos escrito na parte II, artigo 2º do Pacto Internacional sobre direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966:

    Cada Estado Membro no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas³⁸.

    Apesar dos progressos feitos no sentido de tornar os Direitos Humanos obrigatórios para todos os países, ainda existe uma longa estrada a ser percorrida, apesar de que, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU constitui um marco importante na conscientização universal dos direitos, e ao mesmo tempo, um texto diversamente respeitado, que permanece, no conjunto, expressão de um ideal, mais do que reflexo da situação vigente.

    1.1. OS DIREITOS HUMANOS E SUA CONCEITUAÇÃO

    O conceito dos Direitos Humanos apresenta-se num mundo dividido. Na maior parte do mundo, é comum classifiar ações como: Desenvolvidas³⁹, Emergentes⁴⁰ e Subdesenvolvidas⁴¹. Em cada uma destas nações os Direitos Humanos apresentam conceitos diferentes.

    Estas diversas concepções dos Direitos Humanos compreendidos em profundidade, não se excluem, mas dentro da situação concreta da política mundial, elas se tornam um instrumento tipicamente ideológico, uma sublimação vaga acobertando interesses concretos dos sistemas políticos dominantes e legitimando seus interesses.

    A questão da conceituação dos Direitos Humanos não traduz apenas lutas entre ideologias, mas também desafios, confrontos entre ideias e condicionamentos materiais. Por exemplo, a antiguidade conheceu a tolerância na medida em que a religião praticada era politeísta. As grandes religiões chamadas do Livro (Judaísmo, Cristianismo, Islã), pelo contrário, nasceram e se mantiveram profundamente intolerantes por respeito ao absoluto de sua Revelação.

    Os limites da intolerância vieram das necessidades práticas mais do que das convicções: o lento desabrochar do pluralismo, a força dos outros, a pouca satisfação obtida através das guerras de religião, o desenvolver de preocupações econômicas estranhas à ideologia religiosa e não menos operacionais para o domínio político.

    Conforme seja a interpretação e assimilação do conceito de Direitos Humanos, preliminarmente o mais importante é saber que os Direitos Humanos são algo que dizem respeito a todos os seres humanos em todas as épocas, porque pertencem a ele simplesmente porque é pessoa humana. A esse respeito, Maritain assim se expressa:

    A pessoa humana tem direitos pelo fato de ser uma pessoa, um todo senhor de si próprio e de seus atos; por consequência não é somente um meio, mas um fim, um fim que deve ser tratado como tal. A dignidade da pessoa humana seria uma expressão vã se não significasse que, segundo a lei natural, a pessoa humana tem o direito de ser respeitada, é o sujeito de direitos, possui direitos. Há coisas que pertencem de direito ao homem, simplesmente porque é homem⁴².

    Para Comparato direitos humanos ou direitos do homem é um aparente pleonasmo, pois se trata, afinal, de algo que é inerente à própria condição humana, sem ligação com particularidades determinadas de indivíduos ou grupos⁴³.

    1.2. A DUDH DE 1948

    Inicialmente, vale a pena recordar que as referências no texto das mais antigas declarações de direitos americanas e francesas permitem deduzir que la Libertè, l’Egalité et la Fraternité constituem juntos a pedra fundamental dos direitos humanos. Como afirma COMPARATO: «A Declaração Universal dos Direitos Humanos abre-se com a proclamação desses três princípios axiológicos fundamentais em matéria de direitos humanos»⁴⁴.

    Essa tríade deve ser sempre levada em consideração em sua condicionalidade e correlação mútua; cada um dos direitos humanos deve ser exposto sempre em relação a todos os três princípios referendados. Esta regra hermenêutica pode ser usada como crítica todas as vezes que um dos pontos básicos na ideologia dos direitos humanos for salientado unilateralmente. Isso não quer dizer que os indivíduos de mundos diversos não possam e não devam colocar as prioridades e sustentá-las, defendendo-as e levando-as avante, sobretudo no caso em que a pessoa humana esteja ameaçada ou oprimida.

    Estudar a Declaração de 1948 não consiste em se transformar em jurista internacional, mas em mensurar a força e os limites de uma ferramenta à qual milhões de seres referem-se hoje. Os redatores deste documento que acabavam de viver a maior carnificina da história partiam desta afirmação: «Considerando que desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade»⁴⁵. Comenta Comparato:

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos, como se percebe da leitura de seu preâmbulo, foi redigida sob o impacto das atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial, e cuja revelação só começou a ser feita – e de forma muito parcial, ou seja, com omissão de tudo o que se referia a União Soviética e de vários abusos cometidos pelas potências ocidentais – após o encerramento das hostilidades⁴⁶.

    Não se pode separar este texto dos milhões de mortos, da exterminação racial e do uso da tortura. A ameaça da mortandade gerou um sobressalto que não foi negado por nenhum país desde a proclamação. Permanece a ameaça, mas também o medo que isto recomece. O clima da guerra fria reinava em 1948 e foi preciso que este projeto fosse conduzido por dinamismo poderoso para que ele nascesse. Esta força pedia, sem dúvida, a esperança de poder reconstruir conjuntamente um universo onde o massacre não seria mais possível.

    Os redatores de 1948 acreditavam em um evento de um mundo onde os seres humanos seriam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria. Eles proclamavam sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres, e declaravam-se decididos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida em uma liberdade maior. Não se pode deixar adormecer pela monotonia aparente destes discursos, pois eles foram e ainda são a esperança de muitos seres humanos.

    A Declaração dos Direitos Humanos faz uma proposta surpreendente, a proclamação de fé nos direitos fundamentais da pessoa quando diz: «Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem [...]»⁴⁷. A utilização da palavra fé pode assustar, todavia ela é inevitável. A fé não é o resultado de um raciocínio lógico, de uma demonstração científica. Ela é aposta, salto, utopia. Ela permite, em todo caso, não se colocar forçosamente de acordo sobre uma motivação racional idêntica para todos.

    É suficiente proclamar sua fé. Assim fizeram as nações, porta-vozes de todos aqueles que, mesmo diante dos restos de Hiroshima e Nagasaki⁴⁸, dos montes de cadáveres de Mauthausen⁴⁹, tiveram fé no homem. Sem se contentar com uma proclamação, lançaram um apelo à ação. Assim proclamara a Assembleia Geral:

    A presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações e como o objetivo de cada indivíduo e cada órgão da sociedade, que, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros quanto entre os povos dos territórios sob a sua jurisdição⁵⁰.

    Pela leitura, o texto da Declaração aparece como o resultado de um compromisso. Por exemplo, como conciliar duas abordagens totalmente diferentes da liberdade? Ela é a essência do homem para alguns. É suficiente então declará-la e impedir tudo o que possa entravá-la. Para outros indivíduos deve lutar para conquistá-la, devendo o Estado criar condições para esta conquista. Estas duas tendências estão presentes, lado a lado desde o início da Declaração: «Todos os homens nascem livres e iguais»⁵¹. Apesar disto, os textos deixam transparecer uma profunda vontade de chegar à formulação de um ideal para que todos possam ao menos tentar atingir.

    1.2.1. OS DIREITOS DA PESSOA HUMANA NA DUDH

    Os artigos de 3 a 14 da Declaração Universal indicam os direitos da pessoa. Assim vêm descritos:

    Todo homem tem direito à vida, à liberdade e a segurança pessoal; Ninguém será mantido em escravidão ou servidão [...]; Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante; Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei; Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado⁵².

    Os artigos de 15 a 17 tratam do estatuto privado do indivíduo: nacionalidade, casamento. Os artigos concernentes ao direito à propriedade testemunham a contribuição de diferentes ideologias. Por exemplo: «Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros»⁵³.

    O artigo 17 quer satisfazer os partidários do caráter sagrado do direito à propriedade privada e defensores do coletivismo. Os países comunistas rejeitam o direito de greve, bem como as liberdades do comércio e indústria. A Declaração não permaneceu silenciosa sobre esses dois pontos. Ao contrário, ela lembra as liberdades públicas e políticas afirmando que: «Todo homem tem direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos»⁵⁴. E continua: «A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegura a liberdade de voto»⁵⁵.

    Em seguida, estão enunciados certos direitos sociais e econômicos: «Todo homem tem direito ao trabalho»; «Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e à sua família, saúde e bem-estar [...]; Todo homem tem direito à educação»⁵⁶.

    Lembrando-se dos direitos da pessoa, a Declaração sublinha a sua dimensão social: «Todo homem tem deveres para com a comunidade na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível»⁵⁷. Sua última afirmação quer proteger contra o totalitarismo: «Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas»⁵⁸.

    O sistema dos direitos humanos deve ser tomado como um todo. Não se pode pretender respeitar esse texto cumprindo apenas uma de suas partes. Assim, não se pode suprimir toda expressão democrática (artigo 21) sob pretexto de conduzir a um programa econômico.

    Já se passaram 65 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. As 192 nações presentes à Organização das Nações Unidas aceitam assinar pactos, recomendações, convenções que fazem referência a esse texto. Numerosas nações o adotam entre os princípios gerais e os critérios de seu direito interno. As nações subdesenvolvidas, ou como outrora classificadas como terceiro mundo, largamente ausentes quando da votação de 10 de dezembro de 1948, passaram a manifestar seu interesse por este documento.

    Tais nações anteriormente trabalharam para completar o catálogo dos direitos enunciados insistindo sobre o direito dos povos e sobre as realidades econômicas e culturais da sobrevivência. Hoje elas procuram encontrar em sua própria cultura os valores da pessoa humana proclamados pela Declaração de 1948. Elas querem demonstrar que estes dados não são legados exclusivos dos ocidentais, mas também de suas civilizações.

    1.2.2. A DUDH A PARTIR DE 1948

    Cabe-nos ainda fazer uma breve consideração sobre a Declaração dos Direitos Humanos a partir de 1948, pois o seu panorama nos ajuda a compreender melhor os Direitos Humanos nos dias atuais. Guardemos na memória os discursos, os escritos, os gestos, as atitudes misturadas e contraditórias que permitiram ou que impediram ao ser humano estar de pé. Ignorando este passado de derrotas e de vitórias pode-se medir os esforços concretizados somente depois de 10 de dezembro de 1948. O estudo dos Direitos Humanos não pode se limitar ao de uma técnica entrecortada de receios e de esperanças do coração da humanidade.

    Em que o texto de 1948 se diferencia dos que o precederam? Primeiramente, este texto tem uma pretensão e uma contribuição universal. Se alguns organismos internacionais já haviam nascido, este documento foi, pela primeira vez, uma declaração que afirmava todos os direitos humanos. Por outro lado, esta Declaração não pode ser anexada totalmente nem por uma nem por outra ideologia. Todos os países nela reconhecem um projeto válido para a pessoa. Por que razão? Será o medo, o desejo de sobrevivência, o realismo, a esperança, a crença em uma lei natural, sentimental, racional e cientificamente estabelecida?

    Podemos simplesmente admitir que a resposta não será unânime e que este texto é para todos é como uma garrafa lançada ao mar por homens de boa vontade. É preciso reconhecer que ela representa um farol de esperança para os seres humanos humilhados e maltratados. Em nossa era onde o mundo torna-se cada vez menor pela sequência das descobertas científicas e onde a unidade econômica do planeta se estreita, não obstante as crises, não deve mais ser possível aos governos de Estado imporem leis que desrespeitam e, às vezes até violam os direitos da pessoa e sua dignidade.

    Efetivamente, a Declaração de 1948 criou uma dinâmica de acontecimentos importantes, entre os quais é preciso notar: o desenvolvimento da dimensão internacional dos direitos humanos e o aprofundamento da utilização dessa noção tanto pelos indivíduos quanto pelos grupos. Com isso, recordarmos as palavras de Bento XVI na Assembleia Geral das Nações Unidas: «As Nações Unidas encarnam a aspiração a um grau superior de orientação internacional [...] e, portanto capaz de responder às perguntas da família humana através de regras internacionais vinculantes e mediante estruturas capazes de harmonizar o desenvolvimento quotidiano da vida dos povos»⁵⁹.

    A experiência internacional mostra que é vivendo juntos que os povos chegam a organizar a defesa dos direitos humanos. É em torno desta preocupação que se constrói a unidade. As experiências continentais constituem um grande progresso para a concretização dessa preocupação universal. Convém inserir a Declaração de 1948 na vida concreta das nações. No plano local ainda é necessário acionar os mecanismos próprios de controle em cada sociedade. Tal negociação trará seus frutos se não enfatizar particularismos, mas inscrever-se numa negociação universal, como expressa o Papa Bento XVI: «A Declaração não pode ser aplicada por partes destacadas, segundo tendências ou opções seletivas que simplesmente correm o risco de contradizer a unidade da pessoa humana e, portanto a indivisibilidade dos direitos humanos»⁶⁰.

    Todos os esforços darão início a uma corresponsabilidade real que as nações reconhecem indispensáveis nos momentos de lucidez. Eles formam uma rede na qual muitas pessoas e grupos podem sustentar-se. Colocados na dependência da Carta das Nações Unidas de 1945⁶¹ e da Declaração Universal de 1948 tais esforços nos convidam a realizar a construção internacional dos direitos da pessoa.

    O respeito à Declaração significa um mundo mais justo e que proporciona às mesmas condições para todos. Quanto mais os Direitos Humanos forem divulgados e conhecidos, maior será a sua exigibilidade. O conteúdo da Declaração, porém, vai ganhando maior efeito à medida que vai fazendo sentido na vida das pessoas.

    1.2.3. A POSIÇÃO DA IGREJA DIANTE DA DUDH

    Dentro deste panorama da Declaração dos Direitos Humanos, é oportuno refletir sobre a posição da Igreja Católica frente à mencionada Declaração, uma vez que a preocupação da Igreja no tocante aos direitos humanos, bem como a dignidade humana, acentuou-se em diversos momentos da história da humanidade e tem sido constante ao longo dos séculos.

    Foram duradouros os dramáticos apelos em favor da paz e da reconciliação, feitos pelos Pontífices durante as duas grandes Guerras Mundiais (1914-1918; 1939-1945). Reclamou-se então, com insistência, a necessidade de construção de uma paz com justiça. Para isso foi proposta a criação de uma ordem jurídica internacional, que tivesse como núcleo a defesa e a promoção da dignidade humana. Assim, durante a Segunda Guerra Mundial, o Papa Pio XII desenvolveu um esforço muito significativo no sentido de tocar a consciência das pessoas para a promoção do respeito à dignidade e aos direitos do homem.

    Pio XII pediu em diversas ocasiões que se produzisse uma legislação, de caráter internacional, na qual fossem respeitados os direitos humanos fundamentais. Citamos a seguir uma de suas celebres mensagens radiofônicas onde o Pontífice elenca alguns direitos fundamentais da pessoa:

    Quem deseja que a estrela da paz apareça e se detenha sobre a sociedade, deve por sua parte contribuir para devolver à pessoa humana a dignidade que Deus lhe concedeu desde o princípio; oponha-se à excessiva aglomeração das pessoas, como se fossem massas sem alma; à sua falta de sólidos princípios e de convicções fortes, à sua excessiva abundância de excitações instintivas e sensíveis e à sua volubilidade; favoreça por todos os meios lícitos em todos os campos da vida, aquelas formas sociais que possibilitem e garantam uma plena responsabilidade pessoal, tanto na ordem terrena como na eterna; apoie o respeito à realização prática dos seguintes direitos fundamentais da pessoa: o direito de manter e desenvolver a vida corporal, intelectual e moral, e especialmente o direito a uma formação e educação religiosa; o direito ao culto de Deus no âmbito privado e no público, inclusive a ação caritativa religiosa; o direito, por princípio, ao matrimônio e à realização de seu fim; o direito à sociedade conjugal e doméstica; o direito à livre escolha de seu estado e, consequentemente, do estado sacerdotal e religioso; o direito ao uso dos bens materiais com plena consciência de seus deveres e das limitações sociais⁶².

    Foi nesse clima que teve lugar a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948. A Igreja, fiel à sua missão e trajetória, saudou os esforços que se fizeram no sentido de confeccionar um elenco de direitos das pessoas. Todavia, a preocupação da Igreja centralizou-se mais no enunciado geral, que exigia a proteção dos direitos humanos e a necessidade de que as nações incluíssem nas suas respectivas legislações particulares uma verdadeira proteção jurídica para a pessoa, em vez de preocupar-se com projetos legislativos concretos.

    A Declaração Universal propriamente dita foi valorizada naquilo que representa como espírito e esforço de tutela dos direitos da pessoa. No entanto, diversos dos aspectos dessa Declaração, que a Igreja, com toda a justiça, considerou insuficientes ou incompletos, levaram os Papas a expressarem certo reparo, sem entrar em detalhes. Isso foi mais marcante nos tempos do Papa Pio XII, que havia visto germinar e concretizar-se o esforço visando à formação desse elenco de direitos. Seus apelos no sentido de que se produzisse a legislação foram muitos e bastantes enérgicos, de modo que ele estava bem a par dos problemas que levaram a essa iniciativa.

    Vendo as coisas à luz da situação histórica que serviu de fundo para a preparação da Declaração, pode-se concluir que o Papa não esteve de todo conformado com o resultado final. Ao que parece, considerou-a insuficiente, tanto na forma como no fundo. No entanto, ele jamais se pronunciou contra a Declaração nem fez nenhuma crítica, fato que, por si só, já é bastante significativo. E mais, como já foi dito, saudou com alegria todos os esforços desenvolvidos em favor da proteção da dignidade humana. Foi preciso atingir a segunda metade do século XX e em particular o Papa João XXIII para que a Igreja Católica, colocada diante da dinâmica dos direitos do homem a reconheça e dela participe.

    O Papa João XXIII manteve-se em uma linha semelhante à de Pio XII. Porém, elaborou seu próprio elenco de direitos e deveres do homem, fazendo uma leitura a partir do Evangelho e da tradição viva da Igreja sobre o assunto⁶³. Quanto à Declaração Universal dos Direitos Humanos, pronunciou-se favoravelmente, resgatando o espírito e o esforço nela subjacentes, embora não tendo deixado de assinalar que o documento não era suficiente e que existiam algumas objeções fundadas. Foi isso que ele declarou em sua encíclica Pacem in Terris:

    Um ato de altíssima relevância efetuado pelas Nações Unidas foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em assembleia geral, aos 10 de dezembro de 1948. No preâmbulo desta Declaração proclama-se, como ideal a ser demandado por todos os povos e por todas as nações, o efetivo reconhecimento e salvaguarda daqueles direitos e das respectivas liberdades. Contra alguns pontos particulares da Declaração foram feitas objeções e reservas fundadas. Não há dúvida, porém, que o documento assinala um passo importante no caminho para a organização jurídico-política da comunidade mundial. De fato, na forma mais solene, nele se reconhece a dignidade de pessoa a todos os seres humanos, proclama-se como direito fundamental da pessoa o de mover-se livremente na procura da verdade, na realização do bem moral e da justiça, o direito a uma vida digna, e defendem-se outros direitos conexos com estes. Fazemos, pois, ardentes votos que a Organização das Nações Unidas, nas suas estruturas e meios, se conforme cada vez mais à vastidão e nobreza de suas finalidades, e chegue o dia em que cada ser humano encontre nela uma proteção eficaz dos direitos que promanam imediatamente de sua dignidade de pessoa e que são, por isso mesmo, direitos universais, invioláveis, inalienáveis. Tanto mais que hoje, participando as pessoas cada vez mais ativamente na vida pública das próprias comunidades políticas, denotam um interesse crescente pelas vicissitudes de todos os povos e maior consciência de serem membros vivos de uma comunidade mundial⁶⁴.

    Observa-se bem que o Papa, não se detém para explicar essas objeções. Ele concentra-se mais nos seus valores e no que significa como esforço positivo de defesa da dignidade humana. Sua grande preocupação era no sentido de que esse esforço não se transformasse em letra morta. Por isso insistiu tanto na inclusão da devida proteção na legislação dos países signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

    Depois de João XXIII, o Concílio Vaticano II confirmou a tomada de consciência da Igreja para o esforço dos homens, como observamos na Gaudium et Spes:

    O homem atual está a caminho de um desenvolvimento mais pleno da personalidade e uma maior descoberta e afirmação dos próprios direitos [...]. Por isso, a Igreja, em virtude do Evangelho que lhe foi confiado, proclama os direitos do homem e reconhece e tem em grande apreço o dinamismo do nosso tempo, que por toda a parte promove tais direitos. Este movimento, porém, deve ser penetrado pelo espírito do Evangelho, e defendido de qualquer espécie de falsa autonomia. Pois estamos sujeitos à tentação de julgar que os nossos direitos pessoais só são plenamente assegurados quando nos libertamos de toda a norma da lei divina. Enquanto, por este caminho, a dignidade da pessoa humana, em vez de se salvar, perde-se⁶⁵.

    O Papa Paulo VI manifestar-se-ia mais explícita e entusiasticamente em favor da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não esqueçamos as palavras e os gestos de Paulo VI. Em 1968 ele designou a Declaração Universal de 1948 como «o caminho que não pode ser abandonado se a humanidade quer hoje sinceramente reforçar a paz»⁶⁶. Através de suas viagens a Bombaim em 1964; às Nações Unidas em 1965; à América Latina em 1968, à Organização Internacional do Trabalho em Genebra em 1969, Paulo VI concede seu pleno apoio moral ao ideal comum contido na Declaração Universal como também ao aprofundamento progressivo dos direitos da pessoa que aí estão expressos.

    Em sintonia com Paulo VI, João Paulo II reiterou, em diversas ocasiões, o seu apreço por essa Declaração, que qualificou de «pedra miliária colocada no longo e difícil caminho do gênero humano»⁶⁷. Em sua encíclica programática Redemptor Hominis, destacou o valor que a ela atribui, observando:

    Não é fácil, certamente, comparar épocas e séculos sob este aspecto, uma vez que isso depende também dos critérios históricos que mudam. [...] Este processo terá sido decididamente entravado? Em qualquer hipótese, não se pode deixar de recordar aqui, com apreço e com profunda esperança para o futuro, o esforço magnífico realizado para dar vida à Organização das Nações Unidas, um esforço que tende para definir e estabelecer os objetivos e invioláveis direitos do homem, obrigando-se os Estados-membros reciprocamente a uma observância rigorosa dos mesmos. Este compromisso foi aceito e ratificado por quase todos os Estados do nosso tempo; e isto deveria constituir uma garantia para que os direitos do homem se tornassem em todo o mundo, o princípio fundamental do empenho em prol do bem do mesmo homem. A Igreja não precisa de confirmar quanto este problema está intimamente ligado com a sua missão no mundo contemporâneo. Ao compartilhar a alegria de uma tal conquista com todos os homens de boa vontade, com todos os homens que amam verdadeiramente a justiça e a paz, a Igreja, cônscia de que a «letra» somente pode matar, ao passo que só «o espírito vivifica», deve, conjuntamente com estes homens de boa vontade, de contínuo perguntar se a Declaração dos direitos do homem a aceitação da sua «letra» significam em toda a parte também a realização do seu «espírito»⁶⁸.

    Não obstante o que foi dito, o Papa João Paulo II tem consciência de que uma coisa é o que está no papel, e outra bem diferente o que se aplica nas diversas circunstâncias sociais. Assim expressa-se o Papa:

    Temos infelizmente de reconhecer que se apresenta um abismo cada vez mais entre as significativas Declarações das Nações Unidas e o aumento, às vezes impressionante das violações dos direitos humanos em todos os núcleos da sociedade e do mundo. O que só pode entristecer-nos e deixar-nos insatisfeitos, ao vermos como decorrem as coisas⁶⁹.

    Por isso, Sua Santidade exorta a viver o espírito dessa Declaração, para não deixar que se transforme em letra morta, como muitas vezes acontece.

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos deve ser entendida e valorizada como um esforço válido de devolver ao ser humano o seu centralismo sobre os diversos processos quer sejam chamados de políticos, quer de econômicos. A pessoa jamais poderá ser sacrificada sob nenhum pretexto. Ela é o centro da vida social e tudo está colocado para que ela se desenvolva em plenitude. Tudo o que seja obstáculo a esse crescimento vai diretamente contra o ser humano. Neste sentido, João Paulo II recorda com apreço a contribuição dada pela Organização das Nações Unidas em definir e estabelecer os objetivos invioláveis dos direitos do homem, obrigando-se os Estados-membros reciprocamente a uma rigorosa observância dos mesmos⁷⁰. Assim descreve João Paulo II:

    A Declaração destes direitos, juntamente com a instituição da ONU, não tinham certamente apenas a finalidade de nos apartar das horríveis experiências da última guerra mundial, mas também a finalidade de criar uma base para uma contínua revisão dos programas, dos sistemas e dos regimes, precisamente sob este fundamental ponto de vista, que é o bem do homem — digamos, da pessoa na comunidade — e que, qual fator fundamental do bem comum, deve constituir o critério essencial de todos os programas, sistemas e regimes. Caso contrário, a vida humana, mesmo em tempo de paz, está condenada a vários sofrimentos; e, ao mesmo tempo, junto com tais sofrimentos, desenvolvem-se várias formas de dominação, de totalitarismo, de neocolonialismo e de imperialismo, as quais ameaçam mesmo a convivência entre as nações. Na verdade, é um fato significativo e confirmado por mais de uma vez pelas experiências da história, que a violação dos direitos do homem anda coligada com a violação dos direitos da nação, com a qual o homem está unido por ligames orgânicos, como que com uma família maior⁷¹.

    Ainda sobre a importância da Declaração dos Direitos Humanos, o pensamento do Papa Bento XVI não podia ser diferente dos seus antecessores. Convidado pelo Secretário-geral da Organização das Nações Unidas na Assembleia Geral de 2008, o Pontífice discursou na mesma tribuna de Paulo VI e João Paulo II ressaltando a importância da Declaração para a promoção e defesa dos direitos humanos e a dignidade da pessoa. Assim expressou-se o Pontífice:

    A referência à dignidade humana, que é o fundamento e o objetivo da responsabilidade de proteger, leva-nos ao tema sobre o qual somos convidados a concentrar-nos este ano, no qual se celebra o sexagésimo da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O documento foi o resultado de uma convergência de tradições religiosas e culturais, todas motivadas pelo comum desejo de colocar a pessoa humana no centro das instituições, leis e intervenções da sociedade, e de considerar a pessoa humana essencial para o mundo da cultura, da religião e da ciência. [...] O mérito da Declaração Universal consiste em ter permitido que diferentes culturas, expressões jurídicas e modelos institucionais convivam em volta de um núcleo fundamental de valores e, portanto, de direitos⁷².

    O Pontífice afirmou ainda o empenho necessário na reinterpretação dos fundamentos da Declaração, bem como o comprometimento a sua

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