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Direito Crítico em Defesa da Constituição Cidadã de 1988 e do Estado Democrático e Social de Direito e de Direitos: Comentários à PEC 32/2020 (Reforma Administrativa)
Direito Crítico em Defesa da Constituição Cidadã de 1988 e do Estado Democrático e Social de Direito e de Direitos: Comentários à PEC 32/2020 (Reforma Administrativa)
Direito Crítico em Defesa da Constituição Cidadã de 1988 e do Estado Democrático e Social de Direito e de Direitos: Comentários à PEC 32/2020 (Reforma Administrativa)
E-book455 páginas5 horas

Direito Crítico em Defesa da Constituição Cidadã de 1988 e do Estado Democrático e Social de Direito e de Direitos: Comentários à PEC 32/2020 (Reforma Administrativa)

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Sobre este e-book

Este livro é um livro de coragem: a coragem urgente e necessária para a defesa incondicional da Constituição Federal de 1988 e dos Princípios Constitucionais nela positivados, de modo a preservar a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático e Social de Direito, impedindo a sua transformação ilegítima em um Estado Neoliberal, que privatiza os serviços públicos sociais; promove a precarização dos contratos de trabalho; retira direitos sociais fundamentais da maioria dos cidadãos; torna a previdência social um castigo para quem dela precise, particularmente para os aposentados; altera o Princípio da Soberania do Interesse Público, transformando-o em Princípio da Soberania do Interesse Privado; promove um ataque ao Estado brasileiro, sujeitando toda a Administração Pública aos interesses do mercado, prestigiando o aparelhamento político da máquina pública, inclusive a sua militarização; além de criar as condições sociais, econômicas e psicológicas de perda da esperança.
Nesse sentido, este livro pretende ser provocativo, não no sentido de afirmar verdades absolutas, mas de conclamar todos nós a um momento de reflexão e discussão sobre os nossos direitos de cidadania e sobre os limites dos poderes do governante a nos governar.
Este livro traz uma crítica profunda à Proposta de Reforma Administrativa, hoje em discussão no Congresso Nacional, por entendê-la nociva aos interesses públicos da Nação, e por considerá-la um retrocesso inadmissível ao nosso modelo de organização do Estado brasileiro.
Este livro não se esgota nele mesmo, mas abre possibilidades para um debate honesto, para um presente e um futuro melhores, com dignidade, igualdade, fraternidade e justiça social, em um ambiente comunitário de tolerância e paz social, sob o manto da ordem constitucional cidadã, estável e segura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de mai. de 2021
ISBN9786559566068
Direito Crítico em Defesa da Constituição Cidadã de 1988 e do Estado Democrático e Social de Direito e de Direitos: Comentários à PEC 32/2020 (Reforma Administrativa)

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    Direito Crítico em Defesa da Constituição Cidadã de 1988 e do Estado Democrático e Social de Direito e de Direitos - Wladimir Tadeu Baptista Soares

    SUS.

    I O SUBFINANCIAMENTO DO SUS PARA ALÉM DO CAPITAL: RACISMO, APOROFOBIA E MISTANÁSIA

    Wladimir Tadeu Baptista Soares

    Simone Brilhante de Mattos

    Mariana Sanguedo Baptista

    Previsto no artigo 198, o SUS (Sistema Único de Saúde) pode ser considerado a maior conquista social do povo brasileiro na Constituição Federal de 1988 (CF/88). De caráter democrático e inclusivo, o SUS tem como diretrizes e princípios a descentralização, com direção única em cada esfera de governo; hierarquização; regionalização; a integralidade do atendimento; o controle social; a igualdade nas ações e serviços de saúde; a universalidade no acesso; a equidade e o financiamento público. Mais do que isso, o seu desenho constitucional indica ser o SUS um elemento estrutural do próprio Estado brasileiro, constituindo-se em um verdadeiro direito fundamental de natureza social e, consequentemente, cláusula pétrea constitucional. O seu caráter democrático pretende afirmar o livre acesso à toda a população, revelando o seu compromisso emancipatório e elemento essencial para o desenvolvimento nacional, sob um viés civilizatório. O seu caráter inclusivo afasta todas as formas de preconceito ou discriminação, funcionando como um sistema de portas abertas, livre de barreiras burocráticas de qualquer natureza.

    Constitucionalmente considerado como de relevância pública – artigo 197 c/c artigo 198 da CF/88 -, a sua gestão deve ser, obrigatoriamente, pública e estatal, não se admitindo a sua terceirização à entidades privadas, tais como as Organizações Sociais (OS), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e Organizações Não Governamentais (ONG), conforme estranhamente autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pois isso leva à precarização da sua gestão - que deixa de ser única e passa a ser fragmentada e privada -, além de afastar a responsabilidade da autoridade sanitária pela gestão do SUS, contribuindo para a ineficiência de todo o sistema, estabelecendo critérios de contratação de pessoal que não obedecem ao Princípio Constitucional do Concurso Público, criando condições favoráveis a um prejuízo na qualidade das ações e serviços de saúde ofertados à população.

    A hierarquização do sistema importa reconhecer que a assistência em saúde se estrutura em diversos níveis: assistência primária (Unidades Básicas de Saúde/Postos de Saúde); assistência secundária (Policlínicas de Especialidades); assistência terciária geral (Hospitais assistenciais gerais); assistência terciária especial (Hospitais assistenciais especializados); assistência em nível universitário (Hospitais Universitários); assistência em nível especial realizada por Institutos de Pesquisa (exemplo: INCA – Instituto Nacional do Câncer) e assistência multiprofissional nas Urgências e Emergências, de modo a integrar todo o sistema.

    A descentralização significa que o SUS é um sistema organizado em todas as esferas da Federação (governo federal, governos estaduais, governo distrital e governos municipais), exigindo que um único gestor responda por toda a rede assistencial na sua área de abrangência, conduzindo a negociação com os prestadores e assumindo a responsabilidade pelas políticas de saúde (ASENSI, 2015, p. 63).

    A regionalização implica valorizar e reconhecer que cada lugar apresenta suas carências, crenças, costumes, hábitos, culturas, valores e especificidades demográficas e socioeconômicas que devem ser levados em conta no momento da formulação das políticas públicas de saúde.

    A integralidade da assistência inclui também a assistência farmacológica, odontológica e nutricional, além de incluir todas as especialidades das áreas da saúde, não se admitindo uma assistência parcial ou incompleta, que coloque em risco a vida daquela pessoa que procura o SUS para tratamento de sua doença ou enfermidade. Este princípio tem por fundamento a dignidade da pessoa humana, compreendendo a saúde como um direito de todos e um dever do Estado.

    O controle social diz respeito à participação popular na elaboração das políticas públicas de saúde, bem como à fiscalização feita pela comunidade da execução dessas políticas. Ou seja, trata-se do controle da população quanto às ações do Estado na área da saúde.

    A questão da igualdade e da equidade nas ações e serviços de saúde significa que o Estado brasileiro deve avançar no sentido de criar as condições necessárias para que não haja desigualdades regionais quanto a assistência em saúde de toda a população, de modo a possibilitar que todas as regiões do país estejam adequadamente capacitadas para a resolução de todos os problemas, independentemente do seu grau de complexidade, estabelecendo-se um mínimo assistencial local obrigatório para todos os municípios.

    A universalidade no acesso revela a extensão da capilaridade e abrangência de todo o sistema, afirmando que a ninguém, seja nacional ou estrangeiro, pode ser negada a assistência em saúde; devendo ser considerada inconstitucional qualquer Portaria, Decreto ou Instrução Normativa que procure criar obstáculos ao livre acesso ao SUS.

    Quanto ao seu financiamento público, isso significa dizer que o SUS se alinha a um Estado Social, que reconhece a saúde como um direito público, subjetivo e de cidadania, não se admitindo a sua mercantilização de qualquer espécie; financiamento este dependente da arrecadação tributária e a correta e justa definição orçamentária. Todavia, o SUS sofre, historicamente, um processo de subfinanciamento crônico, o que tem se configurado como um impeditivo para sua universalização prática e melhorias de qualidade (BRANDI; SILVA, 2019, p. 251). Este subfinanciamento pode ser comprovado ao observarmos o gráfico abaixo referente ao orçamento federal executado em 2019, ao revelar que somente 4,21% foram destinados a gastos com saúde, enquanto 38,27% foram destinados a gastos com juros e amortizações da dívida, deixando claro, assim, que investir em saúde pública não é uma prioridade governamental, de modo que, na elaboração do orçamento público, a prioridade não tem sido atender as demandas da ordem social, mas sim beneficiar os donos do capital, o que em nada contribui para a redução de nossas desigualdades sociais.

    Embora o Brasil esteja entre as doze maiores economias do mundo, sendo país membro do G-20, a sua distribuição da riqueza é extremamente injusta, o que faz dele não um país pobre, mas sim um país extremamente desigual.

    Em 2018, nos 38 países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) - organização à qual o Brasil solicitou ingresso -, a média de gastos com saúde por habitante foi de quase U$ 4.000,00 (quatro mil dólares), sendo que 76% desse valor são de gastos públicos Nesse mesmo ano, o Brasil gastou U$ 1.282, 00 (um mil duzentos e oitenta e dois dólares) com saúde por habitante, sendo que deste total apenas U$ 551, 00 (quinhentos e cinquenta e um dólares), ou seja, menos da metade, foram gastos públicos. O restante se refere a despesas privadas como seguros de saúde ou pagamento direto de consultas e exames (OCDE, 2018). Naturalmente, esse subfinanciamento não se explica somente com argumentos econômicos, já que o Brasil tem potencial econômico para melhor financiar o SUS. Se não o faz, é por entender o SUS como uma política pública secundária, negando a sua prioridade para a população brasileira. Desse modo, o SUS tem sido, historicamente, uma política de governo, e não uma política de Estado conforme previsto no Texto Constitucional.

    Sendo assim, talvez haja também componentes morais e sociais, além dos fatores econômicos em si, que possam explicar as escolhas feitas no momento da elaboração do orçamento público destinado ao SUS. E é isto que pretendemos discutir neste artigo.

    1 RACISMO

    O artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988 (CRFB/88) estabelece como um dos objetivos da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Do mesmo modo, o artigo 5º da CRFB/88 afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Estas normas constitucionais dizem respeito à questão da igualdade, assim considerada por André de Carvalho Ramos: A igualdade consiste em um atributo de comparação do tratamento dado a todos os seres humanos, visando assegurar uma vida digna a todos, sem privilégios odiosos (RAMOS, 2020, p. 643). Este mesmo autor acrescenta que "o direito à igualdade implica dever de promoção da igualdade, o que traz como consequência um dever de inclusão, não se aceitando a continuidade de situações fáticas desiguais" (RAMOS, 2020, p. 647).

    Segundo Luís Roberto Barroso,

    Ao longo da história republicana brasileira, desenvolveram-se três posições básicas em relação à questão racial. A primeira delas, influenciada por teorias raciais supostamente científicas vindas da Europa, afirmava existir hierarquia biológica entre as raças humanas. Parte das nossas elites entendia não ser possível um projeto de progresso e modernidade com uma população mestiça. [...] A segunda posição sustenta que somos uma sociedade amplamente miscigenada, na qual ninguém é diferenciado só pelo fato de ser negro. Seus adeptos reconhecem desequilíbrios no acesso à riqueza e às oportunidades, mas seriam de natureza econômica e social, não racial. [...] A terceira posição é a que supera o discurso do humanismo racial brasileiro – crença romântica e irreal de que transcendemos a questão racial – para reconhecer que, para além dos aspectos econômicos e sociais, existem discriminações em razão da cor da pele e outros traços físicos. Pessoas negras e pardas sofrem com a visão depreciativa de muitos na sociedade, influenciada por percepções que remontam à escravidão, à exclusão social e a estereótipos diversos. Também a papeis específicos na estrutura social (BARROSO, 2020, p. 176-177).

    O racismo é definido como crime na Lei nº 7.716/1989 (Lei Caó) – que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor -, sendo que o artigo 5º, inciso XVII, da Constituição Federal de 1988 o afirma como um crime inafiançável e imprescritível. O crime de racismo é caracterizado por uma conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade, e independe de representação da vítima. Segundo Francisco Bethencourt, o conceito de racismo envolve o preconceito em relação à ascendência étnica combinado com ação discriminatória, sendo que, ao longo da história, o racismo na forma de preconceito étnico associado a ações discriminatórias foi motivado por projetos políticos (BETHENCOURT, 2018, p. 21-22). Este mesmo autor leciona que

    Os termos racista e racismo foram criados recentemente, em finais do século XIX, início do século XX, para designar aqueles que promoviam a teoria racial combinada com a hierarquia das raças. A divisão da humanidade em grupos de descendência que supostamente partilhariam os mesmos traços físicos e mentais foi reduzida para se enquadrar em contextos políticos específicos, com tais grupos dispostos numa relação de superioridade ou de inferioridade. Nas décadas de 1920 e 1930, os termos racista e racismo assumiram o sentido de hostilidade contra grupos raciais" (BETHENCOURT, 2018, p. 28).

    A injúria racial está definida como crime no artigo 140, § 3º, do Código Penal, nos seguintes termos: injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. Trata-se da ofensa à honra de uma pessoa, usando, para isso, elementos como raça, cor, etnia ou religião, e depende de representação da vítima. Do ponto de vista legal, temos, ainda, a Lei nº 12.288/2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial – destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica (art. 1º). O parágrafo 1º do art. 1º desta lei traz alguns conceitos que consideramos oportuno transcrever. Assim, para efeito deste Estatuto, considera-se população negra o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga; discriminação racial ou étnico-racial é toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada; desigualdade racial é definida como toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica.

    Ainda com relação ao Estatuto da Igualdade Racial, os seus artigos 2º e 4º, III, estabelecem que é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais; além de afirmar que a participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, dentre outras ações, por meio de modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica.

    Quanto ao direito à saúde, os arts. 6º, 7º e 8º do Estatuto da Igualdade Racial definem que o direito à saúde da população negra será garantido pelo poder público mediante políticas universais, sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e de outros agravos; o acesso universal e igualitário ao SUS para promoção, proteção e recuperação da saúde da população negra será de responsabilidade dos órgãos e instituições públicas federais, estaduais, distritais e municipais, da administração direta e indireta; o conjunto de ações de saúde voltadas à população negra constitui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, organizada, dentre outras, de acordo com as seguintes diretrizes: ampliação e fortalecimento da participação de lideranças dos movimentos sociais em defesa da saúde da população negra nas instâncias de participação e controle social do SUS; constitui objetivo da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, dentre outros, a promoção da saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnicas e o combate à discriminação nas instituições e serviços do SUS.

    Segundo Silvio Luiz de Almeida, a noção de raça como referência a distintas categorias de seres humanos é um fenômeno da modernidade que remonta aos meados do século XVI (ALMEIDA, 2020, p. 24). Este mesmo autor ensina que

    [...] Por sua conformação histórica, a raça opera a partir de dois registros básicos que se entrecruzam e complementam: 1 - como característica biológica, em que a identidade racial será atribuída por algum traço físico, como a cor da pele, por exemplo; 2 – como característica étnico-cultural, em que a identidade será associada à origem geográfica, à religião, à língua ou outros costumes, a uma certa forma de existir" (ALMEIDA, 2020, p. 30-31).

    A Lei nº 8.242/1990 regulamenta a participação social no SUS, estabelecendo, dentre outras coisas, que o SUS contará, em cada esfera de governo, sem prejuízo das funções do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias colegiadas: a Conferência de Saúde e o Conselho de Saúde. O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, é um órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atuando na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo. A Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos com a representação dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, por esta ou pelo Conselho de Saúde. A representação dos usuários nos Conselhos de Saúde e Conferências será paritária em relação ao conjunto dos demais segmentos.

    A questão a ser trazida para o debate é com relação à representatividade da população negra nessas instâncias colegiadas do SUS, pois a lei não aborda esse tema. Do mesmo modo, questionar a falta de representatividade da população negra como agente político no Ministério da Saúde e nas inúmeras Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, bem como na ocupação de cargos públicos de diretoria e gerência. Importante salientar que 75% da população brasileira é dependente 100% do SUS para a sua assistência em saúde, e que 80% da população que só tem o SUS como plano de saúde é negra (PNS, 2015).

    Sendo assim, a supremacia branca no controle institucional é realmente um problema, na medida em que a ausência de pessoas não brancas em espaços de poder e prestígio é um sintoma de uma sociedade desigual e, particularmente, racista (ALMEIDA, 2020, p. 49). Nesse sentido, importa assinalar os conceitos de racismo estrutural e racismo institucional. Desse modo, segundo Silvio Luiz de Almeida, as instituições moldam o comportamento humano, tanto do ponto de vista das decisões e do cálculo racional, como dos sentimentos e preferências, de modo que os conflitos raciais também são parte das instituições (ALMEIDA, 2020, p. 39). Portanto,

    A desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos (ALMEIDA, 2020, p. 39-40).

    Citando Fredrickson, Francisco Bethencourt distingue o racismo informal, praticado pelos grupos sociais na vida cotidiana, do racismo institucional, patrocinado pelo Estado e assumindo a forma de política oficial (BETHENCOURT, 2018, p. 25).

    Adilson Moreira ensina que

    O conceito de racismo institucional designa práticas institucionais que podem ou não levar necessariamente a raça em consideração, mas que mesmo assim afetam certos grupos raciais de forma negativa. [...] Atos praticados por representantes de instituições públicas e privadas contra minorias raciais que prejudicam o status social dos membros desses grupos expressam o racismo institucional (MOREIRA, 2019, p. 49).

    Quanto ao racismo estrutural, importante compreender que

    O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo normal com que se constituem as relações ´políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. [...] O racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e jurídica. [...] O racismo, como processo histórico e político, cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática (ALMEIDA, 2020, p. 50).

    Segundo estudo desenvolvido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2008, dentre as causas da desigualdade na saúde, desfavoráveis à população negra, estão o preconceito, a desigualdade econômica, a informalidade no emprego (o que dificulta a contratação de um plano privado de saúde), a pobreza e a constatação de que a rede do SUS está mais presente em regiões de classe média e não nas regiões periféricas, onde a população negra é maior.

    Nesse contexto, importante as lições de Djamila Ribeiro:

    Pessoas brancas não costumam pensar sobre o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre focado na negritude. A ausência ou a baixa incidência de pessoas negras em espaços de poder não costuma causar incômodo ou surpresa em pessoas brancas. Para desnaturalizar isso, todos devem questionar a ausência de pessoas negras em posições de gerência, autores negros em antologias, pensadores negros na bibliografia de cursos universitários, protagonistas negros no audiovisual. E, para além disso, é preciso pensar em ações que mudem essa realidade. Se a população negra é a maioria no país, quase 56%, o que torna o Brasil a maior nação negra fora da África, a ausência de pessoas negras em espaços de poder deveria ser algo chocante. Portanto, uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que entenda os privilégios que acompanham a sua cor. Isso é importante para que privilégios não sejam naturalizados ou considerados apenas esforço próprio (RIBEIRO, 2019, p. 31-32).

    No mesmo sentido, ensina Darcy Ribeiro:

    Ao longo dos séculos, vimos atribuindo o atraso do Brasil e a penúria dos brasileiros a falsas causas naturais e históricas, umas e outras imutáveis. Entre elas, fala-se dos inconvenientes do clima tropical; [...] acusa-se, também, a mestiçagem; [...] também se fala da religião católica como um defeito; [...] há quem se refira à colonização lusitana; [...] existe até quem queira atribuir nosso atraso a uma suposta juvenilidade do povo brasileiro, que ainda estaria na minoridade; [...] dizem, também, que nosso território é pobre; [...] repetem, incansáveis, que nossa sociedade tradicional era muito atrasada. [...] Trata-se, obviamente, do discurso ideológico de nossas elites. Muita gente boa, porém, em sua inocência, o interioriza e repete. De fato, o único fator causal inegável de nosso atraso é o caráter das classes dominantes brasileiras, que se escondem atrás desse discurso. Não há como negar que a culpa do atraso nos cabe é a nós, os ricos, os brancos, os educados, que impusemos, desde sempre, ao Brasil, a hegemonia de uma elite retrógrada, que só atua em seu próprio benefício" (RIBEIRO, 2010, p. 23-24).

    Nesse sentido, recentemente foi publicado o índice de Qualidade das Elites (EQx) - que avalia grupos das esferas social, política e econômica acumuladores de riqueza e poder -, revelando que, entre os 32 países estudados, o Brasil tem a 6ª pior elite do mundo. Esse índice examina o quanto as elites exploram suas nações em relação ao valor que geram para elas. Este índice foi desenvolvido pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto (Portugal) e a Universidade de Saint Gallen (Suíça), em colaboração com uma rede internacional de parceiros e instituições acadêmicas, levando em conta quatro indicadores principais: Poder Econômico, Valor Econômico, Poder Político e Valor Político. Esse índice visa determinar a qualidade das elites de um determinado país e ajuda a prever como as empresas, sociedades e países irão alcançar o sucesso. Esse índice analisa a forma como as ações e as diferentes abordagens na geração de riqueza das elites favorecem ou dificultam o progresso do seu país (www.elitequality.org).

    Para Maria Carolina de Oliveira dos Santos,

    Apesar de polêmicas sobre ter sido ou não uma criação do sistema capitalista, é inegável que o racismo é um mecanismo de dominação da burguesia sobre os trabalhadores, utilizado ferozmente para dividir as classes populares e intensificar a exploração de negras e negros. [...] Ora, ao compreender o marxismo enquanto método de análise da realidade concreta, capaz de identificar que uma das características do sistema capitalista é a apropriação de diversas formas de opressão para potencializar sua capacidade de exploração, não se pode tratar da dimensão racial sem levá-lo em consideração (MANOEL; FAZZIO, 2019, p. 6).

    Importante reconhecer que a população indígena também tem sido vítima de discriminação e preconceito no SUS, sofrendo uma certa rejeição de alguns profissionais que ali trabalham, apesar da Lei do SUS trazer um capítulo específico sobre o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, estabelecendo que os Estados, Municípios e outras instituições governamentais e não-governamentais poderão atuar complementarmente no custeio e execução das ações. Além disso, dever-se-á obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional. O SUS servirá de retaguarda e referência ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, devendo, para isso, ocorrer adaptações na estrutura e organização do SUS nas regiões onde residem as populações indígenas, para propiciar essa integração e o atendimento necessário em todos os níveis, sem discriminações. As populações indígenas devem ter acesso garantido ao SUS, em âmbito local, regional e de centros especializados, de acordo com suas necessidades, compreendendo a atenção primária, secundária e terciária à saúde. As populações indígenas terão direito a participar dos organismos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação das políticas de saúde, tais como o Conselho Nacional de Saúde e os Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, quando for o caso (artigos 19-E a 19-H da Lei nº 8.080/90).

    Todavia, a voz indígena não tem tido força suficiente para transformar o sistema a seu favor. Muito do preconceito e da discriminação sofrida pela população indígena advém de estereótipos mentalmente produzidos e estruturalmente cristalizados, ao conferir ao indígena características negativas, que eles, absolutamente, não têm. Nesse sentido, citando os padres Pedro Casaldáliga e Ricardo Rezende, Ana Helena Tavares assim leciona:

    Pedro sempre fez questão de frisar que o problema dos índios é uma atitude que dá prosseguimento à política de colonização. Hoje, o grande embate é contra o agronegócio, que expõe duas visões de mundo visceralmente distintas. Como explica o padre Ricardo Rezende, que é antropólogo, o índio é visto como preguiçoso, não cidadão, não brasileiro, não gente. Há uma grande dificuldade de compreender que as necessidades indígenas são outras. Eles têm outra relação com a terra. Não dá para pegar o jeito de vida dos não indígenas e achar que os indígenas cabem lá dentro. É outra estrutura de pensamento, de vida. O índio não nasceu para trabalhar nos moldes que o homem branco delimita, quer. Ele trabalha a partir de suas necessidades. Isso não o desqualifica. Ele não nasceu para acumular. A cultura dele é a cultura da vida, da festa. Não é a cultura da dor, do sofrimento, da acumulação. Eles celebram a vida e, se estão com fome, vão caçar, vão pescar. A relação deles com o tempo não é como a nossa, que temos uma cultura do trabalho, uma cultura do proibido. O índio não conhece a palavra proibido, E, para uma sociedade filha de Descartes, filha da razão, movida pela ideia de trabalho, isso pode ser uma complicação (TAVARES, 2020, p. 151-152).

    A língua, com certeza, é um fator a ser considerado na barreira que o sistema impõe ao índio. Todavia, a má vontade em se esforçar para compreender o que o índio quer falar, o que ele está sentindo, aumenta sobremaneira essa barreira. No dia 19/11/2020, a BBC News Brasil noticiou que mesmo após o STF, há cerca de 4 meses, ter determinado que o Estado tomasse providências para conter a pandemia de Covid-19 entre a população indígena, o novo coronavírus continuava a avançar em territórios indígenas. Assim, entre agosto e outubro de 2020, o número de casos confirmados na Terra indígena Yanomami, em Roraima e no Amazonas, saiu de 335 para 1200, um aumento de 250%, segundo relatório produzido pelo Fórum de Lideranças da Terra Indígena Yanomami e pela Rede Pró-Yanomami e Ye’Kwanaum. Os casos já atingiam 23 das 37 regiões da Terra indígena. Um em cada três membros dos povos Yanomami e Ye’Kwanaum no território já foram expostos ao novo coronavírus, de modo que o Estado não fez a necessária barreira sanitária.

    Um estudo produzido em junho/2020 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto Socioambiental classificou os Yanomami como o povo mais vulnerável à pandemia de toda a Amazônia brasileira.

    As lideranças indígenas afirmam que o baixo número de testes feitos pela Secretaria de Saúde indígena implica que na realidade o número de contaminados pode ser muito maior. Dados do Ministério da Saúde mostram que em 11 regiões do Território indígena, menos de 10 testes foram feitos, e que em 3 localidades nenhum exame de Covid-19 foi realizado.

    No meio do ano, o Governo contestou a determinação do STF para que medidas como criação de barreiras sanitárias e ações contra a invasão das Terras indígenas fossem tomadas. Ao mesmo tempo, o Ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, disse que a pandemia estava sob controle.

    A principal ameaça à saúde indígena é a presença de aproximadamente 20.000 garimpeiros em minas ilegais dentro do Território indígena, segundo o estudo da UFMG e o Relatório do Fórum de Lideranças da Terra indígena Yanomami. Outro episódio citado no Relatório foi a distribuição de quase 50.000 comprimidos de cloroquina na Terra indígena Yanomami e na Terra indígena Raposa Serra do Sol para combater a pandemia de Covid-19, contrariando todo o conhecimento científico produzido revelando a ineficácia desse medicamento no tratamento ou na prevenção da infecção pelo novo coronavírus, além dos riscos potenciais impostos à saúde daqueles que fizerem uso desse medicamento, em razão dos seus já bem conhecidos efeitos colaterais adversos.

    Outro grupo que sofre discriminação e preconceito no SUS é a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais), apesar de em 2004 ter sido publicado o Plano Brasil Sem Homofobia. Desse modo, é possível reconhecer avanços nas políticas públicas que dizem respeito aos direitos LGBT, como, por exemplo, o reconhecimento da orientação sexual e identidade de gênero como determinante social da saúde, a possibilidade do uso do nome social e o acesso ao Processo Transexualizador no Sistema único de Saúde. Todavia,

    Embora sejam inegáveis os progressos na formulação de políticas de saúde, em particular as relacionadas com o combate à homofobia e de promoção da cidadania e dos direitos humanos da população LGBT, ao que parece, não se logrou proporcionar a equidade e a igualdade no atendimento a essa população no SUS, constituindo um desencontro aos princípios defendidos pela Reforma Sanitária Brasileira (RSB) (BEZERRA; MORENO; PRADO; SANTOS, 2019, p. 306).

    O que se espera é que a população LGBT tenha lugar de voz no momento da elaboração das políticas públicas referentes ao SUS, de modo a apontar abertamente as suas dificuldades e obstáculos encontrados tanto quanto ao acesso, quanto na assistência em si no interior do sistema público de saúde.

    Outro grupo de pessoas tornado socialmente invisível diz respeito à população carcerária, que, atualmente, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgados recentemente pela revista Época (UOL, A TARDE, 02/05/2020) conta com 860.007 presos, sendo que 43% deles ainda sem julgamento – ou seja, sem uma sentença condenatória - e 95% deles formado por homens. Isso faz do Brasil, em

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