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Coleção Diálogos Jurídicos FDCL: políticas públicas no mundo em transformação
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E-book317 páginas4 horas

Coleção Diálogos Jurídicos FDCL: políticas públicas no mundo em transformação

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Sobre este e-book

Políticas públicas são uma realidade no Brasil. Concordando ou não com as ações que as representam, uma premissa é inegável: as políticas públicas só têm razão de ser por causa dos problemas públicos. E esses não faltam em nosso país: educação, saúde, segurança, mobilidade urbana ? só para citar alguns setores ? representam desafios para todas as instituições no que se refere ao amplo acesso da população. Portanto, discutir políticas públicas no Brasil é mais que uma necessidade. Trata-se de um dever de todos os cidadãos realmente comprometidos com uma sociedade que, erigida sobre bases tão desiguais, vem, durante séculos, mantendo a desigualdade. Não se trata de endossar todas as ações implementadas no país. A pertinência do debate é justamente debruçar-se sobre tais políticas, apontando inconsistências, pontos de fragilidade, possibilidades de melhorias - além, é claro, das conquistas e avanços. Fortalecer, aprimorar e otimizar as políticas públicas deve ser a tônica da discussão. E é o que, afinal, poderá resultar em iniciativas positivas, amparadas pela lei, que operem, de fato, como mecanismos de amplo acesso à cidadania. A obra "Coleção Diálogos Jurídicos FDCL: políticas públicas em um mundo em transformação", organizada pelos professores Sérgio Luiz Milagre Júnior, Waidd Francis de Oliveira, Eduardo Moraes Lameu Silva e Mateus de Moura Ferreira, busca justamente lançar luz sobre as políticas públicas, discutindo-as, em seus diferentes aspectos e possibilidades. Aproveite a leitura. (Cirley José Henriques)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de mar. de 2021
ISBN9786559562268
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    Coleção Diálogos Jurídicos FDCL - Eduardo Moraes Lameu Silva

    Sumário

    A ENCRIPTAÇÃO DOS MOCAMBOS: LUTA E RESISTÊNCIA NOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS

    Mateus de Moura Ferreira²

    Resumo: Na reflexão proposta neste capítulo, nosso objetivo é compreender como a questão quilombola foi construída no país e, mais especificamente, abordar as discussões envolvendo a propriedade das terras quilombolas. Para tanto, vamos nos valer de uma proposição crítica e insurgente: compreendemos que os mocambos, em boa parte da história nacional, mostraram-se como um espaço de invisibilidade e encriptação, quando, na verdade, a sua real condição é de um espaço de resistência e insurgência, perante a ordem opressora do capital.

    Palavras-chave: Encriptação; Quilombos; Território

    Abstract: In the reflection proposed in this chapter, our objective is to understand how the quilombola issue was built in the country and, more specifically, to address the discussions involving the ownership of quilombola lands. To do so, we will use a critical and insurgent proposition: we understand that the mocambos, in a good part of national history, showed themselves as a space of invisibility and encryption, when, in fact, their real condition is that of a space of resistance and insurgency in the face of capital’s oppressive order.

    Keywords: Encryption; Quilombos; Territory

    INTRODUÇÃO

    É possível incluir outros modelos de uso e apropriação nas lutas pela terra ocorridas no Brasil? Existe a possibilidade de uma ampla reforma agrária? Várias formas de expropriação e resistência cultural acompanham as lutas pela terra, ao longo das últimas décadas. Na construção deste texto, expomos a completa transformação da terra em mercadoria, na Modernidade capitalista, e os efeitos dessa mutação no Brasil.

    Ocorre que tal transformação não foi completa; nem toda terra no Brasil é mercadoria. Ainda subsistem parcelas da população alheias aos efeitos da propriedade fundiária e, para elas, prevalece uma concepção profunda e complexa, em que a terra se transmuta num território vinculado a questões identitárias e culturais, como no caso das comunidades remanescentes de quilombo.

    Foram mais de três séculos de luta e resistência, contra uma das práticas mais infames da história humana, a escravidão colonial. No Brasil, essa história se entrelaça com a própria construção e existência do país, em que milhares de homens, mulheres e crianças tiveram seu destino marcado por uma realidade que urge em nos assombrar. A escravidão apoiou-se em inúmeras práticas de segregação e violência, a fim de fazer do homem uma mercadoria. Entretanto, essa página da nossa história é palco de inúmeros atos de resistência à ordem vigente e, entre esses atos, o quilombo destaca-se como um espaço de luta e contestação ao terror escravista.

    Na reflexão proposta neste capítulo, o objetivo é compreender como a questão quilombola foi construída no país e, mais especificamente, abordar as discussões envolvendo a propriedade das terras quilombolas. Para tanto, vamos nos valer de uma proposição crítica e insurgente: compreendemos que os mocambos, em boa parte da história nacional, mostraram-se como um espaço de invisibilidade e encriptação, quando, na verdade, a sua real condição é de um espaço de resistência e insurgência, perante a ordem opressora do capital.

    A análise empreendida neste capítulo busca expor como as lutas em torno da terra e a manutenção de um território são aspectos fundamentais no modo de vida quilombola. Nessa exposição, pode-se perceber uma forma singular de relação do homem e das coletividades com os bens e recursos comuns, presentes no modo de vida das comunidades tradicionais.

    Nessa jornada, alguns riscos devem ser evitados. O Direito, preso à lógica moderna, burguesa e liberal, tende a oferecer, como resposta a certos questionamentos que lhe são apresentados, alternativas insuficientes. O artigo 68, do Ato de Disposições Transitórias da Constituição de 1988, inovou, no sentido de prever a propriedade coletiva da terra ocupada pelos remanescentes de quilombo; uma tentativa de regularização e visibilidade dessas comunidades, historicamente marcadas pela segregação. Entretanto, deve-se alertar para o fato de que os dispositivos jurídicos, abstratos e universais, podem acarretar o reducionismo e a encriptação das dimensões culturais, religiosas e existenciais que o território quilombola possui. Afinal, corre-se o risco de recair na eterna busca pela fórmula jurídica proprietária.

    A discussão proposta neste capítulo visa, então, à melhor compreensão das formas de luta por terra, em especial, o território das comunidades quilombolas. Porém, este não é o nosso único objetivo; almeja-se também a construção de uma abertura epistemológica, que possa nos ajudar a vislumbrar qual é a real dimensão dessas lutas e a relação de uso e apropriação da terra por parte dessas comunidades.

    Partirmos da hipótese de que a histórica invisibilidade dessas comunidades fez, de suas lutas por direitos, um modo particular de reconhecimento, em que os clássicos instrumentos da Ciência Jurídica apresentam-se falhos ou insuficientes.

    No primeiro item do texto, abordamos a formação da noção do quilombo como espaço de resistência à colonialidade. Nosso diálogo inicia-se com a compreensão de tais categorias, a partir de uma matriz historiográfica decolonial. No decorrer da análise textual, levantamos um histórico da escravidão no Brasil e o contexto de surgimento dos quilombos como espaços de resistência à violência do modo de produção escravista.

    No segundo item, pretende-se analisar a invisibilidade dos direitos quilombolas, a partir do fim da escravidão no Brasil. Para tanto, vamos nos valer das noções de encriptação, invisibilidade e ressignificação, para a compreensão dessas comunidades e de suas lutas no período pós-abolição. Posteriormente, vamos realizar uma análise do artigo 68 do Ato de Disposições Transitória da Constituição de 1988 e a tentativa de ressurgimento dos quilombolas para o Direito, ou, o surgimento do Direito para as comunidades quilombolas.

    Nosso objetivo é compreender como comunidades quilombolas colocaram-se, desde a sua origem, como espaço de resistência ao capitalismo. Partimos do pressuposto de que, no seio dessas comunidades, reside uma alternativa real de resistência e superação ao modo capitalista de produção; uma alternativa sistêmica, que passa pela profunda compreensão do território como espaço de realização coletiva.

    1. O QUILOMBO COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA À COLONIALIDADE

    A historiadora Laura de Mello e Souza (1999), na obra Norma e Conflito, aborda a questão quilombola em Minas Gerais, no período colonial. Nesse contexto, no ano de 1769, foi estabelecida uma grande expedição, chefiada por Inácio Correia Pamplona³ e apoiada pelo Governador da Capitania de Minas Gerais, a fim de desbravar os sertões da capitania, especificamente, onde hoje se localiza a região centro-oeste do estado.

    A expedição tinha alguns objetivos pontuais: a busca por novas jazidas de ouro, para suplantar a decrescente produção aurífera do período; a ocupação dos desocupados, que proliferavam nas zonas minerárias e, principalmente, o extermínio dos quilombos que se multiplicavam nos ermos sertões das Gerais, em especial, o lendário quilombo do Ambrósio, alvo de empreitadas anteriores da Coroa.

    Na lógica do terror e repressão, sabemos que, onde há submissão, há resistência. Assim, os quilombos proliferavam na América Portuguesa durante o período colonial e alguns, em especial, foram dignos de uma atenção especial por parte do poder metropolitano. O apoio de particulares, para guerrear e aniquilar comunidades quilombolas, era recompensado pela Coroa, com a concessão de sesmarias aos envolvidos. Assim, caçar quilombolas surgia como possibilidade de obtenção da posse de novas terras/sesmarias:

    Caçar negro fugido, por sua vez, abria o acesso à posse de terras garantindo igualmente a continuidade do trabalho nas fazendas antigas, que acossadas pelas investidas quilombolas, não conseguiam prosperar. Tudo indica, portanto, não ser apenas por cuidado com a ameaça de revolta ou o temor ante a possibilidade de os negros assumirem o comando da sociedade que se batiam os matos atrás de mocambos. Tratava-se da continuidade e a sobrevivência da exploração agrícola nas zonas afastadas, e ainda do acesso mais ou menos livre às terras, abundantes naquela situação de fronteira aberta. (SOUZA, 1999, p.113)

    A expedição de guerra contra o Ambrósio, composta por sertanistas, caçadores de ouro e gente, músicos, escravos e até um capelão⁴, à medida que adentra no sertão, compreende o nível de organização dos temidos mocambos. Suas táticas de guerra são revistas e o medo sobrenatural do quilombola é permutado numa visão mais precisa e pragmática de sua real condição⁵.

    A empreitada chefiada por Inácio Pamplona, nos ermos sertões das Gerais, repletos de índios bravios, quilombolas cruéis e animais ferozes, é o retrato de uma sociedade bárbara, que floresce no Brasil Colônia. A caça aos quilombolas e os benefícios econômicos desse tipo de atividade contrastam com o discurso civilizatório que tais empreendimentos adquiriam. Caçar e aniquilar o Ambrósio, bem como outros quilombos, era a justificativa para se levar civilização à barbárie, mesmo que isso ocorresse da forma mais sangrenta possível.

    O temor de uma insurreição negra na colônia⁶, onde a minoria dominante era branca, é a tópica de uma sociedade que plantou sua gênese nos horrores da escravidão. Por sua vez, o quilombo é a resistência materializada, o risco da insurgência, o possível fim de um regime anacrônico e perverso de dominação cultural, social e econômica.

    Nos mais de três séculos de existência do regime escravocrata no Brasil, imperou a lógica de espoliação e usurpação do trabalho alheio, como modo de operação da empresa moderna. O suor do negro regou as lavras de ouro, os campos de algodão e café, o trabalho doméstico e os canaviais verdejantes que se estendiam pela costa atlântica, até os limites do sertão⁷.

    A escravidão determinou hierarquias sociais e a categorização de classes, gêneros e raças, no intuito permanente de reprodução do discurso hegemônico moderno. Os inúmeros quilombos, mocambos, terras de preto, terras de bolo, que surgiram na vastidão do país, correspondiam a uma tentativa de luta e resistência ao sanguinário regime implantado.

    O fenômeno quilombola é diverso, múltiplo e possuiu um complexo nível de organização e subsistência. Para os fins propostos neste texto, vamos partir da reflexão empreendida por Abdias do Nascimento, a respeito do termo quilombo:

    Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão, existência. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no processo humano e sócio-político de igualitarismo econômico. Os precedentes históricos conhecidos confirmam esta colocação. Como sistema econômico, o quilombismo tem sido a adequação ao meio brasileiro do comunitarismo ou ujamaaísmo da tradição africana. Em tal sistema, as relações de produção diferem basicamente daquelas prevalecentes na economia espoliativa do trabalho chamado capitalismo, fundada na razão do lucro a qualquer custo. Compasso e ritmo do quilombismo se conjugam aos mecanismos operativos, articulando os diversos níveis de uma vida coletiva cuja dialética interação propõe e assegura a realização completa do ser humano. Contra a propriedade privada da terra, dos meios de produção e de outros elementos da natureza, percebe e defende que todos os fatores e elementos básicos são de propriedade e uso coletivo. Em uma sociedade criativa, no seio da qual o trabalho não se define como uma forma de castigo, opressão, exploração, ele é antes visto como forma de libertação humana que o cidadão desfruta como um direito e uma obrigação social. Liberto da exploração e do jugo embrutecedor da produção tecnocapitalista, a desgraça do trabalhador deixará de ser o sustentáculo de uma sociedade burguesa parasitária que se regozija no ócio de seus jogos e futilidades. (NASCIMENTO, 2019, p.290)

    Na passagem supracitada, Abdias do Nascimento faz a instigante provocação de se enxergar o quilombo como um espaço de fraternidade e resistência, comunhão e luta; uso comum da terra e resistência ao capitalismo. Se os quilombos eram uma tentativa dos africanos escravizados de usufruir uma vida digna e livre, o sistema escravista buscou, em toda a história pré-abolição, criminalizar esses espaços. Na sua essência, o quilombo é um foco de resistência física e cultural ao sistema capitalista⁸.

    Mesmo após a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, várias comunidades se constituíram no território nacional, seja através de antigos cativos, que ficaram à mercê do seu próprio destino, ou através de uma série de outras realidades subjacentes. As comunidades negras rurais e urbanas pós-abolição também ingressaram no panteão das formas de resistência contra a ordem vigente⁹.

    Na legislação colonial, os agrupamentos de pretos fugidos eram criminalizados e alvo de repressão estatal, como dispunha o regulamento régio de 1740, do Rei Dom João V, que definia quilombo como toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles.

    Algumas informações importantes devem são extraídas desse enunciado colonial: o elemento numérico, que estabelece um agrupamento de cinco negros, e o fato de que os cativos deveriam estar fugidos, ou seja, aqueles que resistiram à lógica do trabalho escravo e abandonaram os seus proprietários. Além disso, esse agrupamento deveria encontrar-se em locais desabitados, ermos, distantes e escondidos, visão que contribuiu para o imaginário mítico dos quilombos sempre escondidos nos rincões do país, afastados de tudo e todos. Por fim, a menção aos pilões como símbolo da agricultura de subsistência, pois o pilão é um instrumento de processamento de alimentos, ele tem um significado fundamental; o desejo de ali permanecer e fazer morada.

    Na legislação colonial, a identificação dos quilombos compreende apenas a busca por um local para se executar a repressão. Frutos de um grande campo semântico, os quilombos, calhambolas e mocambos foram generalizados, através das ordens legais, como qualquer formação social composta por negros ou sujeitos marginalizados, que buscavam a invisibilidade do Estado.

    O quilombo foi representado no imaginário social de diversas formas, seja como a materialização de um grande estado africano dentro do Brasil (Palmares) ou como pequenos grupos nômades em busca de condições dignas de sobrevivência, grupos extrativistas e coletores ou comunidades negras próximas aos centros urbanos, responsáveis pela produção de certos gêneros alimentícios e com a sua existência tolerada pelas classes dominantes. Em estudo sobre a questão quilombola em Minas Gerais, o historiador Donald Ramos explica:

    Da maneira como se desenvolveu no Brasil, a escravidão funcionou de acordo com um conjunto de imperativos. Ela sobreviveu por causa da combinação entre a sua habilidade para impor aos escravos um conjunto de valores morais e a disponibilidade de um poder coercitivo aterrador para punir transgressões dos limites permitidos de comportamento e pensamento. O sistema então foi um equilíbrio entre o uso de valores e o uso da violência - violência potencial e, mais do que frequente real. A utilização de valores foi largamente afetada pela ação da Igreja católica, através da doutrina e da estrutura institucional da religião, e pela ação do Estado, através de muitos meios de controle entre os quais se destacava a possibilidade de alforria individual do escravo. O quilombo, sem intenção, complementava essa estrutura construída em trono do controle por meio dos valores. (RAMOS, 1996, p.167)

    No contexto escravista, o grande terror dos senhores era a fuga, a perda das suas peças para os mocambos que se multiplicavam no território do país. A fuga de um escravo consistia na diminuição de braços para o trabalho, na diminuição dos lucros e principalmente a perda de uma propriedade. Dessa forma, tornou-se uma figura comum, no território do país, os homens brancos, mulatos e até negros que faziam a captura dos escravos fugidos – os temidos capitães do mato – grandes inimigos dos quilombolas:

    As ações dos quilombolas causavam prejuízos materiais aos proprietários e efeito psicológico sobre os cativos. O ‘mau’ exemplo dos mocambeiros poderia desestruturar a organização das propriedades, aguçando as fugas e as sublevações. O quilombo era um enclave dentro do regime escravista, uma microsociedade alternativa a escravidão, à disposição do trabalhador escravizado. (FIABANI, 2005, p.47)

    Desse modo, na composição do cenário em que se desenvolveu a escravidão no Brasil, havia: homens e mulheres que resistiam à opressão, em troca da expressão de suas identidades; um sistema violento e repressor, que tinha a finalidade de extrair toda a força possível do trabalho desses sujeitos, sob pena de duras sanções e, ainda, a proliferação de espaços de fuga e resistência, espalhados pelo território nacional, onde seria possível, àqueles que resistiam ao sistema, a reconexão com elementos da sua cultura tradicional e o sonho de uma vida digna.

    A empresa colonial valeu-se de relações promíscuas com reinados e comerciantes africanos e europeus, que, em troca de mercadorias e favores baratos, montaram um lucrativo sistema de tráfico de pessoas para as Américas, impulsionando a diáspora negra, formando o Atlântico Negro¹⁰, uma maciça migração forçada, que perdurou por séculos.

    Esses sujeitos, capturados e escravizados, foram destinados às lavouras, garimpos e uma série de outras atividades produtivas da economia colonial, tornando-se a expressão viva de um regime que submetia homens e mulheres a um sistema bárbaro e opressor. O cativeiro dado a esses sujeitos, na construção do Brasil, amparou-se na suposta inferioridade racial que eles possuíam. Por séculos, os defensores da escravidão alegaram que esse seria o caminho natural desses povos¹¹.

    Ao instituir um novo padrão de poder, a escravidão colonial fez, dos recursos naturais e das pessoas, mercadorias a serviço do florescente capitalismo europeu. Na América, esse poder foi responsável por fundir várias formas de identidade, em torno de simplificados rótulos de classificação social. Milhares de etnias, originárias das terras americanas, foram reduzidas a índios/gentios, e as complexas identidades africanas, circunscritas a escravos/negros.

    O padrão de poder que se consolidou na América colonial e configurou toda a modernidade é a ideia de raça, na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. (QUIJANO, 2005, p.107)

    A categoria raça¹², portanto, foi um critério fundamental de classificação e distribuição de populações na modernidade colonial. A partir de tal parâmetro, ocorreu a segmentação em classes inferiores e superiores e a possibilidade de uma distribuição do trabalho com base em critérios racistas. Desse modo, na América, a escravidão foi deliberadamente estabelecida e organizada como mercadoria para produzir mercadorias para o mercado mundial e, desse modo, para servir aos propósitos e necessidades do capitalismo. (QUIJANO, 2005, p.115)

    O sistema de produção capitalista valeu-se da escravidão colonial como um mecanismo de monetarização da Europa e circulação de capital, a partir da classificação social da raça; uma forma de submissão e exploração social. Os efeitos desse sistema na formação do imaginário moderno são tratados por sociólogos contemporâneos, como Aníbal Quijano e Santiago Castro-Gomez, por colonialidade do poder:

    O conceito de colonialidade do poder amplia e corrige o conceito foucoultiano de poder disciplinar, ao mostrar que os dispositivos pan-ópticos erigidos pelo Estado Moderno inscrevem-se numa estrutura mais ampla, de caráter mundial, configurada pela relação original entre centros e periferias devido à expansão europeia. Deste ponto de vista podemos dizer o seguinte: a modernidade é um projeto na medida em que seus dispositivos disciplinares se vinculam a uma dupla governamentalidade jurídica. De um lado, a exercida para dentro pelos estados nacionais, em sua tentativa de criar identidades homogêneas por meio de políticas de subjetivação; por outro lado, a governamentalidade exercida para fora pelas potências hegemônicas do sistema-mundo/colonial, em sua tentativa de assegurar o fluxo de matérias primas da periferia em direção ao centro. Ambos estes processos formam parte de uma única dinâmica estrutural. (CASTRO-GOMEZ, 2005, p.83)

    A resistência consubstanciada nas comunidades quilombolas se deu perante a colonialidade imposta pela Modernidade, um padrão de poder materializado em formas de classificação das populações, através do conceito raça. Nessa conjuntura, o quilombo foi se construindo como sinônimo da resistência e luta por direitos e dignidade para os indivíduos classificados e submetidos à escravidão. Mesmo após o fim do regime escravocrata, sua existência significou um espaço de insurreição aos diversos dispositivos de dominação da colonialidade.

    A colonialidade é o lado oculto do sistema-mundo capitalista moderno. Uma articulação de vários níveis de dominação, em que a raça é uma categoria central. Se a modernidade é conhecida através dos seus discursos legitimadores, como o capitalismo, o colonialismo a violência e a escravidão, é na sua face oculta, a colonialidade, que ela se expande e institui um moderno sistema de exploração. Raça, trabalho e gênero são as linhas mestras da formação do capitalismo moderno, a partir da dominação colonial, como bem explica César Baldi:

    E daí a observância de Quijano no sentido de que o capitalismo não tinha como se tornar hegemônico sem a existência de um trabalho não capitalista, baseado na escravidão, na reciprocidade, na pequena produção industrial. O sistema de escravidão e também de aquilombamento é coetâneo da realidade do sistema capitalista que está se desenvolvendo. (BALDI, 2014a, p.54)

    Na análise do primeiro tópico, vislumbramos a seguinte tese: onde há capitalismo, há resistência. No atual estágio do texto, podemos complementar: onde há escravidão, há resistência. A resistência à escravidão se fez de várias formas: seja através da quebra dos instrumentos de trabalho, o corpo mole", a sabotagem ou por meio das fugas individuais e coletivas, com a formação de comunidades negras – os quilombos.

    As várias formas de resistência ao sistema capitalista-escravagista foram se consolidando ao longo dos séculos, e o quilombo tornou-se um símbolo concreto de resistência ao capitalismo. Com o passar dos

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