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A Dança da Água
A Dança da Água
A Dança da Água
E-book477 páginas8 horas

A Dança da Água

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Sobre este e-book

Do autor vencedor do National Book Award, A Dança da Água é um dos romances mais aclamados de sempre sobre o racismo e a luta pela liberdade.


O jovem Hiram Walker nasceu escravo, numa plantação na Virgínia. Quando a mãe é vendida, Hiram fica sem qualquer memória dela, mas recebe um poder misterioso que lhe salva a vida ao quase afogar-se num rio. Este encontro com a morte acorda em si uma vontade urgente de criar um plano ousado: fugir da única casa que conhece.
Assim começa a viagem inesperada que o leva da grandeza corrupta das plantações na Virgínia a células de guerrilhas no deserto, do caixão do Sul profundo a movimentos perigosamente idealistas do Norte. E, mesmo no meio da guerra entre escravos e esclavagistas, Hiram permanece decidido em resgatar aquela que considera ser a sua verdadeira família e que deixou para trás.
Esta é a história dramática de uma atrocidade infligida a gerações de mulheres, homens e crianças – a separação violenta e caprichosa de famílias e as guerras travadas pelo direito a estarem com quem amam. Escrito por um dos autores mais emocionantes da atualidade, A Dança da Água é um trabalho transcendente que restaura a humanidade daqueles a quem tudo foi tirado.

IdiomaPortuguês
EditoraCultura
Data de lançamento2 de ago. de 2020
ISBN9789898979834
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    Pré-visualização do livro

    A Dança da Água - Ta-Nehisi Coates

    Editor.

    I.

    Coube-me contar a história do escravo.

    A história do mestre nunca precisou de narradores.

    Frederick Douglass

    1

    E eu só a conseguia ver assim, ali, na ponte de pedra, uma dançarina envolta num espetro azul, porque terá sido essa a forma como a levaram quando eu era mais novo, na altura em que a terra da Virgínia era ainda vermelha como tijolo e vermelha com vida, e embora houvesse outras pontes a atravessar o rio Goose, eles haviam-na amarrado e trazido por aquela, por ser a ponte que alimentava o pedágio que se contorcia pelas colinas verdejantes, descendo até ao vale, antes de se dobrar numa direção, apenas, e essa direção era o Sul.

    Evitei sempre aquela ponte, pois estava manchada com as memórias das mães, dos tios e primos que tinham ido para Natchez. Mas, sabendo agora o incrível poder da memória, como ela pode abrir uma porta azul de um mundo para outro, como ela nos pode mover de montanhas para prados, de florestas verdes para campos cobertos de neve, sabendo agora que a memória pode dobrar a terra como pano, e sabendo, também, como eu empurrara a minha memória dela para o «fundo» da minha mente, como a esqueci, mas não a esqueço, sei agora que esta história, esta condução, tinha de começar lá, naquela ponte fantástica entre a terra dos vivos e a terra dos perdidos.

    E ela palmeava juba na ponte, um jarro de barro na cabeça, uma névoa densa levantando-se do rio abaixo, beliscando-lhe os calcanhares despidos, que martelavam a calçada, fazendo o colar de conchas dela tremer. O jarro de barro não se movia; parecia quase uma parte dela, de modo que não importavam os seus joelhos altos, nem os seus mergulhos e flexões, os braços abertos, o jarro permanecia fixo na cabeça como uma coroa. E ao ver esta incrível proeza, eu soube que a mulher que palmeava juba, envolta num espetro azul, era a minha mãe.

    Mais ninguém a viu – nem o Maynard, que estava na parte de trás da nova carruagem Millennium, nem a elegante meretriz que o mantinha arrebatado com as suas artimanhas, e, o mais estranho, nem o cavalo, embora me tivessem dito que os cavalos possuíam um faro para coisas que se desviam de outros mundos e tropeçam no nosso. Não, apenas eu a vi do lugar do motorista da carruagem, e ela estava como eles a haviam descrito, assim como me tinham dito que ela era nos velhos tempos, quando saltava para um círculo feito pela minha gente – tia Emma, Young P, Honas e tio John Sullivan – e eles batiam palmas, batiam no peito, e batiam nos joelhos, incitando-a a acelerar, e ela pisava o chão de terra com força, como se estivesse a esmagar uma coisa rastejante sob os calcanhares, e dobrava os quadris e curvava-se, soltando e girando os joelhos dobrados em comunhão com as mãos, de seguida, o jarro de barro ainda na cabeça. A minha mãe era a melhor dançarina de Lockless, disseram-me, e recordava-me porque ela não me presenteara com nada disso, e lembrava-me, além disso, porque fora com a dança que ela chamara a atenção do meu pai, fazendo-me, assim, nascer. E mais ainda, lembrei-me porque me lembrava de tudo – de tudo, aparentemente, menos dela.

    Era outono, a estação em que as corridas vinham para o Sul. Nessa tarde, Maynard tinha conseguido um improvável puro-sangue, e pensou que este o ajudaria a, finalmente, ganhar a estima do Poder da Virgínia que ele tanto procurava. Mas, enquanto deu a volta à grande praça da cidade, inclinando-se para trás, bem para trás, e sorrindo bastante, os homens da sociedade viraram-lhe as costas e sopraram nos charutos. Não houve saudação. Ele era o que sempre fora – Maynard, o Pateta, Maynard, o Chato, Maynard, o Bobo, a maçã podre que caiu a muitos quilómetros da árvore. Enfureceu-se e fez-me levá-lo à velha casa na periferia da nossa cidade, Starfall, onde havia adquirido uma mulher para uma noite de fantasia, e teve a brilhante ideia de a trazer de volta para a grande casa em Lockless, e, mais fatidicamente, num súbito ataque de vergonha, insistiu em sair clandestinamente da cidade, descendo a Dumb Silk Road, até ela se ligar ao velho pedágio, que nos levou de volta à margem do rio Goose.

    Uma chuva fria e insistente caía enquanto eu conduzia, a água pingava da borda do meu chapéu, formando poças nas calças. Conseguia ouvir o Maynard lá atrás, com todos os seus jogos, a gabar-se carnalmente à mulher. Forçava o cavalo o mais que podia, porque tudo o que queria era chegar a casa e ver-me livre da voz do Maynard, embora nunca pudesse, nesta vida, livrar-me dele. Maynard, que segurava a minha corrente. Maynard, o meu irmão que se tornou no meu mestre. E eu tentava de tudo para não o ouvir, à procura de distração – memórias da desfolhada do milho ou jogos da cabra-cega, da infância. Recordo apenas como essas distrações nunca chegaram, mas em vez delas um silêncio repentino, apagando não só a voz do Maynard, mas todos os pequenos sons do mundo ao redor. E agora, ao espreitar na minha mente, o que encontrei foram as recordações dos perdidos – homens a rezar com todas as forças pela emancipação e mulheres a fazer a última visita aos pomares de maçãs, fiandeiras a exigir os seus jardins a outros, velhos caducos a amaldiçoar a grande casa de Lockless. Legiões de perdidos, trazidas por aquela ponte funesta, legiões encarnadas na dança da minha mãe.

    Puxei as rédeas, mas era demasiado tarde. Despistámo-nos e o que aconteceu de seguida abalou para sempre a minha perceção de uma ordem cósmica. Mas eu estava lá e vi acontecer, e desde então, vi muitas coisas que expõem os limites do nosso conhecimento e o que existe para lá dele.

    A estrada sob as rodas desapareceu, e a ponte ruiu, e por um momento, senti-me a flutuar, ou talvez dentro da luz azul. E estava quente lá, e lembro-me daquele breve calor, porque tão depressa como flutuava, estava dentro da água, imerso, e mesmo enquanto conto isto agora, sinto-me lá novamente, na dentada gelada do rio Goose, a água a precipitar-se para dentro de mim, e aquela agonia ardente, em particular, que queima apenas os afogados.

    Não há sensação como a de afogamento, porque o sentimento não é apenas de agonia, mas de confusão numa circunstância tão estranha. A mente acredita que deve haver ar, já que há sempre ar a ser respirado, e o impulso para respirar é uma questão de instinto que requer uma espécie de foco para suspender. Se tivesse saltado da ponte, seria responsável pela minha recente situação. Se tivesse caído da borda, entenderia, porque isso seria, no mínimo, imaginável. Mas era como se tivesse sido empurrado de uma janela para as profundezas do rio. Não houve aviso. Continuei a tentar respirar. Lembro-me de gritar por ar. Mais, lembro-me da agonia da resposta, da água a entrar em mim e de como respondi, arfando, a essa agonia, o que só trouxe mais água.

    De alguma forma, estabilizei os pensamentos, percebi que se estrebuchasse aceleraria a morte. E com isso percebido, notei que havia luz numa direção e escuridão noutra, e deduzi que a escuridão vinha das profundezas, ao contrário da luz. Chicoteei as minhas pernas por trás e estendi os braços para a luz, puxando a água até que, finalmente, tossindo e vomitando, emergi.

    Quando subi, rasgando a água escura e entrando no diorama do mundo – nuvens de tempestade penduradas por fios invisíveis, um Sol vermelho encostado a elas, e sob aquele Sol, colinas cobertas com relva –, olhei para trás, para a ponte de pedra que devia estar, meu Deus, a oitocentos metros.

    A ponte parecia estar quase a fugir de mim, porque a corrente me puxava, e quando me inclinei para nadar em direção à margem, era ainda essa corrente, ou talvez algum redemoinho invisível no fundo, a puxar-me rio abaixo. Não havia sinal da mulher cujo tempo Maynard tinha adquirido tão desleixadamente. Mas quaisquer pensamentos que eu tivesse em seu nome foram quebrados por Maynard dando-se a conhecer, como tantas vezes fazia, com pompa e circunstância, determinado a sair deste mundo da mesma maneira que passara por ele. Ele estava perto, puxado pela mesma corrente. Debateu-se, gritou, esperneou um pouco e depois desapareceu, reaparecendo segundos depois, a gritar, esperneando, a espaços, debatendo-se.

    – Ajuda-me, Hi!

    Ali estava eu, a minha vida a balançar sobre o abismo negro, e agora a ser chamado para salvar outra. Eu tinha, em muitas ocasiões, tentado ensinar o Maynard a nadar, e ele encarou essa instrução como encarava todas as instruções, de forma descuidada e negligente no trabalho, reagindo com irritação e preconceito quando essa negligência não dava frutos. Posso agora dizer que a escravatura o assassinou, fez dele uma criança, e agora, caído num mundo onde a escravatura não tinha influência, que o Maynard morreu no minuto em que tocou na água. Eu sempre fui a sua proteção. Fui eu, apenas por bom humor, e humilhação, quem impediu o Charles Lee de atirar nele; e fui eu, apelando especialmente ao nosso pai, quem o salvou inúmeras vezes da ira dele; e era eu quem o vestia todas as manhãs e o punha na cama todas as noites; e era eu quem agora estava cansado, de corpo e alma; e era eu, lá fora, a lutar contra a força da corrente, contra os acontecimentos fantásticos que me tinham posto lá, e agora a debater-me com a exigência de que eu, mais uma vez, salvasse o outro, quando não conseguia sequer invocar a energia para me salvar.

    – Ajuda-me! – gritou outra vez, e então clamou: – Por favor! – Disse-o como a criança que era, implorando. E eu notei, ainda que injustamente, mesmo ali no rio Goose enfrentando a morte, que não me recordava de alguma vez o ter ouvido falar de uma maneira que refletisse a verdadeira natureza das nossas posições.

    – Por favor!

    – Não consigo – gritei à tona da água. – Estamos feitos!

    Com aquela aceitação de morte iminente, as memórias da minha vida desceram sobre mim sem ser convidadas, e agora a mesma luz azul que eu vira na ponte voltara e envolvera-me novamente. Pensei em Lockless e em todos aqueles que amava, e bem ali, no meio do rio enevoado, eu vi a Thena, no dia da lavagem, uma velha mulher a carregar os grandes potes de água fumegante e, com uma réstia de energia, a bater nas roupas gotejantes até ficarem húmidas e as mãos dela feridas. E vi a Sophia de luvas e chapéu, como uma mulher de poder, porque era isso que a sua incumbência lhe exigia, e assisti, como fizera tantas vezes, enquanto ela subia o vestido até aos tornozelos e percorria, pelas traseiras, um caminho que a levava ao homem que lhe segurava a corrente. Senti a submissão dos meus membros e o mistério e a confusão dos acontecimentos que me conduziram ao fundo do abismo já não me incomodavam, e desta vez, quando me afundei, não houve ardor, nem esforço para respirar. Senti-me leve, de modo que, mesmo quando me afundei no rio, me senti a subir para outra coisa qualquer. A água afastou-se e estava sozinho numa bolsa azul, quente, com o rio do lado de fora, à volta. E então soube que estava, finalmente, a receber a minha recompensa.

    A minha mente viajou mais para trás, para os que tinham sido executados fora desta Virgínia, para lá da estrada de Natchez, e perguntava a mim mesmo quantos deles poderiam muito bem ter ido mais longe, longe o suficiente para me cumprimentarem nesse próximo mundo que agora se aproximava. E vi a minha tia Emma, que trabalhou na cozinha todos aqueles anos, a passar com uma bandeja de biscoitos de gengibre para os Walkers ali reunidos, embora nenhum deles ali estivesse por ela ou qualquer um da raça dela. Talvez a minha mãe estivesse lá, e depois, à velocidade do pensamento, vi-a a tremer, diante dos meus olhos, a dançar no meio do círculo. E pensando em tudo isso, em todas as histórias, eu estava em paz, e até satisfeito, para subir na escuridão, para cair na luz. Havia paz naquela luz azul, mais paz do que no próprio sono, e mais do que isso, havia liberdade, e eu sabia que os anciãos não tinham mentido, que havia um lar nosso, uma vida além da incumbência, onde cada momento é como o amanhecer sobre montanhas. E tão grande foi essa liberdade, que tomei consciência de um peso incómodo que sempre considerara imutável, um peso que agora propunha seguir-me para sempre. Virei-me, e no meu despertar, vi o peso, e o peso era o meu irmão, a uivar, a bater, a gritar, a implorar pela vida.

    Toda a vida, estivera sujeito aos seus caprichos. Era o seu braço direito e, portanto, não tinha braço próprio. Mas isso acabara, agora. Porque estava a erguer-me, a sair daquele mundo do Poder e dos Incumbidos. A minha última visão do Maynard foi ele a bater na água e a lutar, após o que já não conseguiu aguentar, até que começou a desfocar-se diante de mim, como a luz a reverberar numa onda, e os seus gritos diminuíram sob o sonoro nada à minha volta. E então desaparecera. Gostaria de dizer que me lamentei naquele momento ou lhe liguei de alguma forma. Mas não. Eu estava a caminho do meu fim. Ele estava a caminho do seu.

    As aparições estavam agora firmes à minha frente e concentrara-me na minha mãe, que já não dançava. Em vez disso, ajoelhara-se diante de um menino. Ela pôs a mão na face do menino, e beijou-o na cabeça, e colocou o colar de conchas na mão dele, e fechou a mão em torno daquilo, e então levantou-se, com as mãos sobre a boca, virou-se e andou para longe, e o menino ficou lá a observá-la, e, de seguida, gritou-lhe, e ele seguiu-a, correu atrás dela, e caiu ao correr, e ficou lá a chorar sobre os braços, e, de seguida, virou-se, desta vez para mim, e caminhando na minha direção, abriu a mão e ofereceu o colar, e eu vi, finalmente, a minha recompensa.

    2

    Toda a vida quis fugir. Não era original nisso – todos os Incumbidos sentiam o mesmo. Mas, ao contrário deles, ao contrário de todos os de Lockless, eu possuía os meios.

    Era uma criança estranha. Comecei a falar antes de andar, embora nunca falasse muito, porque, mais do que tudo, observava e lembrava. Gostava de ouvir os outros, embora os visse mais do que os ouvia, as palavras transformavam-se em imagens diante de mim, correntes de cores, linhas, texturas e formas que armazenava. E era o dom que tinha, quando solicitado, de recuperar as imagens e traduzi-las para as palavras exatas com que tinham sido conjuradas.

    Aos cinco anos, conseguia, tendo ouvido apenas uma vez, berrar uma canção de trabalho, as suas chamadas e respostas, e adicionar-lhe improvisos, tudo para o deleite, de olhos arregalados, dos meus anciãos. Eu tinha nomes específicos para animais específicos, caracterizados pelos locais onde os havia visto, a hora do dia, e o que o animal estava a fazer, de modo que um cervo era Relva na Primavera e outro era Ramo de Carvalho Partido, e assim foi com a matilha de cães sobre a qual os anciãos tantas vezes me advertiram, mas eles não eram uma matilha para mim, mas cada um no singular, mesmo que não os voltasse a ver, continuariam a sê-lo, seres no singular, cada um, como qualquer senhora ou cavalheiro que nunca mais vi, porque me lembrava deles também.

    E nunca houve necessidade de me contar uma história duas vezes, porque, se me contasses que o Hank Powers chorou durante três horas quando a filha nasceu, eu lembrava-me, e se me dissesses que a Lucille Simms fez um vestido novo com as roupas de trabalho da mãe no Natal, eu lembrava-me, e se falasses daquela vez em que o Johnny Blackwell apontou uma faca ao irmão, eu lembrava-me, e se me contasses todos os antepassados do Horace Collins, e onde no condado de Elm nasceram, eu lembrava-me, e se a Jane Jackson recitasse todas as suas gerações, a mãe, a mãe da mãe, e todas as mães que se estendiam até à beira do Atlântico, lembrava-me. Então, era natural que me lembrasse, mesmo na boca do rio Goose, mesmo depois de a ponte ter caído e eu ter encarado o meu fatídico destino, que esta não era a minha primeira peregrinação à porta azul.

    Já havia acontecido. Quando tinha nove anos, um dia depois de a minha mãe ter sido levada e vendida. Acordei nessa manhã fria de inverno a saber, como um facto, que ela havia desaparecido. Mas eu não tinha imagens, nenhuma memória, de qualquer adeus. Na verdade, não tinha nenhuma imagem dela, nem uma. Em vez disso, lembrava-me da minha mãe de forma secundária, tendo a certeza de que ela havia sido raptada, como tinha a certeza de que havia leões em África, embora nunca tivesse visto um.

    Procurei uma memória clara e encontrei apenas fragmentos. Súplicas – alguém a suplicar-me. O cheiro forte dos cavalos. E na névoa de tudo isso, uma imagem a entrar e a sair do foco: um longo bebedouro. Estava apavorado, não só por haver perdido a minha mãe, mas porque era um menino que recordava todos os dias do passado nas cores mais nítidas, e texturas tão ricas, que me era possível bebê-las. E lá estava eu, a despertar para um começo de nada a não ser coisas efémeras, sombras e gritos.

    Tenho de sair. Isto também me chegou, mais do que como um pensamento, como um sentimento. Houve uma dor, uma brecha, um despojar de mim que sabia incapaz de evitar. A minha mãe fora-se e eu deveria segui-la. Então, nessa manhã de inverno, vesti a minha camisa e as calças de serapilheira, depois pus os braços no meu casaco preto e apertei as botas. Saí para a Rua, a área comum entre duas fileiras longas de cabanas de madeira de duas águas onde aqueles de nós Incumbidos de trabalhar nos campos de tabaco haviam construído as casas. Um vento gelado cortava o chão empoeirado entre os quartos e rasgava o meu rosto. Era domingo, duas semanas após o feriado, horas antes do nascer do Sol. Ao luar, eu via a fumaça a subir em espirais brancas, das chaminés das cabanas, e, atrás delas, árvores negras e despidas, balançando embriagadas ao silvar do vento. Se fosse verão, a rua estaria, mesmo a essa hora, viva com as vendas – de repolhos e cenouras desenterradas, ovos de galinha recolhidos para serem trocados ou levados à casa principal e vendidos. Lem e os meninos mais velhos estariam lá fora, com varas de pesca aos ombros, sorrindo, acenando-me e gritando «Vamos lá, Hi!» enquanto se dirigiam para o Goose. Teria visto a Arabella com o irmão, o Jack, de olhos sonolentos, mas pouco depois a jogar ao berlinde num anel de terra que tinham desenhado entre duas cabanas. E a Thena, a mulher mais malvada da Rua, estaria a varrer o jardim da frente, a bater num tapete velho ou a chupar os dentes e a revirar os olhos com a parvoíce de alguém. Mas era inverno na Virgínia e todos em posse das suas faculdades estavam dentro de casa, aninhados, à lareira. Então, quando saí, não havia ninguém na Rua, ninguém a espreitar para lá da porta dos seus aposentos, ninguém para agarrar o meu braço, açoitar o meu traseiro duas vezes e gritar: «Hi, este frio ‘inda te mata! E onde está a tua mãe, rapaz?»

    Subi pelo caminho sinuoso e para dentro do bosque sombrio. Parei apenas quando estava fora do alcance da cabana do Boss Harlan. Faria ele parte daquilo? Era o algoz de Lockless, um saloio branco que aplicava a «correção» quando julgava apropriado. O Boss Harlan era a mão física da escravidão, presidia os campos enquanto a esposa, Desi, governava a casa. Mas, quando examinava os fragmentos da memória, não encontrava o Boss Harlan entre eles. Conseguia ver o bebedouro. Conseguia cheirar os cavalos. Tinha de chegar aos estábulos. Tinha a certeza de que algo que não conseguia nomear me esperava lá, algo crucial sobre a minha mãe, algum caminho secreto, talvez, que me enviaria até ela. Caminhando por aqueles bosques com o vento de inverno a dilacerar-me, ouvi de novo as vozes aparentemente vagas, multiplicando-se agora à minha volta – e, de novo, transformadas, na minha mente, numa visão: o bebedouro.

    E então eu corria, movendo-me tão depressa quanto as minhas pequenas pernas podiam carregar-me. Tinha de chegar aos estábulos. Todo o meu mundo parecia depender disso. Aproximei-me das portas de madeira brancas e subi o ferrolho até elas se abrirem e me atirarem ao chão. Levantando-me rapidamente e precipitando-me para dentro, encontrei os elementos da minha visão matinal dispersos perante mim – cavalos e o enorme bebedouro. Aproximei-me de cada um dos cavalos e olhei-os nos olhos. Eles olharam estupidamente de volta. Andei sobre o bebedouro e olhei para baixo, para dentro da escuridão. As vozes voltaram. Alguém a suplicar-me. E agora as visões formavam-se na escuridão da água. Vi os Incumbidos que outrora haviam vivido na Rua, mas que estavam perdidos para mim. Uma névoa azul começou a levantar-se da escuridão, iluminada a partir de dentro por algo. Senti a luz a puxar-me, a puxar-me para o bebedouro. E então olhei à volta e vi o estábulo a desaparecer, tão certo como aconteceu com a ponte estes anos depois, e pensei que era esse o significado do sonho: um caminho secreto que me livraria de Lockless para me reunir com a minha mãe. Porém, quando a luz azul clareou, eu não vi a minha mãe, mas um teto de madeira, que reconheci como o da cabana de onde partira minutos antes.

    Estava no chão, de costas. Tentei ficar de pé, mas os meus braços e pernas pareciam pesados e acorrentados. Consegui levantar-me e tropeçar na cama de corda que partilhava com a minha mãe. O cheiro forte dela ainda estava impregnado no nosso quarto, na nossa cama, e eu tentava seguir esse cheiro pelas vielas da mente, mas, enquanto todas as voltas e reviravoltas que marcavam a minha curta vida eram claras para mim, a minha mãe aparentava-se névoa e fumo. Tentei lembrar-me da cara dela, e quando ela não apareceu, pensei nos braços dela, nas mãos, mas só havia fumo, e quando procurei lembrar-me das repreensões dela, dos afetos, só encontrei fumo. Ela fora levada daquela manta quente da memória para a fria biblioteca dos factos.

    Adormeci. E quando acordei, de tarde, naquele dia, fi-lo ciente de estar sozinho. Já vi muitas crianças na mesma situação, órfãs, a sentir-se abandonadas e expostas a todos os elementos do mundo, e vi como alguns explodem de raiva enquanto outros caminham num estado de torpor, como alguns choram dias a fio e outros se movimentam de forma estranha, tão-somente atentos ao momento presente. Parte deles morrera e, como os cirurgiões, eles sabem que a amputação deve ser imediata. Então, um daqueles rapazes era eu, naquela tarde de domingo, quando me levantei, ainda com as botas calçadas e o traje de serapilheira vestido, e saí novamente para a Rua, desta vez seguindo o caminho até ao armazém onde iria buscar a porção semanal do milho e o meio quilo de carne de porco devido à minha família. Trouxe-os para casa, mas não fiquei. Em vez disso, peguei nos berlindes, a minha única posse além do saco de mantimentos e as roupas que trazia vestidas, e caminhei de volta até que alcancei o último edifício da Rua, uma grande cabana afastada das outras. A casa da Thena.

    A Rua era um espaço comunitário, mas a Thena era bastante reservada, nunca participava nos mexericos, na conversa fiada ou nas cantorias. Trabalhava nos campos de tabaco e depois ia para casa. O seu hábito era franzir os olhos para nós, crianças, quando fazíamos os nossos jogos desordeiros por perto, ou às vezes emergir quase caprichosamente da sua cabana, de olhos coléricos, balançando a vassoura na nossa direção. Para qualquer outra pessoa, isto traria algum tipo de conflito. Mas eu tinha ouvido que a Thena não havia sido sempre assim, que numa outra vida, vivera aqui na Rua, era mãe, não apenas dos seus cinco filhos, mas de todas as crianças da Rua.

    Eram outros tempos, dos quais não me lembrava. Mas eu sabia que os filhos dela tinham partido. Em que pensava eu, de frente para a porta dela, a segurar a minha porção de carne de porco e farinha de milho? Decerto, havia outros que me acolheriam, que apreciavam a companhia de crianças. Mas havia apenas uma pessoa na Rua que eu sabia entender o sofrimento que se apoderava de mim. Mesmo quando ela balançava a vassoura, sentia a profundidade da perda, a dor, uma raiva que ela, ao contrário do resto de nós, se recusava a esconder, e eu achava essa raiva verdadeira e correta. Ela não era a mulher mais malvada de Lockless, mas a mais honesta.

    Bati na porta e, sem resposta e sentindo, agora, o frio, empurrei-a para entrar. Deixei a ração dentro da cabana, na entrada, depois subi a escada até ao sótão, onde me deitei, a olhar para baixo, à espera de que ela voltasse. Ela entrou alguns minutos depois, olhou para cima e mostrou-me a habitual expressão carrancuda. Mas caminhou até à lareira, acendeu-a e puxou uma panela da cornija, e em poucos minutos, o cheiro familiar a carne de porco e a pão encheu a cabana. Ela olhou para mim mais uma vez e disse: «Tens de descer se queres comer.»

    Vivia com a Thena havia um ano e meio, quando atingi o cerne da sua raiva. Numa noite quente de verão, fui acordado por fortes gemidos, que chegavam ao pequeno estrado de madeira onde dormia no sótão. Era a Thena, a falar durante o sono. «Está tudo bem, John. Está tudo bem.» E falava com tanta clareza, que, quando a ouvi pela primeira vez, pensei que conversava com alguém presente. Mas quando olhei do sótão, vi que ainda dormia. Eu já adquirira o hábito de deixar a Thena com os fantasmas, mas, quanto mais ela falava, mais me parecia que, desta vez, estava em perigo. Desci para a acordar. À medida que me aproximava, ouvi-a a gemer e a falar: «Está tudo bem, bem, eu disse-te. Bem, John.» Estiquei o braço até ao ombro dela, abanando-o até ela acordar. Ela olhou para cima, na minha direção, e, ato contínuo, à volta da cabana escura, sem saber onde estava. De seguida, os olhos dela estreitaram-se e concentrou-se novamente em mim. Durante aquele ano e meio, fora quase sempre imune às fúrias da Thena. Na verdade, para alívio da Rua, a fúria diminuíra, como se a minha presença tivesse começado a curar uma velha ferida. Isto não era verdade, e eu soube-o assim que a vi a focar-se em mim.

    – Que fazes aqui! – disse ela. – Sua peste, sai daqui! Sai! – Saí, confuso, e vi que era quase de madrugada. O Sol, em breve, começaria a pulverizar o seu amarelo sobre as árvores. Voltei para a velha cabana que partilhara com a minha mãe e sentei-me nos degraus, até à hora da incumbência.

    Nessa altura, tinha onze anos. Era pequeno para a idade, mas não havia exceções e trabalhava como um homem. Pintava e tapava as fissuras das cabanas. Plantava os campos no verão e pendurava as folhas, como os outros, no outono. Caçava e pescava. Cuidava do jardim, mesmo depois de a minha mãe ter partido. Mas, num dia quente como o que estava a chegar, fui enviado com as outras crianças para levarmos águia aos Incumbidos nos campos. Então, durante todo esse dia, assumi o meu lugar numa corrente de crianças que se estendia desde o poço, perto da casa principal da propriedade, até aos campos de tabaco. Quando o sino tocou e todos se arranjaram para o jantar, eu não voltei para a casa da Thena. Em vez disso, assumi uma posição estratégica no bosque e observei. Nesse momento, a Rua vibrava com vida, mas os meus olhos estavam postos na cabana da Thena. A cada vinte minutos ou mais, eu via-a sair e olhar para os dois lados como se esperasse um convidado, e depois voltava para dentro. Quando regressei à cabana, era tarde e encontrei-a sentada numa cadeira ao pé da cama. Eu sabia, pelas duas taças vazias pousadas junto à lareira, que ela ainda não tinha comido.

    Jantámos, e na hora de nos deitarmos, virou-se para mim e sussurrou-me:

    – O John, o Big John, era o meu marido. Morreu. Febre. Acho que deverias sabê-lo. Acho que deves saber algumas coisas sobre mim, sobre ti, sobre este lugar.

    Parou e olhou para a lareira, onde as brasas mais resistentes se apagavam.

    – Tento não me preocupar muito. A morte é tão natural como qualquer outra coisa, mais natural do que este lugar. Mas a morte que saiu desta morte, do meu Big John, não teve nada de natural. Foi assassínio.

    O ruído e a confusão da rua haviam esmorecido e ouvia-se agora apenas o bichanar rítmico dos insetos noturnos. A nossa porta estava aberta, para que a leve brisa de julho entrasse. A Thena puxou o cachimbo da cornija da lareira, acendeu-o e começou a soprar.

    – O Big John era o capataz. Sabes o que isso significa, não?

    – Que ele era o chefe dos campos, aqui.

    – Sim, era – disse ela. – Foi escolhido para supervisionar todas as equipas do tabaco. O Big John não era o capataz por ser mau como o Harlan. Ele era o capataz porque era o mais sábio, mais sábio do que qualquer um desses brancos, e as suas vidas dependiam dele. Os campos não são apenas campos, Hi. São o coração da coisa. Tens andado por aí. E viste este lugar e todas as suas extravagâncias, sabes o que eles têm.

    Sabia. Lockless era enorme, milhares de hectares talhados das montanhas. Adorava fugir dos campos para explorar essas áreas, e o que encontrava eram pomares cheios de pêssegos dourados, campos de trigo ondulando ao vento de verão, pés de milho coroados com a esperança de seda amarela, uma leitaria, uma siderurgia, uma carpintaria, uma casa de gelo, jardins cheios de lilases e lírios-do-vale, tudo isso projetado numa geometria exata, numa simetria resplandecente, a matemática dos quais eu era demasiado jovem para compreender.

    – Bom, não é? – disse a Thena. – Mas tudo isso começa com o que está aqui, nos campos, e neste cachimbo. O mestre de tudo isso era o meu homem: o Big John. Ninguém sabia mais sobre os jeitos e maneiras da folha dourada do que o meu homem. Ele conseguia dizer-te a melhor forma de desenterrar o pulgão, de modo que o eliminasse. Tudo isso o fez cair nas boas graças dos brancos. Foi assim que consegui este casarão. E vivíamos bem com isso. Dávamos o que nos sobrava aos que não tinham. O John insistia que o fizéssemos.

    Ela parou para soprar novamente no cachimbo. Eu assistia aos pirilampos a entrar, a sua luz amarela a brilhar contra as sombras.

    – Eu amava aquele homem, mas ele morreu e, depois disso, as coisas ficaram feias. A primeira colheita terrível de que me lembro veio após o John ter morrido. E veio outra. E outra. As pessoas diziam que nem o John nos poderia salvar. Era a terra, a amaldiçoar estes brancos pelo que lhe fizeram, pela forma como a roubaram. Ainda sobra alguma terra vermelha da Virgínia, mas em breve será tudo areia. E eles sabem isso. Tem sido o inferno desde que o John se foi. O inferno para mim. O inferno para ti.

    » Penso na tua tia Emma. Penso na tua mãe. Recordo-as: tanto a Rose como a Emma. Porque elas eram um par. Amavam-se. Amavam dançar. Lembro-as, estou a dizer-te. E apesar de doer em alguns momentos, não podes esquecer, Hi. Não podes esquecer.

    Olhava aparvalhado enquanto ela falava, pois todo o peso de já ter esquecido caía agora sobre mim.

    – Sei que não vou esquecer os meus bebés – disse a Thena. – Levaram os cinco para a pista de corridas, e juntaram-nos ao resto, e venderam-nos, como tabaco.

    A Thena inclinara a cabeça, e pusera as mãos na testa. Quando olhou para mim, vi as lágrimas a correr-lhe pelas faces.

    – Quando aconteceu, passei a maior parte do tempo a amaldiçoar o John, pois pensava que, se tivesse sobrevivido, os meus meninos ainda estariam aqui comigo. Não eram apenas os conhecimentos particulares dele, era a sensação de que o John faria aquilo que não tive coragem de fazer, travá-los-ia.

    – Sabes como sou. Já ouviste como falam de mim, mas também sabes que algo, na velha Thena, está partido, e quando te vi no sótão, tive a sensação de que a mesma coisa estava partida em ti. E tinhas-me escolhido, por qualquer que tenha sido a razão, tinhas-me escolhido.

    Naquele instante, levantara-se e começara a rotina noturna de arrumar a casa. Eu subi ao sótão.

    – Hi – gritou. Olhei para trás, para a ver a observar-me.

    – Sim, senhora – respondi.

    – Eu não posso ser a tua mãe. Não posso ser a Rose. Ela era uma bela mulher, com o mais amável dos corações. Gostava dela, e já não gosto de muita gente. Ela não bisbilhotava e era recatada. Não posso ser o que ela era para ti. Mas escolheste-me, entendo isso. Quero que saibas que entendo.

    Nessa noite, fiquei acordado até tarde, a olhar para as vigas, a pensar nas palavras da Thena. Uma bela mulher, o mais amável dos corações, não bisbilhotava, recatada. Acrescentei estas às memórias dela que recolhera das pessoas na Rua. A Thena não sabia quanto eu precisava dessas pequenas peças do puzzle da minha mãe, que, juntas, ao longo dos anos, me ajudaram a forjar um retrato da mulher que vivia em sonhos, como o Big John, porém feita de fumo.

    E quanto ao meu pai? E quanto ao senhor de Lockless? Soube cedo quem ele era, pois a minha mãe não fizera segredo desse facto, nem ele. De vez em quando, via-o a cavalo a visitar a propriedade, e quando os olhos dele se encontravam com os meus, ele parava e apontava-me o chapéu. Eu sabia que ele vendera a minha mãe, porque a Thena sempre mo recordou. Mas eu era um menino, vendo nele o que os meninos não podem deixar de ver nos pais – um molde segundo o qual a própria masculinidade deles podia ser moldada. E mais, eu começava, então, a entender o grande vale que separava o Poder dos Incumbidos – que os Incumbidos, curvados nos campos, carregando o tabaco da colina ao armazém, levavam vidas extenuantes e que o Poder, os que viviam na casa bem no alto, o trono de Lockless, não.

    Sabendo isso, era natural que olhasse para o meu pai, já que via nele um símbolo de outra vida – de esplendor e regozijo. E sabia que tinha um irmão lá em cima, um rapaz que se deleitava enquanto eu trabalhava, e perguntava a mim mesmo que direito lhe conferia uma vida ociosa e que lei me condenava à incumbência. Eu só precisava de elevar a minha posição, de alguma forma, algum artifício que me pusesse num cargo em que pudesse mostrar a minha qualidade. Foi o que senti naquele domingo, quando o meu pai apareceu na Rua.

    A Thena estava de melhor humor do que o normal, sentada na varanda, não franzindo a testa nem enxotando alguma das crianças mais novas que passavam a correr por ali. Eu encontrava-me na parte de trás do quarteirão, entre os campos e a Rua, a cantar:

    Oh, Senhor, as dificuldades são tantas

    Oh, Senhor, as dificuldades são tantas

    Ninguém sabe as minhas dificuldades a não ser o meu Deus

    Ninguém sabe as minhas dificuldades a não ser o meu Deus

    Continuei: verso após verso, levando a canção das dificuldades para o trabalho, para as dificuldades, para a esperança, para as dificuldades, para a liberdade. Quando cantava a chamada, mudava a voz para o tom do líder no campo, ousado e exagerado. Quando cantava a resposta, assumia as vozes das pessoas à volta, imitando-as uma a uma. Eles ficavam encantados, aqueles anciãos, e o deleite crescia à medida que a canção se estendia, verso após verso, até que eu tivesse a oportunidade de os imitar a todos. Mas, nesse dia, eu não vigiava os anciãos. Olhava para o homem branco sentado no topo do Tennessee Pacer, de chapéu puxado para baixo, que cavalgava sorridente, aprovando a minha prestação. Era o meu pai. Ele tirou o chapéu, tirou um lenço do bolso e enxugou a testa. Depois, voltou a colocar o chapéu, foi com a mão ao bolso, puxou algo para fora e atirou-a na minha direção, e eu, sem tirar os olhos dele, agarrei-a com uma mão. Deixei-me ficar, durante algum tempo, a olhar para ele. Conseguia sentir a tensão atrás de mim: os anciãos, agora com medo de que a minha imprudência pudesse suscitar a ira do Harlan. Mas o meu pai não parava de sorrir, depois acenou com a cabeça e foi-se embora.

    A tensão afrouxou e voltei à cabana da Thena, subi ao meu sótão. Tirei do bolso a moeda que o meu pai me lançara antes de partir, e vi que era de cobre, com bordas irregulares ásperas e a imagem de um homem branco na frente, e na parte de trás uma cabra. Naquele sótão, apalpei as bordas ásperas, sentindo que tinha encontrado o meu artifício, o meu símbolo, o meu bilhete para fora dos campos e para longe da Rua.

    Aconteceu no dia seguinte, depois do nosso jantar. Olhei para baixo do sótão para ver a Desi e o Boss

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