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O destino de Adhara
O destino de Adhara
O destino de Adhara
E-book527 páginas9 horas

O destino de Adhara

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Sobre este e-book

Uma jovem sem memória. Um guerreiro sem alma. Uma força obscura que aniquila sem o uso da espada. Após cinquenta anos de paz e prosperidade, uma nova guerra ameaça o Mundo Emerso e novos heróis se preparam para lutar.
Uma jovem acorda ao ar livre, deitada na grama. Não sabe como chegou ali, não se lembra do próprio nome e tampouco reconhece seu rosto refletido na água, mas guarda no corpo marcas do passado, sinais de um poder imenso e perturbador. Seu encontro com Amhal, aprendiz de Cavaleiro de Dragão, será o início de uma longa viagem em busca de sua identidade, a começar pelo nome que lhe é dado pelo jovem guerreiro: Adhara.
Para Amhal, porém, esse passado não é somente um lugar de reencontro, é também de onde ele precisa fugir se quiser salvar a própria alma, disputada pela luz e por um antigo chamado de um instinto sombrio que nunca foi apagado. É uma escolha que se tornará decisiva quando, dos confins do Mundo Emerso, chegarão notícias aterrorizantes: uma sombra que se avoluma no coração do Império, ameaçando a longa paz conquistada a duras penas pelo rei Learco.
O destino de Adhara ficará indissoluvelmente ligado às forças ocultas, que tentam mais uma vez arrastar o Mundo Emerso para as trevas, numa guerra onde não serão as espadas a espalhar a morte, mas sim uma força sinistra e desconhecida.
Autora dos grandes sucessos Crônicas do Mundo Emerso e Guerras do Mundo Emerso, Licia Troisi presenteia seus admiradores com Lendas do Mundo Emerso, uma nova trilogia ambientada no mesmo universo fantástico que cativou inúmeros fãs no mundo todo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de set. de 2011
ISBN9788581220468
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    O destino de Adhara - Licia Troisi

    PRIMEIRA PARTE

    A JOVEM NA CAMPINA

    1

    O DESPERTAR

    Calor. Alguma coisa que espeta nas costas, algo úmido. Um universo vermelho todo ao redor, e dor, por toda parte. Como estar sendo queimado por um fogo interior, como se cada partícula do corpo estivesse berrando.

    A mão foi percebida pelo ser, em algum lugar. Moveu lentamente os dedos e sentiu que se animavam com ameno calor. Abriu os olhos, devagar. O vermelho foi substituído por uma ofuscante brancura. Foi como recuperar todos os sentidos de uma só vez, como ver-se entregue a um único caos ensurdecedor. Um zunido insistente, por toda parte, um barulho estrídulo, descontínuo e cacarejante, e depois cheiro de terra e de grama, e a percepção úmida do orvalho nas costas. O ser rendeu-se ao espanto.

    Pestanejou algumas vezes e então, com um movimento vigoroso, conseguiu virar-se de lado. Cada músculo do seu corpo gemeu, deixando-o sem fôlego. Pouco a pouco, na brancura, foi se desenhando a forma de um braço pálido, apoiado na grama, e duas pernas magras, cândidas e delgadas, apenas encobertas por uma túnica manchada.

    Onde estou?

    A pergunta surgiu na sua consciência, simples e terrível. Não conseguiu encontrar uma resposta. Olhou a mão iluminada pelos raios do sol. As cores iam vagarosamente se definindo. O rosa pálido da pele, o verde ofuscante da relva, os ambíguos tons da roupa que vestia.

    Quem sou?

    Nenhuma resposta. Um aperto gelado envolveu suas têmporas. Passou a mão no peito, onde o coração marcava o tempo da sua ansiedade. Peitos, pequenos e empinados.

    Sou uma mulher.

    A consciência disto não aliviou minimamente os seus temores. Olhou em volta. O céu era de um azul profundo, sem sombra de nuvens. O relvado que a cercava pareceu-lhe infinito; pontilhando a grama, as pequenas manchas brancas de tímidas margaridas e o puro vermelho das papoulas.

    Ninguém à vista.

    Tentou sondar as lembranças, trazer de volta à memória algum nome, um rosto, qualquer indício que a ajudasse a entender. Nada.

    Sentiu uma fisgada de dor no flanco apoiado no chão, como se algo lhe espetasse a carne. Com algum esforço, virou-se de novo para levar a mão ao local que doía. Um objeto alongado, relativamente áspero, estava preso à sua cintura por uma tira de algum material que não conseguiu identificar.

    Poderá cuidar disso mais tarde, agora só pense em ficar de pé, impôs uma voz interior. Colocou a palma da mão sobre a grama. Somente então percebeu o halo vermelho que circundava seu pulso. De instinto murchou-o com um dedo, mas se retraiu de súbito. Queimava terrivelmente. Também o outro pulso tinha o mesmo sinal.

    Não tem importância, deve levantar-se, insistiu a voz. Apoiou no chão a outra mão também. Os músculos dos braços se queixaram, assim como as pernas quando as flexionou. Trincou os dentes, enquanto os lábios soltavam abafados gemidos. Só conseguiu levantar-se a duras penas. Arquejava toda vez que a dor lhe infligia novas fisgadas. Reparou que os tornozelos também estavam marcados por halos vermelhos.

    Esfolados. Deve significar alguma coisa. Mas não conseguia imaginar o quê.

    Ainda trôpega, ficou de pé. Estava no meio de um grande gramado. A coisa de nada adiantava. Não fazia ideia de como chegara lá, ignorava completamente onde estava, nem mesmo sabia quem era. Baixou os olhos para o seio, olhou para os braços, as pernas, até os pés. Surpreendeu-se com o próprio corpo. Não o reconhecia, era algo alheio. Nem mesmo a consciência de ser uma criatura feminina sugeria-lhe alguma coisa. Vestia uma longa túnica manchada de grama e sangue. Nada mais, por baixo. Na cintura, aquela tira na qual já reparara e uma coisa alongada, presa nela. Tinha uma empunhadura, na qual apoiou a mão insegura. Os dedos fecharam-se puxando o objeto para cima. Com um leve chiado surgiu algo que brilhava ao sol. Apertou os olhos e examinou o objeto com cuidado. A empunhadura marrom estava quente e se adaptava perfeitamente à sua mão. A parte inferior, por sua vez, era feita de um material diferente, brilhoso e frio. Tinha um aspecto serpentino, com símbolos estranhos que não conseguiu decifrar. Passou o dedo no gume da parte fria e sentiu dor na mesma hora. Tirou a mão e viu que o indicador estava marcado por um filete vermelho. Um lampejo de consciência iluminou sua mente.

    Um punhal.

    O objeto que acabava de desembainhar tinha a finalidade de ferir, e servia para defender-se, sabia disto instintivamente. Mas, por enquanto, isto tampouco ajudava. Colocou a lâmina de volta e, mais uma vez, deu uma olhada ao seu redor. O gramado parecia não ter fim.

    Só há isto, disse a si mesma, angustiada. E então percebeu uma fina linha mais escura, lá no fundo, bem longe. Árvores?

    É para lá que você precisa ir.

    Não chegou a perguntar-se por quê. Não podia encontrar uma resposta. Só sabia que era o que tinha de fazer. Mexeu-se com cuidado. Era como se nunca tivesse andado antes. Quase não conseguia manter o equilíbrio, suas pernas gemiam, os músculos das costas gritavam. Talvez fosse melhor sentar-se de novo.

    Vou ficar parada, até alguém chegar. Um pensamento reconfortante, e só por uns poucos momentos pareceu-lhe a coisa certa a fazer.

    Ninguém vai aparecer, concluiu com gélida certeza. Virou então o olhar para a linha verde mais escura, e começou simplesmente a andar, um passo depois do outro, insegura. Em volta dela, as flores baixavam a cabeça no leve sopro do vento, e a grama ondeava molemente. Não se deixou demover. Naquele nada em que sua mente estava mergulhada, no pegajoso terror que a dominava, agora ela tinha um objetivo e devia alcançá-lo.

    Viu as árvores surgindo diante de si, cada vez mais altas, à medida que se aproximava. Fustes castanhos, galhos esticados para o céu azul e folhas de forma estranha, de um verde mortiço. Observou-os como se fossem miragem, enquanto suas passadas se tornavam cada vez mais firmes. Quando afinal chegou a tocar na casca áspera de um fuste, não pôde evitar um sorriso de alívio. Estava exausta. Deixou-se escorregar ao longo do tronco, com a roupa que se enredava e levantava deixando à mostra as pernas, só detida pelo cinto – eis o nome, cinto – que usava na cintura. Olhou para trás, para o caminho que tinha percorrido. Não estava em condições de quantificá-lo, nem sabia quanto tempo levara. Não se lembrava de como medir o espaço, não se recordava de como marcar a passagem do tempo. O desânimo tomou conta dela. Percebeu alguma coisa úmida escorrendo por suas faces e, ao tocá-las, deu-se conta de que estavam molhadas. Ficou ainda mais triste. Escancarou a boca e entregou-se ao mais completo desespero, enquanto grandes gotas caíam dos seus olhos, desenhando na túnica manchas escuras perfeitamente redondas. Da sua garganta só saíam confusos gemidos.

    Quando acordou, a luz tinha mudado. Já não era ofuscante como quando avançara pela pradaria, mas sim cor de âmbar, avermelhada. Fazia mais frio. Adormecera e nem se dera conta. Passou a mão no rosto e percebeu que alguma coisa áspera lhe encobria as faces. Raspou-a com a unha para então lamber a ponta do dedo. Era sal.

    A dor é salgada, disse para si mesma.

    Tentou procurar mais uma vez na memória. Talvez o descanso tivesse sido proveitoso, quem sabe se lembrasse de alguma coisa, agora. Mas sua mente era uma tábula rasa da qual só emergiam com precisão as experiências que tivera a partir de quando acordara na campina. Antes disto, nenhuma lembrança, somente um magma escuro e confuso. Mais uma vez o medo, gélido e insinuante. Havia mais alguma coisa, no entanto, a atormentá-la. Uma espécie de ardência interior, uma sensação de profunda secura que lhe rasgava a boca e a garganta. Os ouvidos perceberam um som ritmado e estrídulo, mais intenso do que aquele que ouvira quando acordara.

    Preciso ir lá. Não sabia a razão disto, mas achava que era a coisa certa, que depois se sentiria melhor.

    Lembrou o terrível esforço que enfrentara antes, para levantar-se. Agarrou-se à casca da árvore e preparou-se para a dor. Agora, no entanto, tudo foi menos penoso e complicado do que da primeira vez. Claro, os músculos ainda estavam doloridos e as juntas doíam, mas no conjunto ela já se sentia melhor. Afastou-se do tronco e saiu andando. Já sabia como caminhar, e foi avançando com bastante segurança, concentrada no movimento cadenciado, na sensação das folhas secas sob os pés.

    Vislumbrou então uma fita prateada que serpeava entre os troncos, espelhando em seus olhos os reflexos rosados do pôr do sol. Correu para o regato e mergulhou o rosto, bebendo com volúpia.

    Sede, eu estava com sede, concluiu. A água desceu pela garganta, gelada e deliciosa, aplacando a ardência que a atormentava. Abriu os olhos, ainda dentro da água. Viu longos cabelos negros, azulados, que se moviam ao léu da correnteza. Seus cabelos. Levantou-se, respirou fundo. Acabava de ter uma ideia. Olhou em volta, à cata daquilo que precisava, e viu o que procurava não muito longe de onde estava. Avaliou o caminho necessário para alcançá-lo. Era preciso atravessar o regato, pulando numa série de pedras, e depois nadar por um curto trecho. Nada de mais.

    Percebeu estar se mexendo com extrema agilidade, pulando sem problemas, de uma pedra para outra. Alcançou a meta. Naquele ponto, uma formação rochosa obrigava o riacho a fazer uma curva fechada, forçando-o a formar um pequeno lago de água quase parada. Ela estava de costas para o sol, e aquela espécie de poça parecia-lhe uma superfície branca e reluzente. Curvou-se. Titubeou por alguns instantes, atemorizada e insegura. O pavor de ver um rosto que não reconhecia voltou a dar um nó em suas entranhas, mas procurou dominar-se. Talvez fosse melhor assim, talvez aquela vista pudesse desbloquear a sua memória.

    Debruçou-se devagar. Cabelos negros e lisos emolduravam o oval miúdo da sua cabeça. Entremeados, pequenos cachos de um azul reluzente. Um rosto delgado, alongado, mas com faces redondas. Uma testa ampla, em volta da qual os cabelos se abriam como as cortinas de um teatro. Uma boca pequena e bem desenhada, lábios rosados e lisos que sobressaíam na tez pálida. Um nariz decidido, sobrancelhas finas. Como receava, era o rosto de uma desconhecida. Franziu a testa e uma sombra anuviou seus olhos, que logo se tornaram úmidos.

    É assim que o medo aparece no meu rosto, disse para si mesma.

    A coisa que mais a impressionou, no entanto, foram os olhos. Grandes, mas de feitio alongado, um era extremamente negro, enquanto o outro era de um violeta vivo, límpido, quase perturbador. Não eram muitas as pessoas com olhos de cores diferentes: por alguma razão, ela tinha certeza disto. A testa da imagem refletida alisou as rugas. Era uma boa notícia. Não seria difícil reconhecê-la com aquela característica.

    Ficou de pé, fingindo uma determinação que na verdade não tinha.

    Preciso sair daqui.

    Mais uma ordem da qual não compreendia o sentido, mas em cuja peremptoriedade confiava cegamente. Não reconhecia o próprio corpo, mas respeitava a sua autoridade; quando ficara com sede, coubera a ele sugerir o que fazer. Percebia que devia aproveitar as insensatas certezas que vez por outra lhe passavam pela cabeça. Era por causa delas que, até agora, ela se mantivera viva.

    Seguiu adiante, acompanhando o regato, pois certamente iria ficar com sede de novo, e não fazia ideia de como levar a água consigo. Além do mais acreditava que, se quisesse encontrar alguém, alguém que soubesse quem era ou que simplesmente pudesse ajudá-la, devia seguir a correnteza.

    O sol descreveu o seu arco no céu, invisível atrás das copas das árvores. A luz ambreada tornou-se rosada, assumindo tons de um azul esmaecido. Por alguns momentos, no entanto, ficou roxa, e em seguida, com seu cortejo de trevas, a noite chegou.

    A jovem não fazia ideia do caminho percorrido. Só sabia que estava escuro e que não conseguia ficar de olhos abertos. Precisava descansar.

    Subiu numa árvore. Por algum motivo, achou que era o que devia fazer. Ajeitou-se a cavalo em um galho e recostou-se no tronco. Seus músculos doíam, mas a dor já não era a mesma de quando havia acordado. Agora estava simplesmente cansada.

    Levantou os olhos para o céu. As árvores permitiam-lhe divisar um quadrado de céu negro como piche, pontilhado da trêmula brancura de dúzias de pequenas luzes. O ar tinha um cheiro gostoso, de úmido e de frescor, e por um momento sentiu-se quase confortada. À sua volta, os ruídos do dia haviam deixado o lugar a novos sons: um uivo longínquo e insistente, o passo furtivo de algum animal na mata, o doce assobio de algum inseto do qual não conseguia lembrar o nome. Não estava com medo. A vitalidade comedida e circunspecta do bosque noturno não a assustava: longe disso, o problema era o vazio absoluto da sua mente, o nada pelo qual parecia ter sido gerada. Viu a lua, cândida e enorme, aparecendo atrás da cortina das árvores, e sentiu o coração encher-se de uma paz fugidia, de uma precária serenidade. Uma ave bastante grande, de aspecto atarracado e bico pequeno e pontudo, riscou rápido o espaço entre ela e a lua. Ouviu-a soltar um chamado grave e repetido. Acompanhou o seu voo até onde pôde. Adormeceu tentando lembrar o nome.

    Os dias seguintes foram de marcha contínua. O tempo era marcado pelo sol, que surgia e se punha acima dos seus passos e das necessidades do corpo. A primeira vez que ficou com fome, coube ao seu estômago endereçá-la para umas frutinhas vermelhas que apareciam entre a vegetação rasteira. Encheu a boca e juntou outras para levar consigo. A fim de não machucar os pés, envolveu-os em longas tiras de tecido arrancadas da túnica, que ficou muito mais curta. Toda aquela andança, no entanto, parecia inútil. O bosque em volta continuava o mesmo, sem qualquer sinal de um semelhante seu.

    Talvez nada mais exista além disto. Talvez o mundo não passe apenas de uma imensa floresta.

    Certo dia, ouviu vozes. Confusas, distantes. A jovem foi atrás como se fossem miragens, correndo entre as samambaias e os espinhos que lhe arranhavam as pernas.

    Desembocou de repente numa pequena clareira e ficou diante deles. Eram todos mais jovens do que ela.

    Garotos, sugeriu uma voz interior. Uma menina, um menino baixinho, outro mais alto. Ficaram todos parados, entreolhando-se por um tempo que pareceu infinito.

    Fale com eles, diga alguma coisa, peça-lhes ajuda.

    Deu uns passos para a frente, tentou abrir a boca e esticou os braços para a meninada. Dos seus lábios surgiu apenas um ganido confuso, que aos seus ouvidos pareceu lúgubre, insano.

    O encantamento estava quebrado. A menina levou as mãos à boca, o garotinho escondeu-se atrás da saia dela, o mais alto simplesmente gritou. Desapareceram no bosque o mais rápido que puderam.

    A jovem decidiu correr atrás. Durante todos aqueles dias de caminhada não tinha feito outra coisa a não ser pensar naquele momento, encontrar alguém que pudesse salvá-la. Estava decidida a não desperdiçar a oportunidade.

    Mas os garotos eram mais baixos que ela e conseguiam esgueirar-se mais facilmente no emaranhado das brenhas e da vegetação rasteira. Ela não demorou a perdê-los de vista. Continuou então no encalço da respiração ofegante da garotada, até ficar inaudível. Estava novamente sozinha.

    Parou, desconsolada, com uma fúria cega que lhe enchia o peito. Apertou os punhos, reprimiu as lágrimas. Não, não podia parar. Continuou a avançar, procurando intuir o caminho seguido pela meninada.

    Quando já quase tinha perdido a esperança de alcançá-los, de repente as árvores rarearam e diante dela descortinou-se uma ampla clareira. O seu olhar perdeu-se nos confins do horizonte, entre o verde viçoso da grama e o azul impiedoso do céu. Ao longe, justamente onde a terra se juntava às nuvens, havia alguma coisa enorme. Parecia marrom, mas daquela distância era difícil identificar claramente a cor. Era algo afunilado e ao mesmo tempo pesado. A jovem ficou olhando boquiaberta. Não sabia do que se tratava, podia ser uma montanha ou o quê; havia, no entanto, uma faixa marrom no chão, que levava para lá.

    Deve haver pessoas ali, disse a si mesma, muitas pessoas. E no meio de todo aquele pessoal devia certamente haver alguém capaz de ajudá-la.

    Será que consigo chegar lá antes de ficar novamente com sede e com fome?

    Àquela altura já tinha deixado para trás o riacho, mas ainda tinha a chance de juntar uma boa quantidade de frutas, e demorou-se mais algum tempo no bosque. Em seguida encaminhou-se para a construção.

    Tentou, primeiro, caminhar na faixa marrom, mas era bem pior do que avançar descalça na grama, razão pela qual desistiu quase de pronto. Entretanto, continuou a margeá-la. Era a maneira mais direta para alcançar o seu destino.

    Viu a torre – era assim que se chamava, agora lembrava –, que se tornava cada vez mais imponente. Meio bojuda na parte de cima, com uma vaga forma cilíndrica. Dos lados, entretanto, surgiam estruturas menores, e entreviam-se abóbadas redondas e telhados pontudos. À sua volta, casas de tijolos que se espalhavam pela planície, como se aquele volumoso cilindro não conseguisse contê-las e as deixasse proliferar. Era um espetáculo grandioso e terrível, e o coração da jovem estremeceu. Havia um mundo desconhecido, fora da floresta, um mundo cheio de coisas que a deixavam sem fôlego. No bosque, era capaz de intuir inconscientemente o que era perigoso e o que não era. Mas ali? Agora já não dispunha de meios de comparação, e o seu instinto parecia não poder ajudá-la.

    Andou durante mais um dia inteiro, sem parar nem mesmo quando o sol se pôs além do horizonte. A escuridão ia tomando conta de tudo, mas ela tinha de seguir adiante. Estava assustada demais para dormir ao relento, à margem da estrada.

    Quando chegou já era noite e, ao se aproximar da torre, sentiu-se aniquilada. De longe já parecia enorme, mas de perto o seu tamanho era francamente amedrontador. Encobria uma boa parte do céu e parecia erguer-se a desmedidas alturas. As casas que se encontravam aos seus pés eram como que achatadas pela sua massa gigantesca. A jovem ficou olhando estática, o rosto para cima. Só mesmo a vista da lua, logo atrás, foi capaz de devolver-lhe alguma coragem. Diante dela abria-se um labirinto de ruelas tortas. Nenhum sinal de grama, somente pedra por todo canto e sapé cobrindo algumas choças.

    Enfiou-se numa daquelas vielas, olhando em volta. Tijolos avermelhados, pedras esbranquiçadas, baixas moradas com pesadas portas de madeira, trancadas. No interior, luzes difusas e trêmulas, e o barulho de vozes que falavam baixinho.

    O que fazer, agora? Parar alguém para fazer-se entender a gestos? Mas não havia ninguém por perto. Seguiu adiante escolhendo os becos ao acaso, esperando encontrar alguma pessoa. Só encontrou, à sua espera, um mundo frio e desconhecido.

    Virou numa rua mais larga e, finalmente, o panorama mudou. Havia nela grandes portões iluminados, além dos quais se divisavam numerosos grupos de pessoas sentadas. Na própria rua havia transeuntes, não muitos, na verdade, mas de qualquer maneira o cenário era bastante animado. A jovem apertou nervosamente entre as mãos o pano da túnica, e então tomou coragem. Escolheu uma mulher, pois lhe parecia poder confiar mais nela. Foi ao seu encontro de mão estendida. A moça encarou-a por um momento e desviou-se do caminho, evitando-a. Ela permaneceu de pé, no meio da rua, observando a longa saia da desconhecida que se afastava ondeando. Tentou de novo, abordando um cavalheiro que vestia uma ampla túnica. Esticou o braço para chamar a sua atenção e o homem, como resposta, remexeu numa bolsa presa à cintura. A jovem suspirou aliviada e voltou a abrir a boca. Mas o sujeito deteve-a segurando sua mão e colocando nela alguma coisa fria.

    – Compre pelo menos uma roupa decente – disse, antes de afastar-se apressado.

    A jovem abriu a mão. Um objeto redondo e dourado brilhava na palma da sua mão, com alguma coisa gravada: estranhos símbolos e o desenho estilizado da torre. Olhou melhor. Pouco a pouco os símbolos assumiram algum sentido.

    50 ESCUDOS.

    SALAZAR.

    Tentou ler a escrita em voz alta, e seus lábios se mexeram, só produzindo, no entanto, sons indistintos. Fechou a mão e olhou em volta, perdida. O que vinham a ser os escudos? E o que era Salazar? Reparou que as pessoas olhavam para ela e, instintivamente, afastou-se do meio da rua. Apoiou-se na parede e respirou fundo.

    – Meia carola por uma boa tigela de sopa.

    Virou-se de chofre. Diante dela, o rosto rubicundo de uma mocinha. Pequenas manchas barrentas pontilhavam o seu nariz, enquanto os cabelos rebeldes e arruivados emolduravam seu rosto gorducho.

    – A nossa sopa é realmente de primeira – prosseguiu com um sorriso. – Veja, vou até acrescentar uma fatia de pão, pois me parece que está mesmo precisando.

    A jovem tentou falar. Queria perguntar que lugar era aquele, explicar que havia algo de errado com ela, que alguma coisa não funcionava em sua cabeça. Só conseguiu articular um murmúrio confuso.

    A mocinha arregalou os olhos.

    – Cabeça? O que é que tem a cabeça?

    Ela iluminou-se. Tinha conseguido dizer algo que fazia sentido! Deu um tapinha na cabeça com a mão.

    – Ruim... – tentou dizer, junto com outras palavras resmungadas.

    Com um sorriso maroto, a mocinha apoiou as mãos nos quadris.

    – Pois é, para a dor de cabeça não pode haver coisa melhor do que uma boa sopa. – Segurou-a pelo braço e puxou-a para dentro de um daqueles espaços iluminados que tinha visto logo que chegara por lá.

    Diante dela descortinou-se uma cena que a deixou transtornada. Era um amplo salão, de pé-direito bastante alto, todo de pedra, com grandes vigas de madeira a sustentar o teto. Num canto, dentro de um nicho relativamente grande, crepitava uma fogueira. Ali perto, um longo balcão de madeira cheio de copos e tigelas, atrás do qual se atarefavam dois homens robustos e acalorados. Quanto ao resto, a sala estava apinhada de gente sentada a pesadas mesas de madeira. Eram quase todos homens, muitos dos quais usavam na cintura objetos parecidos com o punhal dela, porém mais compridos.

    Espadas, sugeriu a costumeira voz.

    A mocinha continuou a puxá-la, até levá-la ao balcão.

    – Kel, uma sopa para a minha amiga.

    Um dos dois homens, careca mas de longa barba, virou-se examinando a forasteira.

    – E ela tem dinheiro, a sua amiga?

    A mocinha de cabelo ruivo sorriu dengosa. Segurou a mão da jovem e pegou o objeto metálico. Ela tentou rebelar-se, mas a outra torceu-lhe o pulso.

    – Calminha aí, pode ficar tranquila que não vou roubá-la! – Jogou o objeto no balcão. – Aqui está. Pensou que ia trazer uma freguesa sem dinheiro?

    O homem careca sorriu de um jeito que a jovem não gostou nem um pouco.

    – Uma sopa saindo – disse, pegando uma tigela.

    – Vou mandar reforçar com um pedaço de carne, tudo indica que está precisando – continuou dizendo a empregadinha, esquadrinhando-a com olhar crítico.

    Ela tentou articular mais algumas palavras:

    – Me... me ajudem...

    – É justamente o que estou fazendo, você não acha? – replicou a outra. – Fique sabendo que, com esse dinheiro aí, certamente não dá para pagar a carne. – Mandou-a sentar à ponta de uma mesa. – Agora vou trazer a sua comida, está bem? E, só para sua informação, o meu nome é Gália – acrescentou.

    A jovem respondeu com um tímido sorriso. E o dela, qual era o seu nome? Suspirou. Deu uma olhada nas demais pessoas sentadas. Um homem e uma mulher, três garotos usando túnicas, um sujeito todo vestido de metal, um baixote com o rosto encoberto por uma espessa barba, dois brutamontes com braços enormes. Finalmente, dois caras magros, um deles extremamente pálido. Eram diferentes dos demais, mas ela não saberia dizer por quê. Talvez fossem as proporções do corpo ou a atitude. Só sabia que à volta deles pairava uma aura de ambiguidade.

    Seus pensamentos foram interrompidos por Gália, que lançou uma tigela diante dela.

    – Sopa de feijão com duas salsichas dentro. – Dobrou-se para cochichar em seus ouvidos: – Eu mesma botei, às escondidas. Remexa bem com a colher, vai encontrar. – Deu-lhe uns tapinhas nas costas e desapareceu apressada.

    A jovem ficou sozinha com a sua tigela. Ao lado, um utensílio comprido com uma parte redonda na ponta.

    Colher. Mas conhecer o nome do objeto de nada adiantava, pois não se lembrava de como usá-lo. O cheirinho gostoso que a tigela emanava, no entanto, tinha mexido com seu estômago. Pensou em enfiar a cara naquele líquido de aroma tão convidativo e comer tudo, até lamber o fundo. Em seguida olhou para o sujeito sentado ao seu lado. Imergia a colher na sopa diante dele, puxava-a para cima e enfiava-a na boca.

    Então é isto.

    Segurou a colher com firmeza e procurou imitar os demais comensais. Teve de superar algumas dificuldades, mas acabou entendendo como aquilo funcionava. Quando engoliu a primeira colherada achou que ia desmaiar de prazer. Depois de todas aquelas frutinhas frias, comer alguma coisa quente era simplesmente fantástico. Sem mencionar a consistência aveludada da sopa, o sabor da carne... Comeu apressada, procurando os pedaços de salsicha, mastigando-os com vontade. Limpou tudo, sorvendo o que sobrava diretamente da tigela.

    O homem sentado diante dela deu uma gargalhada.

    – Estava com fome, não é?

    Ela limitou-se a anuir.

    Gália passou ao seu lado e, como quem não quer nada, deixou escorregar alguma coisa branca cercada por uma crosta espessa e escura. Também cheirava bem. A jovem segurou-a e cheirou-a. Mordiscou-a e ficou surpresa com a sua fragrância. Só precisou de umas poucas mordidas para acabar com ela. Àquela altura, finalmente, seu estômago já deixara de resmungar. Passou as mãos na barriga e soltou um longo suspiro de satisfação. Ficou sentada no meio de toda aquela confusão, observando os fregueses. Viu que se levantavam logo que acabavam de comer, sendo então substituídos por outros. Aquilo se repetiu umas duas vezes antes de ela ficar com sono. Já estava quase dormindo quando Gália veio sacudi-la.

    – Como é, ainda aqui?

    Ela olhou para a mocinha com ar interrogativo.

    – Não me leve a mal, mas já lhe fiz um favor e tanto com a carne, então procure não me criar problemas. – A empregadinha segurou-a pelo braço e forçou-a a levantar-se, falando baixinho em seus ouvidos: – Não pode ficar aqui. Deve deixar o lugar para outros fregueses. Se continuar sentada aí, o patrão vai ficar desconfiado. Vamos lá, levante.

    Afastou-se, e a jovem reparou um vislumbre de remorso em seus olhos cor de avelã.

    Apesar disto, a mocinha foi empurrando-a para fora.

    – Fique aqui, eu não demoro – disse, voltando para dentro.

    Uma luz piscou na cabeça da jovem, uma luz fraca e confusa. Aquelas palavras, aquela situação... Por um momento achou que a escuridão iria finalmente aclarar-se, que afinal algo poderia revelar quem ela era e de onde vinha. Depois Gália reapareceu, botou em suas mãos alguma coisa levemente amarelada e um tanto gordurosa, com casca mais escura, e um pedaço daquele negócio branco que comera com a sopa.

    – É o máximo que posso fazer. E agora vá embora, eu lhe peço – acrescentou, e desapareceu novamente no grande aposento e não voltou a sair.

    A jovem ficou parada, encostada na parede. De pão e queijo – pois é, era assim que se chamavam – na mão. A efêmera fagulha de pouco antes havia desaparecido. Mas pelo menos estava alimentada. A rua se encontrava escura e deserta, e o labirinto de becos que se abriam de ambos os lados parecia um antro cheio de insídias.

    E agora?

    Nada de árvores onde passar a noite, somente duras pedras.

    Acabarei encontrando alguma coisa.

    Apertou no peito o pão e o queijo e mergulhou no lado escuro da torre.

    2

    AMHAL

    Por algum tempo, o único barulho que a jovem ouviu foi o dos seus passos abafados, no caminho. Caminhar na pedra não era nada agradável, apesar das tiras com que voltara a proteger os pés. A superfície era dura e irregular, e os cantos dos pedregulhos sumariamente esboçados agrediam seus ossos, arrancando-lhe pequenos gemidos. Tinha de encontrar, quanto antes, um lugar para descansar. No bosque, afinal de contas, fora relativamente fácil achar um refúgio. O próprio corpo levara-a a procurar abrigo na árvore. Mas agora sentia-se desprovida de referências. No meio daqueles muros, o instinto parecia não funcionar. Por algum estranho motivo, agora que se tornara levemente mais consciente de si mesma e do lugar no qual se encontrava, a sua voz interior demorava mais a dar-lhe respostas, quase parecia amordaçada por alguma coisa.

    Vagueou por becos desertos e ruas mais largas igualmente vazias. Percebia que atrás das paredes das casas desenrolava-se a meada de existências tranquilas. Talvez fosse melhor bater à porta de alguma delas e tentar explicar, quem sabe precisasse pedir ajuda. Mas com quais palavras? E além do mais já tivera a chance de ver, naquela noite, o que as pessoas achavam dela. Não, era preciso encontrar outra solução.

    Quase sem querer, acabou dando de cara com um paredão de pedra. Tratava-se da muralha externa da torre. Até então movimentara-se entre as casas que ficavam do lado de fora da poderosa construção. Passou a mão nos grandes blocos quadrados e olhou para cima. A parede estava pontilhada pelas aberturas de inúmeras janelas, algumas iluminadas, outras fechadas com tábuas, mais poucas vazias. Talvez alguns locais da torre fossem desabitados, talvez pudesse encontrar abrigo ali.

    Seguiu adiante, ao longo do muro, procurando algum tipo de entrada. A primeira que encontrou era vigiada por dois guardas armados. Vestiam peitorais de metal nos quais estava gravado um símbolo difícil de decifrar no escuro. Continuou andando, como se não fosse com ela.

    Precisou caminhar por mais um bom pedaço, com os pés cada vez mais doloridos e os braços pesados, cansados de carregar até mesmo o leve fardo do pão e do queijo. Estava esgotada, tinha de encontrar um lugar para descansar.

    Um buraco na parede foi a sua salvação. Nada mais que alguns seixos soltos, que abriam caminho para um antro escuro como piche. Avaliou seus quadris delgados, o seio miúdo, e concluiu que não haveria problema.

    Meio a contragosto, colocou o pão e o queijo do outro lado da abertura, para mexer-se melhor. Em seguida enfiou-se no buraco. Foi mais fácil do que imaginara. Mais uma vez ficou surpresa com a própria agilidade. Moveu-se sem dificuldade na estreita passagem, até pular do outro lado dando meia cambalhota.

    Estava escuro. Às apalpadelas, conseguiu encontrar o pão e o queijo, e então parou no meio do local, indecisa. Em volta dela, só breu, sem qualquer coisa que pudesse lhe servir de referência. Esticou um braço diante de si e deu alguns passos inseguros. Um joelho bateu num canto, ela tropeçou e levou um tombo, caindo em cima de alguma coisa macia. Ficou uns momentos parada, respirando fundo. Levara um grande susto. Apalpou a superfície na qual se encontrava. Parecia um tecido qualquer, uma espécie de volumoso fardo de pano. Levantou-se devagar e recomeçou a sua exploração. Desta vez foi mais cuidadosa e moveu as mãos procurando tocar não só naquilo que estava à altura dos olhos, mas também no que se encontrava mais acima ou mais perto do chão. Demorou algum tempo, mas conseguiu criar um mapa mental bastante preciso do lugar. Tinha caído em cima de alguma mesa baixa, na qual estavam amontoados rolos de pano de vários tamanhos. Havia outros perto das paredes, empilhados em pesadas armações de madeira. Quando sua mão achou a fria nudez do muro, deu-se por satisfeita. Foi apalpando até encontrar de novo a madeira. Uma porta.

    Hesitou. Tinha achado um abrigo, um lugar fechado e protegido. Talvez pudesse descansar e levantar logo que o sol raiasse. Mas o local não parecia propriamente abandonado. Todos aqueles rolos guardados lá dentro, aqueles tecidos... E também não havia janelas, estava quente, quente demais. Não, melhor procurar um quarto vazio.

    Segurou a maçaneta e empurrou-a para baixo. Nada. Tentou de novo. Virou-a até ouvir o barulho estrídulo da barra de metal que rangia, sem contudo fazer estalar a fechadura. O ruído encheu o espaço ao seu redor, e ela ficou em pânico. Estava em apuros, sentiu-se encurralada. Apoiou as costas na parede. Tinha de sair dali e encontrar um lugar seguro nas casas que cercavam a torre. Mas então teve uma ideia. Precisava de alguma coisa pontuda e sorriu: o seu velho amigo reaparecera, lá estava ele de novo para ajudá-la, o instinto voltara.

    Experimentou primeiro com o punhal. Sacou-o e tentou enfiar a ponta na fechadura. Era espesso demais. Não, precisava de algo mais delgado. Começou a procurar. Tinha certeza de que no meio de todos aqueles panos encontraria alguma coisa pontuda. E, com efeito, seu dedo acabou esbarrando em algo que o espetou. Levou imediatamente a mão à boca e percebeu um vago sabor de sangue. Apalpou com mais cuidado e, desta vez, encontrou o objeto. Segurou-o devagar.

    É bastante curto, avaliou mentalmente.

    Terá de servir assim mesmo, respondeu a costumeira voz.

    Voltou à porta e enfiou a agulha na fechadura. Era realmente curta, mas ela não se deu por vencida. Começou a manuseá-la com a ponta dos dedos. Não sabia ao certo o que estava fazendo, quase via a si mesma de longe, como se aqueles movimentos não lhe pertencessem, como se mais alguém estivesse guiando suas mãos.

    O trinco estalou suavemente e a porta se abriu, deixando entrar um feixe de luz que lhe pareceu ofuscante.

    Onde aprendi? Será que isto fazia parte da minha vida?

    A agilidade, as marcas de antigos ferimentos nas mãos e nos pés, e agora isto. Eram todos indícios que a levavam a uma conclusão bastante clara, que, no entanto, continuava para ela desconhecida. Aqueles fatos significavam alguma coisa, mas era como se não dispusesse do código capaz de decifrar o enigma.

    A abertura da porta já tinha feito com que se desse por satisfeita. Enfiou a agulha no rolo de fazenda mais próximo e deu uma rápida olhada para fora. Havia um longo corredor iluminado por algumas tochas e amplas janelas. Devia tratar-se do interior da torre.

    Saiu, circunspecta. Ninguém à vista. Fechou a porta atrás de si e dirigiu-se para um dos janelões. Dava para um grande jardim protegido por altos muros. Plantas ornamentais, dispostas ao longo de ordenadas alamedas e podadas com formas estranhas, ocupavam mais da metade dele, enquanto o resto era tomado por uma horta muito bem provida. Identificou toda uma série de frutos certamente comestíveis, mas dos quais não lembrava o nome, e uma longa lista de plantas rasteiras de folhas mais ou menos largas. Levantou os olhos e a vista deixou-a sem fôlego. Os paredões que fechavam aquele poço eram extremamente altos. Lá em cima, um pedaço redondo de céu, iluminado por uma reluzente lua cheia. A luz, no entanto, chegava até o chão graças a uma série de superfícies espelhadas colocadas verticalmente ao longo das paredes. Até onde a vista alcançava, contou pelo menos dez. Quer dizer, então, que aquele era o interior da torre.

    Livrou-se dos devaneios, pois afinal não estava ali para apreciar o panorama. Precisava de um abrigo.

    Seguiu de maneira decidida pelo corredor. Ali, pelo menos, não havia a confusão que reinava entre as casas; ao contrário dos becos, traçados de qualquer jeito e conectados das formas mais bizarras, aqui o caminho era unívoco e reto. Havia um só corredor curvo que começava com uma escada para baixo e acabava com outra para cima, e que se desenvolvia em torno do poço central. Dele partiam passagens laterais, mas também retas, que davam para a parede externa do torreão. A jovem decidiu explorar sistematicamente todas elas. Encontrou uma longa fileira de portas fechadas, algumas delas muradas.

    Não desanimou e continuou passando de um andar para outro. Quanto mais subia, mais o tamanho e o comprimento do corredor central diminuíam. Teve de examinar muitas passagens, subindo

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