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Orçamento Impositivo: quando a lei orçamentária prevê despesas para concretizar imposições constitucionais, o gasto é obrigatório!
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E-book393 páginas4 horas

Orçamento Impositivo: quando a lei orçamentária prevê despesas para concretizar imposições constitucionais, o gasto é obrigatório!

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Sobre este e-book

Este livro é o resultado de uma pesquisa teórico-jurídica, que buscou responder a seguinte questão: está o Chefe do Executivo brasileiro vinculado à lei orçamentária naquilo em que ela concretiza imposições constitucionais? Esta dúvida surgiu a partir da constatação fática de que a execução orçamentária pela Administração Pública sujeita-se a critérios eminentemente políticos, ignorando-se imperativos constitucionais, chegando-se, muitas vezes, a se tornar "moeda de troca" no jogo político-parlamentar para que o governo tenha seus interesses legislativos atendidos pelo parlamento. A resposta a este questionamento veio de uma análise da teoria da Constituição e do contemporâneo Direito Constitucional positivo brasileiro. Verificou-se que, de acordo com as funções estatais previstas constitucionalmente, a execução orçamentária é atividade administrativa, portanto atividade infralegal, subordinada à lei orçamentária, que não é meramente um ato-condição para o gasto de recursos públicos. Diante de uma constituição programática, como é a brasileira, não resta alternativa ao Chefe do Executivo a não ser aplicar os recursos existentes para a concretização das imposições constitucionais, sob pena de omissão administrativa inconstitucional, o que dará ensejo à propositura de mandado de segurança pelos destinatários de tais recursos orçamentários.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de mar. de 2021
ISBN9786559561452
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    Orçamento Impositivo - Frederico Augusto d'Avila Riani

    constitucionais.

    CAPÍTULO 1 - COMPREENSÃO JURIDICAMENTE ADEQUADA DE CONSTITUIÇÃO

    Neste Capítulo, tem-se a pretensão de demonstrar que a compreensão jurídica da Constituição não pode se ater exclusivamente nem a um aspecto formal, nem a um aspecto sociológico. É imprescindível, para a correta análise da Constituição, que se verifique a sua legitimidade, ou seja, sua validade material, que é a sua adequação aos fatores reais de poder.

    Isso não quer dizer que a Constituição seja uma mera folha de papel – na terminologia de Lassalle. Ela tem uma força normativa, que busca conformar a realidade. Mas essa força normativa só consegue ser efetiva se há uma vontade de Constituição – no sentido que Hesse dá a esta expressão -, que existirá se se tratar de uma Constituição legítima.

    A legitimidade da Constituição está em que sua criação esteja em conformidade com os anseios dos indivíduos que, de alguma forma, participam da vida política do país. Essas pessoas formam os fatores reais de poder, que, numa decisão política fundamental, se dão uma Constituição jurídica. Esses fatores são a infraestrutura da Constituição jurídica.

    Dada a ocorrência de transformações sociais, devem existir mecanismos para a atualização da Constituição, para que ela não se divorcie da realidade e perca sua força normativa.

    Assim, a Constituição real legitima a Constituição jurídica, que, por isso, passa a ter normatividade. Consequentemente, só uma Constituição legítima pode, desprendendo-se de qualquer ranço autoritário de exercício do poder político, conformar a realidade social.

    1.1. CONSTITUCIONALISMO E CONSTITUIÇÃO POSITIVA

    Talvez as circunstâncias políticas anteriores ao surgimento do Constitucionalismo moderno permitissem afirmar que a essência da Constituição fossem os fatores reais de poder e sua decisão fundamental sobre a estrutura e organização dos poderes numa sociedade concretamente situada.

    Entretanto, o Constitucionalismo moderno impingiu ao direito e ao mundo ocidental, como regra, uma peculiar maneira de se enxergar a Constituição. Ela deveria ser (i) um documento, e como tal ser escrita; (ii) conter a estrutura e organização dos órgãos do Estado; e (iii) elencar os direitos individuais. O surgimento da Constituição com essas características foi fruto das conquistas burguesas dos séculos XVII e XVIII. Portanto, é preciso situar historicamente esse movimento chamado Constitucionalismo para se compreender o sentido jurídico-positivo de Constituição.

    Esse movimento, na realidade, foi a fórmula jurídica encontrada para se garantirem as conquistas históricas burguesas em face do absolutismo monárquico.

    A sociedade medieval era composta por uma pluralidade de agrupamentos sociais e cada um tinha um ordenamento jurídico próprio. Com o apogeu da doutrina da soberania, no século XVII, aquela forma de sociedade plural medieva cedeu espaço para um poder político cada vez mais concentrado nas mãos do monarca, que determinou o surgimento do Estado absolutista.

    Não se sustentava mais uma teoria da soberania do monarca tendo em vista a ascensão econômica da burguesia. Buscava-se a racionalização do poder político. Surgiram as teorias contratualistas, que buscavam a limitação do poder do Estado com sua separação de funções; a de maior repercussão foi O Espírito das Leis, de Montesquieu. Na verdade, a separação de funções do Estado - e a entrega de cada uma delas a órgãos distintos - tinha por finalidade limitar o poder absoluto do monarca e garantir a liberdade e a propriedade dos indivíduos; em outras palavras, era a aquisição de poder político pela classe social que prosperava economicamente.

    É verdade que, como salienta Canotilho², não se pode falar em um constitucionalismo, mas, em constitucionalismos, porque existiram diversos movimentos constitucionais, com históricos geográficos e culturais diferenciados. Fala-se em constitucionalismo inglês, americano e francês. Não obstante, e Canotilho não se descuida disso, é certo que há pontos em comum entre esses vários movimentos e até certa influência de um em outro.

    Os pontos em comum e a influência que um movimento possa ter exercido em outro ficam demonstrados em Santi Romano³. O autor afirma que constitucionalismo designa as instituições e os princípios que são adotados pela maioria dos Estados que, a partir dos fins do século XVII, têm um governo que, em contraposição àquele absoluto, se diz ‘constitucional’. Mas, ele assevera, não basta definir o constitucionalismo como a forma de governo que se encontra na época moderna. É preciso identificar esse governo com o governo não absoluto, que amadureceu com a Revolução Francesa, mas que já vigorava há muito tempo na Inglaterra.

    Há uma influência do direito inglês, uma vez que outros Estados se espelharam e reelaboraram instituições sua. A influência dos direitos americano e francês está em que as teorias francesas imediatamente anteriores à Revolução atuaram sobre a formação das Constituições americanas, principalmente através da obra de Montesquieu, de modo que, quando aquelas constituições foram tomadas como modelo pela França, elas nada mais faziam senão trazer aquilo que já estava arraigado no espírito francês, determinando o que Santi Romano chama de reimportação.

    Desta forma, pode-se definir constitucionalismo moderno⁴ de duas maneiras: ou tendo como enfoque a ideologia liberal ou dando ênfase ao aspecto histórico. Canotilho apresenta as duas concepções:

    Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. (...).

    Numa outra acepção – histórico-descritiva – fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político⁵.

    Pode-se, assim, numa tentativa de unificação das duas acepções, definir constitucionalismo moderno – ou simplesmente constitucionalismo, como vem fazendo a doutrina constitucional – como sendo o movimento político, filosófico e jurídico, surgido no século XVIII e consolidado no século XIX, cujos marcos históricos foram as Revoluções Americana e Francesa, e que tinha como objetivo estabelecer um tipo de Estado definido como liberal, em contraposição ao Estado absolutista.

    A fórmula jurídica desse Estado liberal ficou consolidada num documento escrito (como é de regra), chamado Constituição, que tinha por finalidade, em termos genéricos, estruturar e ordenar o poder político e garantir os direitos e liberdades dos indivíduos.

    A partir do constitucionalismo desenvolve-se no seio da sociedade a compreensão da necessidade de uma Constituição escrita, com uma força normativa que vincule os exercentes do poder político. Passou a fazer parte da cultura, do espírito e da consciência política da sociedade ocidental a ideia de que um governo controlado – em que haja previsibilidade em suas decisões, permitindo um planejamento da vida social, em especial da economia – tem que ser organizado e limitado por uma Constituição jurídica, de preferência escrita.

    Essa aspiração de possuir uma Constituição escrita somente pode ter origem no fato de que nos elementos reais de poder imperantes dentro de um país tenha se operado uma transformação. São palavras de Lassalle:

    Se não se tivesse operado transformações nesse conjunto de fatores da sociedade em questão, se esses fatores do poder continuassem sendo os mesmos, não teria cabimento que essa mesma sociedade desejasse uma Constituição para si. Acolheria tranqüilamente a antiga, ou, quando muito, juntaria os elementos dispersos num único documento, numa única Carta Constitucional⁶.

    A existência de uma Constituição escrita não pode levar a sociedade e, em especial, os atores sociais que diretamente lidam com ela, a menosprezar a Constituição real. A vontade de constituição (Hesse) passou a fazer parte, a integrar, o que Lassalle chamou de fatores reais do poder. Hesse, em seu A Força Normativa da Constituição, disse que, para uma Constituição ter uma força ativa, ela tem que estar inter-relacionada com a realidade, tem que se vincular a uma situação histórica concreta. Para se tornar efetiva, seu conteúdo tem que corresponder a uma dada realidade.

    É certo, também, que Hesse não vincula a eficácia da Constituição somente à sua correspondência com os fatos. Isto porque a Constituição tem pretensão de ordenar e conformar a sociedade (em função de um pretenso consenso). Para isso, desempenha grande influência a sua força normativa.

    Essa força normativa reside nos fatores reais do poder e, também, na vontade de Constituição, que Hesse descreve como sendo uma compreensão da necessidade de se ter uma Constituição, que deve estar num constante processo de legitimação, o que não se dará sem o concurso dos partícipes da vida constitucional, através do respeito a ela, de uma interpretação que a prestigie e até da visão da necessidade de reformá-la.

    Assim, pode-se dizer que a imposição aos Estados modernos de uma Constituição escrita passou a se constituir num valor da sociedade ocidental. Tanto que, mesmo nos regimes de exceção, são criadas constituições numa tentativa ou de legitimar, ou de justificar o poder ditatorial; seriam as constituições semânticas, no dizer de Loewenstein⁷.

    1.2. CONCEPÇÕES DE CONSTITUIÇÃO

    1.2.1. CONCEPÇÃO FORMALISTA

    No contato com o Direito Constitucional, de uma maneira geral os estudiosos são postos, quase todos, diante de definições de Constituição que remontam aos sentidos kelsenianos.

    O autor do Teoria Pura do Direito confere dois sentidos ao termo Constituição. O primeiro é um sentido material⁸, que significa a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais. O outro é um sentido formal⁹, qual seja um documento (...) que – como Constituição escrita – não só contém normas que regulam a produção de normas gerais, isto é, a legislação, mas também normas que se referem a outros assuntos politicamente importantes e que não podem ser revogadas ou alteradas pela forma ordinária, mas só através de processo especial.

    Assim, para o mundo jurídico, grosso modo, Constituição é a lei das leis. Isso porque é ela que ocupa a posição mais alta na estrutura hierárquica de um sistema jurídico nacional. A Constituição é o fundamento de validade das demais normas jurídicas gerais. Além de ela regular a criação das normas gerais, determinando os órgãos e o processo de legislação, também determina o conteúdo de leis futuras, seja positiva (prescrevendo o conteúdo de futuras leis) ou negativamente (proibindo determinadas normatizações)¹⁰.

    A ordem jurídica é apresentada, pois, como um sistema, um sistema dinâmico de normas, uma vez que uma norma é criada segundo a que lhe é hierarquicamente superior, até se chegar à norma fundamental. Se se fizer o caminho em sentido contrário, teremos a norma fundamental conferindo a autoridades poder para criar as normas. Esses indivíduos, por sua vez, as criam segundo atos de vontade. Diferentemente, num sistema estático, as normas são cumpridas em virtude de seu conteúdo: ...seu conteúdo tem uma qualidade imediatamente evidente que garante sua validade, ou, em outros termos, as normas são válidas por causa de um atrativo a elas inerente¹¹.

    Kelsen deixa claro que as normas jurídicas não são válidas por terem um conteúdo que seja, por evidência, obrigatório. Não são válidas por terem um atrativo a elas inerente; podem ter qualquer tipo de conteúdo, não podendo ter sua validade questionada a pretexto de serem incompatíveis com algum valor moral ou político. Uma norma jurídica é válida se criada segundo uma regra superior definida¹².

    Assim, de forma simplificada, pode-se dizer que uma norma individual é válida porque (e se) se fundamenta numa norma geral. Esta, por sua vez, retira seu fundamento de validade na Constituição. Mas, é aqui que surge o problema: por que uma Constituição é válida?

    O positivismo jurídico dispensa justificativas para a validade ou legitimidade da Constituição.

    Se renunciamos a reconduzir a validade da Constituição estadual e a validade das normas criadas em conformidade com ela a uma norma posta por uma autoridade metajurídica, como Deus ou a natureza – apenas pode ser que a validade desta Constituição, a aceitação de que ela constitui uma norma vinculante, tem de ser pressuposta (...). Dado que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma outra norma, este pressuposto tem de ser uma norma: não uma norma posta por uma autoridade jurídica, mas uma norma pressuposta ...¹³.

    Neste sentido, a norma fundamental, que diria cumpra-se a Constituição, é o ponto de partida do direito positivo. Não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta. Ela não é criada por um procedimento jurídico e por um órgão jurídico. A norma fundamental é apenas uma pressuposição necessária de qualquer interpretação positivista do material jurídico¹⁴.

    Com esse raciocínio, o positivismo kelseniano retira do sistema jurídico (mundo do dever-ser) a sua ligação com o mundo do ser. Ao transferir para uma norma pressuposta a validade da Constituição, esvazia-se, por completo, o conteúdo das normas constitucionais. Com isso, criou-se o mito de que o jurista, como tal, não pode – ou pelo menos não deve – se ocupar das coisas do mundo do ser. A verificação da legitimidade jurídica circunscreve-se à noção de legalidade/constitucionalidade.

    Entretanto, não é isto que ocorre na realidade, uma vez que diversas decisões da Suprema Corte brasileira, que tem a função precípua de guardar a Constituição Federal, garantem validade a normas (ou omissões) tidas por inconstitucionais por grande parte da doutrina. Não se quer aqui desqualificar o trabalho do Excelso Pretório. Isso não retrataria a realidade dos serviços por ele prestados à sociedade e ao mundo jurídico. Quer-se, tão-somente, demonstrar que decisões jurídicas são tomadas, conscientemente ou não, tendo em vista fatores extrajurídicos. Ou seja, há comunicação entre o mundo do ser e o do dever-ser.

    E isto, hoje, com autorização legal, já que a Lei 9.868/1999 - que versa sobre o processo de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal – dispõe, em seu artigo 27, que ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

    A declaração de inconstitucionalidade cujos efeitos tenham eficácia ex nunc contraria, por completo, a ideia de supremacia constitucional e encontra justificativa em questões extrajurídicas, como excepcional interesse social. Durante um determinado lapso, a norma, posteriormente atingida de morte pela declaração de inconstitucionalidade, produziu efeitos. E mais, esses efeitos foram ratificados pela Corte Suprema no mesmo ato em que se declarou que a norma é inválida segundo o sistema jurídico. Ou seja, uma norma no sistema jurídico brasileiro pode ser inválida (produzida em desacordo com a norma superior), ser reconhecida como tal, e, não obstante, produzir efeitos jurídicos válidos. A supremacia da Constituição e a consequente noção de sistema jurídico escalonado ficam completamente comprometidas.

    Poder-se-ia objetar que a noção kelseniana de sistema jurídico refere-se à ciência jurídica e que a aplicação do direito não seria ciência jurídica, mas que a aplicação jurídica se socorre da ciência jurídica, com ela não se confundindo. Se isso é verdade ou não, ou até mesmo se o direito é ciência ou não, não se tem a pretensão de chegar a uma resposta – ou melhor, não se tem nem a pretensão de discutir. Partir-se-á, para a apresentação das ideias que ora se pretende expor, de uma noção do direito como uma técnica de prevenção e de resolução de conflitos, bem como uma forma de estabelecimento de condutas para a sociedade e para o Estado. Portanto, de uma noção instrumental do direito, e não do direito como um fim em si mesmo. Neste sentido, não pode o direito se divorciar da realidade, dos chamados fatores reais de poder¹⁵.

    O ponto de maior contato entre o mundo do ser (real) e o do dever-ser (normativo-jurídico) está na Constituição. É ela, como estatuto jurídico do político, que deve transformar em jurídico as relações sociais reais, segundo um dado momento histórico, estabelecer critérios mínimos de convivência social, e impor metas para o aprimoramento dessa convivência.

    Assim, parece que a análise jurídica da Constituição pela ótica meramente formal-dogmática, como norma jurídica hierarquicamente superior, é insuficiente para a compreensão do fenômeno jurídico-constitucional. É imprescindível a análise da legitimidade do texto constitucional, que seria a sua validade dada pelo mundo do ser (fatores reais de poder).

    1.2.2. CONCEPÇÃO SOCIOLÓGICA

    Concepção diferente à de Kelsen teve Lassalle¹⁶, que, em conferência proferida sobre a natureza da Constituição, na segunda metade do século XVIII, afirmou que as questões constitucionais não são primordialmente questões jurídicas, mas questões de poder – portanto, relacionadas ao mundo do ser.

    Lassalle inicia sua exposição perguntando o que é uma constituição e qual sua essência. Em seguida, afirma que as respostas de um jurisconsulto sobre o que seja a Constituição não a definem. Suas respostas seriam formais e representariam a forma como se exterioriza uma Constituição, mas não representariam a essência de uma Constituição.

    Para chegar à resposta, Lassalle propõe a adoção do método que se baseia na comparação entre o objeto cujo conceito não se sabe (a Constituição) e outro semelhante (a lei).

    A lei e a Constituição têm muita coisa em comum. Porém, também existem dessemelhanças. Percebem-se as diferenças quando, por exemplo, depara-se com a criação de uma lei e sua consequente alteração da ordem normativa. Todos os anos milhares de leis se alteram e não existe grande manifestação social por isso. Entretanto, se uma Constituição é alterada, se se troca uma Constituição por outra, existe toda uma preocupação social.

    Assim, percebe-se que a Constituição não é uma simples lei. Ela é mais do que isso. Ela é a lei fundamental, uma lei básica que se irradia por todas as outras leis. Ela tem uma força ativa que faz com que todas as outras leis e instituições jurídicas se submetam aos seus ditames. Promulgada, não pode haver no mesmo país uma outra lei fundamental.

    Aí surge uma outra pergunta proposta por Lassalle: será que existe em algum país alguma força ativa que possa influir de tal forma em todas as leis deste mesmo país, que as obrigue a ser necessariamente o que são e como são, sem poderem ser de outro modo?

    A resposta a esta incógnita assenta-se, segundo Lassalle, nos fatores reais de poder, que atuam no seio de cada sociedade como a força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes.

    Para melhor esclarecer, ele cita um exemplo. Imagina-se que por uma fatalidade todos os livros contendo as leis de um país pegam fogo e somem. Já que todas as leis desapareceram, poderia o legislador (constituinte) fazer leis de acordo com seu próprio modo de pensar?

    Após citar o monarca, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros e até a pequena burguesia e a classe operária, Lassalle afirma que esses são os fatores reais de poder e que, em essência, a Constituição de um país é a soma dos fatores reais de poder que regem uma nação.

    Outra pergunta surge no decorrer da conferência: qual a relação dessas forças com a Constituição jurídica?

    Juntam-se esses fatores reais de poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito - instituições jurídicas. Quem atentar contra eles atenta contra a lei, e por conseguinte é punido¹⁷.

    Por isso, afirma o conferencista que "uma Constituição real e efetiva a possuíram e a possuirão sempre todos os países, pois é um erro julgarmos que a Constituição é uma prerrogativa dos tempos modernos"¹⁸.

    Lassalle quer dizer com isto que não é possível conceber uma sociedade onde não existam os fatores reais de poder: todos os países possuíram sempre uma Constituição real. A diferença para os tempos modernos é que surgiram as Constituições escritas nas folhas de papel, cuja missão é estabelecer documentalmente todas as instituições e princípios do governo vigente.

    Em conclusão, Lassalle disse:

    Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar¹⁹ .

    Também parece ser insuficiente a compreensão da Constituição através de uma análise estritamente sociológica, ou melhor, vendo-a primordialmente pelo prisma do mundo do ser, ignorando sua função jurídica de conformação da sociedade.

    1.2.3. INSUFICIÊNCIA DAS CONCEPÇÕES FORMALISTA E SOCIOLÓGICA E NECESSIDADE DE INTERAÇÃO ENTRE AS DUAS CONCEPÇÕES

    Não se afigura adequada a opinião segundo a qual a legitimidade, ou a validade, da ordem jurídica e, em última análise, a validade da Constituição esteja subordinada exclusivamente a uma norma hierarquicamente superior. Uma norma específica (concreta) encontra sua razão de existir na vontade²⁰ daquela autoridade que tem competência/dever-poder para editá-la. Em se criando a norma, para ela ser válida o procedimento de sua criação (estabelecido por norma superior) deverá ser necessariamente observado. Da mesma maneira, a criação de uma norma geral depende da vontade de seu criador (o conjunto de parlamentares, em regra) e da subordinação de ato criador a uma norma superior que estabelece o rito de sua criação.

    Disso resulta que a criação de qualquer norma depende, concomitantemente, de elementos do mundo do ser e de elementos do mundo do dever-ser. Parece imprópria a ênfase – se não exclusivamente, majoritariamente – num ou noutro aspecto, quais sejam a normatividade e a realidade.

    Mais que qualquer outra norma jurídica, a Constituição, como estatuto jurídico do político, depende, para sua eficácia, dos fatores reais de poder – como bem demonstrou Lassalle.

    Nesse sentido, perfeita a colocação de Schmitt, quando afirma que a Constituição - em sentido absoluto, como concreta maneira de ser resultante de qualquer unidade política, como a concreta situação de conjunto da unidade política e ordenação social de um certo Estado²¹ - precede a Constituição jurídica (positiva).

    Diz o autor que "a Constituição em sentido positivo surge mediante um ato do poder constituinte"²². O ato constituinte não contém qualquer tipo de norma, mas a totalidade da unidade política considerada em sua particular forma de existência.

    "Este ato constitui a forma e o modo da unidade política, cuja existência é anterior"²³. A unidade política não surge porque se criou uma Constituição (positiva). A Constituição em sentido positivo só contém essa unidade política. Essa Constituição é uma decisão consciente que a unidade política, através do titular do poder constituinte (o povo, na democracia; o monarca, na monarquia autêntica) adota.

    A partir dessa constatação, Schmitt estabelece a distinção entre Constituição e leis constitucionais. Constituição (a essência da Constituição) precede a Constituição positiva e se identifica com a unidade política, a partir da qual se cria uma Constituição positiva. Os demais conteúdos estabelecidos na Constituição – leis constitucionais – são normas, leis, às quais se atribuíram forma de leis constitucionais.

    A distinção entre Constituição e lei constitucional só é possível, sem embargo, porque a essência da Constituição não está contida em uma lei ou em uma norma. No fundo de toda normação reside uma decisão política do titular do poder constituinte²⁴.

    Para Schmitt, uma unidade normativa não deriva do simples fato de normas serem criadas por órgãos competentes para criá-las, segundo um sistema normativo puro. A Constituição vale por virtude da vontade política daquele que a dá.

    Schmitt afirma que uma Constituição é válida quando emana de um poder constituinte e se estabelece por sua vontade. Vontade indicando o mundo do ser como origem de um dever-ser. Diz o autor que uma norma não se estabelece por si mesma, mas porque é derivável de preceitos justos e não só de positividade.

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