Sertão mundo: narrativas sertanejas
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Sertão mundo - Maíra Leite Escórcio
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
AGRADECIMENTOS
A Deus e a meu guia espiritual, José Gabriel da Costa. Conhecido como caboclo da floresta amazônica, ele é antes um sábio sertanejo do Coração de Maria, sertão baiano, e vem me ensinando a viver a vida com mais simplicidade na Luz, na Paz e no Amor.
Em seguida, aos sertanejos nordestinos, tanto os que participaram das entrevistas deste estudo como os que tive a alegria de conhecer em viagens. Com seus exemplos de vida, guardados em meu coração, aprendo a cada dia a ser mais humana. À Divina, que me falou de sua família e do sítio Galinhas, abrindo generosamente esse universo sertanejo para que o trabalho acontecesse a contento.
À Dr.ª Elza Maria do Socorro Dutra, por aceitar levar o pensamento heideggeriano para o sertão nordestino, ser surpreendida pela minha gravidez repentina logo no início do trabalho, pelas orientações certeiras, parceria neste livro e confiança.
Quero fazer um agradecimento e homenagem aos que vieram antes de mim: após muito refletir e buscar sentido, agradeço à minha ancestralidade árabe peregrina. Ela traz também a marca da vida em regiões semiáridas e desérticas do mundo. Reforçar esse laço abre para mim a possibilidade de maior compreensão da forte ligação que eu sinto com a vida no semiárido.
Sou grata a minha mãe, Elizabeth Lage Leite Escórcio, pelo amor, carinho, presença e dedicação de sempre. Ela me ensinou a ser inteira em tudo o que faço; com ela eu posso contar para o que der e vier. Meu pai, José Avelino de Vasconcelos Escórcio, homenagem póstuma, pelos exemplos de vida e de ser humano. Dentre tantos ensinamentos, ele me mostrou que na rudeza do lidar com a terra se desvela a simplicidade da vida no cuidado.
À Genival Teixeira Vasconcelos Filho, pelo compartilhado e pela amizade.
A quem vem depois e continua, minha filha amada, Janaína Escórcio Vasconcelos, conhecida também como minha flor de mandacaru
, que eu tive a boa surpresa de gestar juntamente com à pesquisa e agora acompanho na vida. Ela traz em seu nome a ligação com a água, nossa origem, nosso meio de viver na Terra e a nossa destinação.
Frutos da Terra
Esta terra dá de tudo, que se possa imaginar.
Sapoti, jabuticaba, mangaba, maracujá,
Cajá, manga, murici, cana caiana, juá,
Jabuti, umbu, pitomba, araticum, araçá.
Engenho velho ô, canavial
Favo de mel no meu quintal
O fruto bom dá no tempo
No pé pra gente tirar
Quem colhe fora do tempo
Não sabe o que o tempo dá
Beber a água na fonte
Ver o dia clarear
Jogar o corpo na areia
Ouvir as ondas do mar
Engenho Velho ô, canavial
Favo de mel, no meu quintal.
LUIZ GONZAGA
PREFÁCIO
Alguns encontros que temos na vida nos enchem de surpresa e satisfação. Um deles, foi me deparar com Maíra e seu, ainda, projeto de dissertação de mestrado. Em primeiro lugar, encantou-me o tema e originalidade do estudo, uma vez que muito pouco tem sido pesquisado nessa área, em especial escutando os moradores do semiárido, falando da própria experiência de habitar no sertão castigado pela seca. O segundo, perceber que sua autora era uma jovem, paulista, que havia se apaixonado pelo nordeste e, mais especificamente, pelo sertão nordestino. Desde aquele momento o germe de uma pesquisa criativa, aprofundada, inovadora e que traz consigo muitos elementos que nos ajudam a pensar acerca do habitar na região do semiárido, já se fazia presente. A pesquisa da Maíra, desde seus primórdios, já revelava uma clareza grande com relação aos seus objetivos, metodologia e perspectivas teóricas. A pesquisa configurou-se como uma pesquisa viva, motivada por uma paixão inicial, e que proporcionou um belo encontro entre pesquisador e colaboradores. As autoras construíram uma metodologia muito singular, quando escolheram apresentar as narrativas dos entrevistados, em especial do Sr. Francisco.
Como resultado do seu mestrado, Maíra, acompanhada por sua orientadora, Elza, presenteia-nos com um texto instigante, vivo e que nos convida à reflexão. Assim, em um primeiro momento, as autoras nos apresentam o cenário inicial do estudo, contextualizando o lócus da pesquisa, o formato escolhido para se aproximar do fenômeno a ser estudado e deixando clara a força do pensamento fenomenológico existencial, ancorado na hermenêutica heideggeriana, elemento basilar do estudo.
No segundo capítulo, somos convidados a olhar para o semiárido nordestino, seu panorama político-social, assim como o modo de conviver com as secas e as diversas possibilidades de lidar com a escassez de água. Também traz a religiosidade sertaneja como elemento importante do imaginário nordestino e de seu modo peculiar de tratar a incerteza de um inverno satisfatório e suficiente para dar vida e viço ao plantio feito pelos habitantes daquelas terras castigadas pelo sol.
A seguir, de modo claro e correto, Maíra apresenta Heidegger e sua fenomenologia hermenêutica. Para tanto, destaca alguns dos existenciais, tais como: ser-no-mundo, espacialidade, corporeidade, compreensão, disposição e decadência. O cuidado é discutido, como evidencia Heidegger, como modo de ser e estar no mundo; assim como o dasein, um ser de cuidado, que é em um tempo e um espaço específico. A autora deixa claro, a partir de Heidegger, que o dasein é histórico, habitando em um mundo de cultura. Fechando essa discussão, as autoras refletem acerca da técnica, compreendida como um modo de desencobrimento da verdade.
No capítulo quatro, as pesquisadoras nos conduzem a uma viagem ao interior do Rio Grande do Norte, já no estado do Ceará, ao sítio Galinhas, apresentando-nos o Sr. Francisco, principal colaborador da pesquisa. Com ele, transportamo-nos às vivências e experiências de um sertanejo vivido, pleno de experiências e sabedorias. Suas dores, angústias, medos e sonhos nos são narrados com uma sensibilidade ímpar. Ana, Sidnéia, Jacinto e João vêm complementar a descrição do Sr. Francisco acerca dos modos de ser-no-mundo de sertanejos do semiárido nordestino. E é a partir dessa realidade, da qual somos convidados a participar, que é construída uma bem tecida teia compreensiva das narrativas dos colaboradores, atravessadas pelas discussões teóricas dos autores com os quais as autoras dialogam, assim como das reflexões e questionamentos que se vão desvelando nessa realidade.
Certamente esta é uma leitura que nos transforma, que nos convida a viver uma experiência, convocando-nos a estarmos presentes. Por isso, apresentar esta obra me enche de prazer e satisfação. Espero que a leitura deste livro possa despertar, em cada um de vocês, leitores, uma sensação de compartilhamento com esse modo-de-ser-nordestino, tão sensivelmente apresentado. Espero que esta leitura lhe seja prazerosa, como o foi para mim.
Prof.ª Dr.ª Ana Maria Monte Coelho Frota
Professora titular da Universidade Federal do Ceará
APRESENTAÇÃO
Instigada pela questão da vida na perspectiva de oferta irregular da água e nutrida por experiências calorosas que tive em viagens pelo sertão nordestino, encontrei solo fértil para iniciar uma pesquisa sobre a experiência de sertanejos, sentido e significados da água em suas vidas cotidianas no semiárido.
Paulistana nascida e criada na capital de São Paulo, mudei para o nordeste no final do ano de 2013, onde conheci a Prof.ª Dr.ª Elza Maria do Socorro Dutra na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Entre os anos de 2014 e 2016, o estado de São Paulo, em especial a capital, enfrentou uma forte crise hídrica que fez com que fossem implementadas mudanças na distribuição de água nas cidades, sendo esta apenas o prenúncio da crise hídrica mundial que vivemos e que promete se agravar, segundo relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU, 2015), ao longo dos próximos 30 anos.
Assim, desse encontro na UFRN, sensibilizadas com a crise hídrica que despontava com maior intensidade em minha cidade natal e com o solo nordestino fértil de experiências nesse horizonte de escassez de água por longos períodos, o trabalho ganhou forma e conteúdo ao longo de dois anos e culminou com a elaboração deste livro.
Como a vida é possível quando a água falta? Quais maneiras as pessoas encontram para lidar com a falta? E pessoas que trabalham com agricultura e dependem de água para o trabalho? Qual é o sentido de cultivar a terra sem segurança de que esse trabalho será regado?
O filósofo Martin Heidegger (2005) coloca que o humano é o ente que possui um interpelamento por sentido e é sempre ser-no-mundo, ou seja, tem os outros entes referenciado a ele, humano, numa relação. Isso significa que não é possível pensarmos no homem como entidade isolada, pois, existencialmente, ele é um ser em relação com outros numa teia de significados, a dizer, ser-no-mundo. O mundo pode ser compreendido como totalidade de significados que sustenta a aparição do humano, viabilizando o aparecimento dos outros entes. Assim, a convivência com o semiárido nordestino deve ser questionada a quem ainda tem esse horizonte referencial como contexto de experiência em seu cotidiano, a dizer, o próprio sertanejo. A partir desses questionamentos por sentido e significados e da necessidade de estar no contexto de existência dessas pessoas que nosso trabalho foi amparado na perspectiva da Fenomenologia Existencial.
Quando pesquisamos sobre a distribuição global da água, é perceptível o quanto a sua distribuição é muito desigual, sendo o Brasil um dos países com maior reserva de água potável no mundo. Dessa mesma maneira, quando nos debruçamos sobre a realidade brasileira, essa desigualdade se reproduz, sendo que a região nordeste possui apenas 3% das reservas hídricas do país, e é onde se localiza a maior parte da região semiárida, a qual ocupa 86% do Nordeste (Ministério da Integração Nacional, 2015).
Dentre as características da região semiárida, destacam-se a irregularidade das chuvas, grande evaporação da água (três vezes maior que a precipitação), clima quente e bioma da caatinga (Malvezzi, 2007). Contudo, na Nova Delimitação do Semiárido Brasileiro (Ministério da Integração Nacional, 2015), a escassez da água é relativizada, sendo evidenciada novamente a questão da sua distribuição desigual. Nesse ponto, há uma mudança em relação à distribuição desigual da água que vai para além de questões ambientais, as quais se reproduzem devido a situações político-sociais envolvidas nessa temática. Dessa maneira, realizamos uma reconstrução histórica das políticas sociais na região semiárida brasileira, desde a antiga relação entre seca e poder que ganhou força na figura dos coronéis, até as políticas de convivência com o semiárido que foram iniciadas a partir dos anos 90.
Durante algumas viagens que eu já havia realizado pelo sertão nordestino, muitos sertanejos já indagavam a respeito de obras de beneficiamento da população que eram prometidas e pareciam que nunca ficariam prontas, projetos que não saiam do papel e o quanto algumas obras e políticas só beneficiavam aos grandes latifundiários. Ao mesmo tempo, a degradação ambiental, a presença de lixo e a falta de saneamento básico sempre foram um fato alarmante que observei pelas minhas andanças sertão adentro.
Dessa maneira, quando refletimos sobre a vida de pessoas que vivem e trabalham no semiárido nordestino muitas perguntas relativas a esse contexto social específico se abrem. Quando nos lembramos do sertão nordestino, qual pensamento se forma? Quais as imagens disseminadas pela mídia, cinema e literatura sobre o semiárido?
A imagem de um sertão assolado pela seca e escassez habita, por um lado, o imaginário de muitos brasileiros, sendo ela muito veiculada pela mídia, cinema e literatura. Por outro lado, a ideia de local de festas e religiosidade forte também ganha destaque. Esse imaginário social traz à tona a possibilidade de convivência em locais onde a oferta de água não é constante. O semiárido é local de estudos interdisciplinares, como se nota pela revisão da literatura. Entretanto, ao recolocar o sertanejo como protagonista de sua experiência, poucos trabalhos são encontrados. O que o sertanejo fala a respeito de si mesmo e de sua vida?
Com esse intento, nossa proposta foi a de realizar uma aproximação dessa população para que ela tivesse voz a partir de sua própria experiência, já que há poucos estudos que valorizam o relato do sertanejo. Para tanto, foram realizadas duas viagens para o sertão do Ceará onde fiz entrevistas com sertanejos que tivessem alguma experiência com o trabalho no campo para que assim eles pudessem narrar suas histórias oriundas do contexto de oferta irregular da água relativas a seus trabalhos e experiências cotidianas.
Assim, o ponto forte da nossa obra são os relatos dos sertanejos que foram interpelados ao longo de suas vidas sobre a possibilidade de não ter água para perpetuação de seu trabalho e suas experiências de vida nesse contexto de existência. A partir de suas falas, nossas observações e questionamentos, tecemos uma teia narrativa compreensiva, na qual os olhares se entrelaçam e reveem o sertão nordestino como mundo de múltiplas possibilidades.
Maíra Leite Escórcio e Elza Maria do Socorro Dutra
As autoras
Sumário
1
O que é sertão mundo? 17