Constitucionalismo Multinível, da Europa à América do Sul
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Constitucionalismo Multinível, da Europa à América do Sul - Nery Aguiar Junior
amadurecimento.
1. GLOBALIZAÇÃO E ORDENAMENTO JURÍDICO
As últimas décadas têm sido marcadas pela égide da globalização, mais precisamente, da globalização financeira, comunicacional e produtiva, aprofundando as tendências cosmopolitas da ordem capitalista que deita suas raízes primevas no século XVI. Na moderna contemporaneidade, percebe-se a emergência de novos fenômenos econômicos, políticos, culturais e jurídicos surgidos da reconstrução dos vínculos identitários entre os indivíduos nos mais variados espaços, para além do tradicional território nacional. Vive-se em época de complexidade, do entrecruzamento de normatividades, em que as estruturas do Estado nacional convivem com a presença, cada vez mais pronunciada, das demais estruturas, regionais e mundializadas, da sociedade internacional¹.
Neste sentido, a globalização nos exige atenção, prudência política e agudeza analítica, para que sejam perceptíveis às nuances de realidade diferenciada, longe de poder ser alcançada pela superficialidade dos modismos que decantam a globalização unidimensional, cabível nas retortas exclusivas da economia neoliberal, com sua narrativa homogeneizadora, acrítica e normalizadora do real. Tais modismos intentam refutar toda e qualquer possibilidade de pensar-se uma globalização alternativa, fundada no resgate da dignidade da política, mais precisamente do reconhecimento dos valores construtivos, instituintes da democracia, da soberania popular e dos conflitos que ineliminavelmente a perpassam.
Ao contrário, do veiculado ideologicamente pelos adeptos da visão única da globalização, esta precisa ser compreendida dialeticamente a partir dos elos diferenciados de ritmos, espacialidades e interesses inscritos no mundo plural. Ou seja, a globalização não se dá de um mesmo modo, indistintamente, mas, pelo contrário, depende das condicionalidades de tempo, espaço, projeções das forças, das classes sociais em tensão, em luta, pela sua contínua reconfiguração. A história da sociedade internacional é também a história dos subsistemas regionais, dos graus de autonomia, de complementariedade ou de choque, que mantém com as estruturas internacionais, e com os Estados com suas diferentes potências. Na verdade, a integração regional e internacional são faces de mesma moeda, exercem influências recíprocas sobre uma e outra, em plena concomitância de eventos.
A globalização dos mercados, portanto, vai se fixando desde o deslizamento contínuo entre as partes e o todo, em que a relação entre ambos pode se alterar, passar por mudanças qualitativas, dependendo ainda, da interpretação ou sentido que lhe é atribuído pelas múltiplas instâncias normativas da vida social. Quase sempre, aliás, o que é mostrado como expressão do universal, como o faz o eurocentrismo, nada mais é do que a síntese de interesses particulares ou regionais. Como é possível verificar da história do colonialismo a subjugar povos americanos, africanos e outros continentes, então considerados como espaços de terra nulius
, formado de gente selvagem ou semisselvagem, ao contrário dos civilizados cristãos do velho continente
².
A globalização precisa ser relida por outra ótica, distinta da supremacia liberalista e eurocentristas, que leve em conta as experiências de outros povos e comunidades. A preocupação justa com a universalidade dos valores, com o sentido emancipatório da razão crítica, não pode ser confundida com a defesa das instituições capitalistas, muito menos com a liberdade de mercado ou comércio. É necessário outro Renascimento, outra Ilustração, capaz de dimensionar a globalização polifônica, aberta as diferentes culturas, identidades e histórias, em que se compartilhem matrizes civilizatórias e um inúmero repertório de práticas sociais e institucionais paralelas às europeias³.
O direito, por exemplo, não deve ser visto como técnica simplesmente, conjunto de formas normativas logicamente concatenadas, desprovidas de conteúdo ou sujeitas a qualquer conteúdo, mas como ciência e prática social fundada na ética, na moralidade objetiva dos povos, de seu plexo estimativo de valores que suscitam o espaço do comum, do convívio. Principalmente, quando se trata de realidade descentralizada, menos previsível, assimétrica, como o da sociedade internacional, organizada pelas relações entre Estados. Relações estas, inicialmente voltadas para a temática da guerra e da paz, só se tornando aberta a outras questões, na modernidade tardia, ao incorporar-se povos, nações e estados não europeus como legítimos sujeitos do direito internacional.
Feitas estas considerações iniciais, inicia-se este estudo empreendendo-se uma discussão sobre a constituição cosmopolita e o sistema global e regional de proteção de direitos. Tal discussão objetiva verificar a possibilidade de constitucionalização do direito internacional com vistas à materialização da supranacionalidade.
1.1 A CONSTITUIÇÃO COSMOPOLITA E O SISTEMA GLOBAL E REGIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS
Constituição é termo que pode ser inserido entre as palavras polissêmicas, pois tem mais de um sentido ou mais de um conceito. Neste trabalho interessa conhecer apenas aqueles sentidos ligados à estruturação do Estado. Vários são os conceitos de Constituição apresentados pela doutrina. Para Rosah Russomano,
Constituição é o complexo de normas – escritas em regra, costumeiras às vezes – que alicerçam o Estado de Direito e que, superiores a todos os demais preceitos jurídicos, no âmbito do Direito interno, estabelecem a forma de Estado, a forma e o regime de governo, estruturam os órgãos do Poder Público, determinam seu funcionamento e suas limitações, declaram e garantem os clássicos direitos da pessoa humana, declarando e resguardando ainda os direitos sociais⁴.
Designa também o conjunto dos princípios que regulamentam a organização básica do Estado e, neste aspecto, não precisa obrigatoriamente ser um texto unitário, mas um agrupamento de normas, costumes e tradições políticas. Neste entendimento, há um entendimento igualmente amplo de Estado, que equivale a toda forma de uma sociedade se organizar com um mínimo de coordenação política e administrativa⁵.
A Constituição é a síntese do Estado que ela representa. É a estruturação básica do ente que se cria pela junção da parcela de liberdade individual das pessoas que ocupam determinado território e que almejam viver em harmonia, sob a égide de um poder organizado.
No Século XXI, o direito cosmopolita transcende o conceito de nação, Estado, pátria e estende a toda a comunidade universal. Conota o direito e a obrigação entre todos os seres humanos a uma coexistência digna, consistindo essa dignidade no direito à diferença na medida em que ela dignifica a pessoa ou a comunidade, e a igualdade, à medida que ela não inferioriza ou descaracteriza a pessoa/comunidade⁶.
Entende-se que uma Constituição cosmopolita traz para si não apenas os sistemas de proteção global e regionais, como também exige muitos outros pressupostos a fim de que essa Constituição logre êxito, sendo o principal deles, incorporar a dimensão do político (Chantal Mouffe)⁷, tornando possível, desta forma, a abertura para o livre embate de ideias entre adversários (não inimigos), capazes de aliar o político ao jurídico, construindo normas que sirvam como dispositivo para emancipar, libertar e dar sustentabilidade às pessoas, ou mesmo comunidades e sociedades, dentre outros⁸.
Um segundo pressuposto que será detalhado ao longo deste capítulo é o agonismo.
O agonismo⁹ (livre e sadio embate de ideias numa esfera pública) será a chama que manterá acesa essa dinâmica vivencial em que a tradição e o novo poderão se defrontar e decidir quando e como novos modos de vida terão vez.
O agonismo também tem um papel fundamental: impedir que ressentimentos, conflitos sociais e a falta de reconhecimento e consideração sirvam de instrumentos políticos fundamentalistas adormecidos e que possam surgir a qualquer momento com força aniquiladora¹⁰.
Os sistemas constitucionais tradicionais, ao não potencializarem esse link entre o político e o jurídico, não extraem a dimensão concretizadora da Constituição, pois não trazem para a esfera pública as demandas emancipatórias e libertadoras reivindicadas pelas pessoas e comunidades.
A Constituição, em seu projeto originário foi um projeto emancipatório de liberdade e igualdade, mas, para alcançar os objetivos aos quais se propõe é preciso que exista participação política e esta participação nem sempre se evidencia, o que abre espaço para o ativismo judicial e para o que Garcia, Cavalca e Montal chamam de hipertrofia da Constituição¹¹.
Não obstante os argumentos favoráveis ao ativismo, em geral, a doutrina costuma se debruçar acerca de seus pontos críticos e desfavoráveis. Nesse sentido, ao abordar o tema de maneira técnica, Maria Benedita Urbano¹², sem infirmar a importância devida, aponta três objeções, tanto à judicialização quanto ao ativismo judicial, quais sejam: os riscos para a legitimidade democrática, a politização indevida da justiça e os limites da capacidade institucional do Poder Judiciário.
A Constituição não é somente folha de papel, tampouco tem efetividade plena se ignorar as forças reais de poder que estão por trás dela. É preciso que a sociedade tenha vontade de Constituição e a considere como instrumento jurídico fundamental para a conquista de um mundo melhor, de estabilidade, segurança e desenvolvimento justo.
A Constituição cosmopolita idealizada acolhe uma das principais críticas feita por Bruce Ackerman¹³, quando examina o sistema constitucional norte-americano e toma ciência de seu legado de injustiça, enfatizando que não existe uma mão invisível guiando os Estados Unidos e se o país almeja uma vida mais justa, não há um substituto para a política engajada e um governo ativista. Desta forma, conclama o povo norte-americano a reconstruir uma fundação que seja mais justa a seu povo.
Assim, o defendido por Ackerman¹⁴ referente ao povo norte-americano, a Constituição cosmopolita, conclama toda a humanidade para mitigar o quadro de indigência que rege o mundo, buscando sentido para o que se desenvolve e se realiza (economia, tecnologia, ciência dentre outros.), que deve servir para elevar a condição humana e não para sua degradação.
A Constituição Cosmopolita vai em sentido oposto, defende um novo modelo, um modelo coexistencial, com a eliminação das armas nucleares e um modelo de desenvolvimento cultural, artístico, econômico, técnico e político¹⁵.
Assim, não se cogita que levar a sério o político
e, consequentemente, o conflito em sua face agonística, vá abater uma Constituição cosmopolita. Segundo Higino Neto,
A recepção do político pela dimensão agonístico-normativa da Constituição é o instrumento mais adequado para conquista, garantia e proteção de bens essenciais à dignidade da pessoa humana, solidariedade e sustentabilidade dos mais variados modos de vida, pois não se busca excluir, mas construir coexistencialmente novos mundos¹⁶.
A experiência norte-americana, da Organização das Nações Unidas, dos diversos tratados e pactos que se encontram em vigor e da UE, torna possível concluir que, apesar de difícil, é possível a construção de sistemas jurídicos que sirvam nações e adicionem novas espécies de normatividades.
Tradicionalmente, os modelos constitucionais supostamente fundamentados na identidade, povo, território, Estado e comunidade de valores, podem se abrir a outros modelos mesmo que não corretamente pensados, mas cujo objetivo possa ser delineado, qual seja: elevar a dignidade, emancipação, libertação, solidariedade e sustentabilidade dos modos de viver, construindo pontes por meio da viabilização do discurso entre todos os homens, não rumo a uma pacificação, mas à construção de uma humanidade viva, ativa
¹⁷.
Decerto que essa Constituição cosmopolita objetiva criar outro locus entre o constitucionalismo nacional e o direito internacional, compartilhando o poder constituinte que permanece sendo exercido a nível local (nacional) e regional (MERCOSUL, UE, Nafta etc.).
O que se almeja, assim,