O Amargo Paladar da Artificialidade
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O Amargo Paladar da Artificialidade - Natan Wanderley
Sumário
1
Ar vernáculo. A calmaria instalada na rotina dos indivíduos. Lugar onde todos conhecem sua feição e os pontos de riscos. Uma placa enorme fixada no solo revestido de pavimento, e nela, a frase, "Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Avante, povo!". A máxima, de letras grandes e gordas, foi escrita na entrada de Brasil, uma cidade-país de tamanho imensurável cuja população manifestava características de uma sociedade mecânica. Cada letra escrita naquela placa denotava um ar de hegemonia. Uma grande veracidade.
2699. Mais um ano, e finalmente o último que separava a tão aguardada eleição presidencial de 2700. Saber que esse evento se aproximava era como se, para as pessoas de Brasil, nunca existisse uma batalha entre burgueses e proletariados, como se a Lei Áurea fosse assinada outra vez e qualquer situação que caracterizasse o seu descumprimento estaria sendo exterminada pressurosamente. Nordeste, Norte, Centro-Oeste e Sudeste formavam os bairros de Brasil. A tarefa de administrá-los era executada pela figura Jânio Collor — um indivíduo com um metro e setenta de estatura. Produtor de olhares conturbados; arrancadores de náuseas.
Trimm! Trimm! Trimm! Trimmm!
Um som extremamente agudo e desagradável ecoava por toda a arquitetura daquela comunidade (era o despertador!). Por um longo período, ninguém entendia o motivo pelo qual tamanho objeto se localizava na praça central da comunidade, invocando todos para ouvir os raciocínios de Collor. Sim, a população achava isso absolutamente repugnante, já que existiam bilhetes e o presidente poderia enviá-los para todas as casas. A sua obstinação em perseguir imperceptivelmente os seus miseráveis era, para ele, uma viagem ao Olimpo.
— Bom dia, caros cidadãos de Brasil — disse Jânio, erguendo suas esquisitas sobrancelhas ao subir no palco que foi construído no eixo da praça.
Nesse momento, boa parte das pessoas ouvia o começo do discurso do presidente em pé, já que os desconfortáveis sofás de madeira fixados no solo da pracinha serviam apenas para diversificar a coloração do lugar. Mas ainda existiam os atrevidos que estavam desafiando as horríveis torturas desses móveis. (Argh! Achavam que estavam sentados sobre divãs?)
— Chamei-os para informar uma situação que está há meses afligindo o meu descanso. Uma forte ansiedade em falar isso, talvez?
— Prossiga, senhor presidente — interferiu um cidadão, fitando os passos de Collor.
— Bom, não irei consumir o tempo de vocês, então serei o mais breve possível — acrescentou tentando emitir uma voz natural. — Esse ano será um período de mudanças para a nossa cidade; até o ano passado eu estava oferecendo emprego de alfaiate. Hoje... Ah... hoje... — a sua voz casava com uma grande inescrupulosidade. — Todos estão despedidos! — gritou; e seu tom era peremptório — e agora os senhores serão dependentes das vendas de flores, por isso rezem para que os roseirais não sejam tragados pela seca.
Durante o discurso, os vírus da palidez e angústia invadiam os corpos daquela grande plateia e, com essas últimas indelicadas palavras do presidente, todo o corpo social que estava concentrado na praça saiu seguindo a trajetória para as suas devidas residências.
Um silêncio de quinze dias dominava Brasil. Ninguém saía de suas casas. Era um protesto contra aquele discurso majoritariamente desumano? ... (um crédito a essa hipótese!). As avenidas de Brasil não saboreavam mais os alegres passos dos pobres indivíduos. Absolutamente todo o território estava invadido pelo fantasma da solidão. Há ainda os que disparavam: estou me sentindo como se uma guerra fosse declarada e esse território fosse o alvo de sua destruição
.
Pela alternância de dias e noites, a quietude que se fixava na cidade foi evacuada. A população não tinha muito o que fazer. Dessa forma, restava apenas obedecer às ordens do impiedoso presidente. A primeira claridade das segundas-feiras até as sextas-feiras era observada por uma jovem intelectualmente provocante e imaginativa. Tinha dezesseis anos e, como sua companhia, a avó. Às seis e quinze da manhã, os comerciantes — fazendo o percurso para os roseirais — diziam se esbarrar com essas duas criaturas que caminhavam para a escola A arte de Jânio, um ambiente direcionado para a produção de poesias.
— Vovó, aquelas palavras de Jânio fizeram-me refletir e hoje desenvolverei meu primeiro poema denunciando todas essas atrocidades. Cadê os direitos humanos? Morreremos de fome, oh! — dizia Mafalda do Amaral com uma voz extremamente elevada.
— Querida, há alguns tempos, na minha admirável juventude, existia um mito cujo relato se baseava na maldição de um quinto presidente de Brasil. A narrativa afirmava que o quinto chefe de nossa cidade-país implantaria uma ditadura de robôs — explicou a Sra. Esther.
A Sra. Esther era uma mulher pouco volumosa, de cabelos pretos e sempre amarrados. Usava, quase todos os dias, vestidos floridos. Quando lhe perguntavam por que tinha uma paixão por vestidos floridos, respondia que toda a natureza transmitia um bom sossego.
— Ditadura de Robôs? Em Brasil? — Mafalda insistiu em prolongar a conversa.
— Sim, em um futuro não tão distante, a evolução da inteligência artificial será o único parâmetro para o progresso social. Inclusive, segundo o mito, essas máquinas serão criadas para propagarem o medo, Mafalda — Esther falava tão pausadamente, mas ao mesmo tempo um pouco preocupada com a sua neta caso esse mito viesse a eclodir.
— Uma lástima. Precisarei inovar na minha jornada acadêmica, vovó; não quero correr o risco de ser prejudicada nos meus afazeres — afirmou a jovem, contando os passos que a separava da escola A arte de Jânio. Depois, direcionando-se para Esther: — Nos vemos às onze.
As duas se despediram. Mafalda entrou naquele local exuberantemente poético.
1,2,3, uhu! Vivemos em um mundo certo, não há divisórias! Não há antíteses! O contrário do bem é o bem e estamos nele!
Brotava por todos os corredores da escola esse ritual, tal como ondas sonoras invadindo fortemente os ouvidos de quem passasse pelo seu epicentro: a sala número dez. A sala de Mafalda. Demorou não mais que vinte segundos para que ela escolhesse o melhor local para ser o seu assento. (Na segunda fileira da esquerda para a direita, cadeira na terceira posição, perto de um dos fornecedores de conhecimento
). Foi assim como posicionou-se.
— Bom dia, meus queridíssimos alunos — saudava a professora colocando uma arte, feita por Jânio Collor, sobre o piso de um simultâneo preto e branco. — Creio que a mente de vocês não está sendo subitamente bombardeada de objeções acerca desse quadro, certo?
Uma quantidade catastroficamente mínima de alunos esperava um sentimento de aversão por intermédio dos seus colegas. (Não aconteceu!)
— Isso é arte! Um dos papéis que ela proporciona é a percepção; a realidade de uma determinada sociedade e, por isso, não devemos questioná-la — explicava a professora, apontando para a obra que retratava a morte, miséria, tristeza.
O seu discurso transbordava um tom que era condizente com as relações de um Centro de Condicionamento da Morte. Deveriam achar a morte, proveniente de injustiças, algo normal? Categoricamente, as falácias lançadas para o quadro de Collor gritavam tal ato. Em resposta à tirania que sucedera, Mafalda movimentou as suas pernas de uma forma um tanto agonizante, mostrando claramente o quanto estava desconfortável.
— Mas o que está acontecendo aqui? — disse ela em um tom baixo. Dois rapazes ouviram os sussurros do protesto e, então, com um gesto tipicamente tímido, tocaram no ombro da jovem para avisar que