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A Urna Dos Desejos
A Urna Dos Desejos
A Urna Dos Desejos
E-book327 páginas2 horas

A Urna Dos Desejos

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Sobre este e-book

A Urna dos Desejos é um livro sedutor. Contém na medida certa uma boa dose de ironia, tensão e fatalidade. Os personagens atormentados trazem questionamentos interessantes: existem limites para os nossos devaneios? Todas as crianças são engraçadas e inocentes? Como você encara seus medos? Nesse universo criado pelo autor, fantasia e realidade se misturam. De repente, você pode não saber mais em que mundo está.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de nov. de 2015
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    A Urna Dos Desejos - Amauri Chicarelli

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    A Urna dos Desejos

    (Contos).

    Capa: Sergio Gomes Rosa

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    Índice

    O Carrossel.

    As Canções da Marquise.

    O Contraste das Ondas.

    O Abrigo.

    Meu Amigo Pedro.

    Traição.

    O Teleférico.

    Mata Perigosa.

    A Urna dos Desejos.

    Nivaldo.

    Os Sonhos de Cesar.

    Os Ventos.

    2

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    O Carrossel

    Justino sentiu-se envergonhado daquilo. Não era a

    primeira vez que aquele mal estar inexplicável secava sua

    garganta e amolecia suas pernas quando se aproximava de um

    parque de diversões. O filho puxava-o pela mão enquanto ele

    tentava distraí-lo e leva-lo na direção contrária.

    —Vem papai, vem.

    — Você não quer pipoca filho?

    — Depois papai agora eu quero ir no cavalinho.

    Era tudo que ele não queria ouvir. Tentou atrair o menino

    com maçã do amor, algodão doce, refrigerantes e todas as

    guloseimas existentes no parque, mesmo com a proibição da

    ex-mulher que mantinha uma atitude radical sobre a

    alimentação do filho. Mas de nada adiantou, a criança queria

    andar no carrossel e não havia nada que ele pudesse fazer.

    Antes de chegar ao parque, verificou a localização do

    brinquedo para evitar se aproximar dele, mas o encantamento

    de estar pela primeira vez depois da separação conturbada,

    sozinho com André, fez com que se esquecesse de tudo e só a

    mão da criança puxando a sua era o que importava nessa hora.

    Sem perceber, tinham caminhado na direção do temido

    brinquedo e ele não podia negar nada ao filho naquele

    momento. Caminhou resignado e tenso ao lado do menino,

    tentando manter a calma.

    Quando chegaram frente àquela esfera giratória cuja

    cobertura arredondada lembrava vagamente a terra vista do

    espaço, Justino teve que se segurar na cerca de madeira que

    contornava a tropa de cavalinhos de todas as cores. Suas mãos

    transpiravam e o suor escorria pela testa onde os cabelos lisos e

    relativamente compridos colavam na pele clara. Ele já tinha

    comprado os ingressos e os dois esperavam sua vez na fila. Na

    plataforma os cavalos subiam e desciam no seu galopar

    indiferente e silencioso, sempre sorrindo com seus grandes

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    dentes brancos e com os olhos fixos no nada enquanto giravam.

    Parecia que os animais de mentira davam risadas zombeteiras e

    o eterno movimento de sobe e desce era mórbido e desafiador

    Aqueles sorrisos hipnotizavam o bom senso e a razão,

    enquanto desafiavam o tempo passado e o futuro desconhecido.

    Justino não sabia ao certo de onde vinha aquela fobia de

    carrossel. Não sabia nem se era do carrossel ou dos cavalinhos.

    Talvez dos dois. Sabia montar e não temia os cavalos, mas não

    podia chegar nem perto daqueles brinquedos sem sentir uma

    apreensão inexplicável. Sua infância foi marcada pelas

    histórias bíblicas contadas pela mãe religiosa que lia com

    grande dificuldade o livro sagrado quase todas as noites para

    ele e para o irmão mais velho, que se encantavam com a

    astúcia de Davi, a força de Sansão e o poder de Moisés contra o

    Faraó teimoso. Todas essas histórias contadas, onde o bem se

    contrapunha ao mal e onde a morte estava sempre presente, não

    afetaram de maneira alguma sua mente infantil. Naquela

    pequena fazenda onde nascera as crianças aprendiam desde

    cedo a conhecer a morte e mesmo a conviver com ela. Viam os

    animais serem sacrificados e depois servidos como alimento,

    sem que isso provocasse perguntas difíceis de responder pelos

    pais sem instrução. A morte era tão natural quanto à vida. Mas

    a descrição dos quatro cavaleiros do apocalipse foi uma coisa

    que marcou sua vida para sempre. Não parecia crueldade a

    morte de Golias, do filho do Faraó ou dos milhares de filisteus

    exterminados por Sansão. Mas os quatro cavaleiros não

    queriam matar pessoas malvadas, queriam destruir o mundo.

    —Vem papai, vem. É nossa vez.

    Vacilante e confuso, ele transpôs o portãozinho da cerca

    de madeira colorida, com passos incertos. Apertou a mão do

    filho sem perceber que estava machucando até o menino

    reclamar e faze-lo voltar à realidade. Carinhosamente colocou

    André no dorso do animal de brinquedo e procurou se

    controlar. A criança tinha escolhido o cavalo preto e o pai

    mesmo sem poder ver o próprio rosto, sabia que estava pálido.

    Quando afinal a roda começou a girar lentamente e depois se

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    estabilizar, ele sentiu que não havia mais nada sob seus pés.

    Estranhamente o chão havia desaparecido e tudo ao redor foi

    esvanecendo em câmera lenta e os objetos de transparentes que

    foram se tornando aos poucos, acabaram sumindo. Justino

    sentiu-se cercado pelo vazio. Os brinquedos ao redor e as luzes

    desapareceram juntos com os sons dos gritos e dos risos das

    crianças. Não havia mais qualquer coisa ao redor, apenas a

    contraditória presença do nada absoluto. Como nos sonhos que

    tivera desde a infância. Sonhos proféticos prevendo o fim de

    tudo no dia em que ele subisse em um carrossel.

    Aquele percurso interminável e vertiginoso, aquela

    gangorra giratória chacoalhavam o cérebro no interior do

    crânio. Teria o órgão se desprendido dos ligamentos que o

    mantinham em seu lugar? Não sabia mais o que era realidade e

    o que era alucinação. Tentou olhar para o céu, mas não viu o

    azul límpido decorado com nuvens brancas que vira pela

    manhã ao abrir a janela do quarto e tentar adivinhar como seria

    o dia.

    Justino desesperado procurava o filho, mas não via nada

    além do nada. Sentia apenas que continuava girando numa

    plataforma invisível até perceber que não estava sozinho. De

    tempos em tempos apareciam as figuras de quatro cavalos que

    ele diferenciava pela cor de cada um. Tentou se esquivar das

    imagens que desfilavam ao seu redor e acabou caindo de costas

    no que julgou ser um assoalho de tábuas rústicas. Ao olhar para

    cima, viu que a abóbada celeste parecia enfurecida por

    milhares de fogos de artifícios atômicos e seus cogumelos

    gigantes no meio de labaredas espalhadas por toda sua

    extensão. Desviou o olhar e então o mundo retornou. Mas a

    terra, seu bairro e o parque não existiam mais como eram antes.

    Os ferros retorcidos dos outros brinquedos estavam vermelhos

    como brasas, dilatados pelo calor da chuva de meteoros que

    caia do céu. Podia ver também corpos de homens, mulheres e

    crianças dilacerados por toda parte, pegando fogo. Todos os

    outros cavalinhos estavam irreconhecíveis, destruídos pelas

    pedras e queimados pelo fogo. Somente os quatro continuavam

    a galopar em torno dele, indiferentes ao que acontecia.

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    A voz do filho tirou Justino daquela alucinação.

    ---Vem papai, acabou.

    Justino recobrando-se do pesadelo sentiu que ainda estava

    ao lado do cavalo segurando André pela gola do macacão jeans

    e que o menino estendia os dois braços em sua direção. Ainda

    atordoado viu que o filho estava sobre um cavalinho branco.

    Mas como? Tinha certeza absoluta que ele havia escolhido o

    cavalo preto. Mas não tinha tempo para pensar nisso agora.

    Pegou o filho e apertou contra o peito para aliviar o sofrimento

    das visões que teve. Saiu dali o mais depressa que pôde e

    levou-o para casa enquanto tentava responder às perguntas

    dele, que falava o tempo todo. Ao voltar para a própria casa,

    serviu-se de uma grande dose de uísque puro. Deitou-se no

    sofá da sala e dormiu imediatamente.

    Foi um sono profundo e vazio, sem sonhos ou pesadelos,

    mas o vazio do sono foi o pior que poderia lhe acontecer.

    Acordou molhado de suor quando a TV, programada para ligar

    automaticamente na hora de seu telejornal preferido anunciava

    pela voz tensa do locutor, as tempestades solares que causavam

    gigantescas explosões na grande estrela surpreendendo os

    astrônomos e físicos. Os telescópios espaciais transmitiram

    para os centros de pesquisas do mundo todo, as imagens

    daquele inferno de fogo lançando chamas de milhares de

    quilômetros na imensidão do universo. O temor na voz do

    jornalista era evidente. Na terra, centenas de vulcões

    adormecidos tinham acordado de seu sono prolongado e com

    intervalos de minutos, outros despertavam em solidariedade ao

    sol, cobrindo países inteiros com cinzas, impedindo o trafego

    aéreo e causando maremotos inimagináveis até então,

    devastando ilhas e cidades continentais próximas ao mar.

    Afundavam navios de grande porte e até mesmo danificavam

    submarinos nucleares.

    Nos dias seguintes a situação só piorava. A maioria dos

    satélites de comunicação foi danificada pela intensa onda de

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    calor acima da atmosfera ou atingidos por tempestades de

    meteoros. As emissoras de TV e rádio quando conseguiam

    transmitir, suspenderam suas programações normais e falavam

    apenas do caos que atingia todas as grandes metrópoles da

    terra. Justino evitava sair de casa. Nem pensou em seu trabalho

    na usina ou em qualquer outra coisa além do filho. Quando

    conseguia, telefonava à mãe de André insistindo que deveriam

    permanecer juntos, mas ela alegava que estavam no interior e

    não seriam atingidos.

    Ele passava grande parte do tempo em frente à TV

    esperando notícias e, quando a persistente estática do aparelho

    era interrompida por alguma transmissão, ouvia amedrontado,

    as notícias do fim do mundo e os apelos dos lideres mundiais

    para que a população conservasse a calma. Em todos os países

    a situação era a mesma. A crise de abastecimento trouxe

    consigo ondas de saques nas grandes cidades e as imagens

    transmitidas eram imagens de guerra. A população pacífica dos

    grandes centros dividira-se em exércitos urbanos e pelas ruas,

    cadáveres apodreciam ao relento sem que ninguém se desse ao

    trabalho de enterra-los. Ou tinham morrido pela violência ou

    pelas doenças que se alastravam com o calor opressivo e a

    decomposição dos corpos.

    Ele sabia que era apenas uma questão de tempo e sua

    cidade, sua casa e seu filho seriam atingidos. Nas poucas vezes

    que saia de casa para comprar alimentos notou que o preço

    destes havia triplicado e diversos itens tinham desaparecido dos

    mercados. Ouviu rumores de ataques aos rebanhos da região,

    bem como o abandono dos diversos haras de criadores de

    cavalos de raça espalhados pelas imediações. Justino tirou todo

    o dinheiro que tinha no banco depois de horas passadas na fila.

    A principio julgou que seria uma medida alarmista, mas mudou

    de ideia ao ver a multidão que se acotovelava em frente à única

    agencia bancaria da cidade.

    Quando voltou para casa, o telefone tocava com

    insistência. Era a cunhada pedindo ajuda. Sua voz era pastosa e

    as palavras quase incompreensíveis. Seu irmão Pedro Justino

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    havia morrido num acidente na rodovia, estava embriagado na

    ocasião. Mas depois disso, a cunhada lutava bravamente contra

    o vicio temendo perder a guarda da filha. Imediatamente ele

    compreendeu o que estava acontecendo. A morte tinha chegado

    à cidade, não havia tempo a perder. Encontrou a sobrinha da

    mesma idade do filho dormindo no tapete da sala. A cunhada

    estava morta na cama, cercada por seringas hipodérmicas e

    várias garrafas de bebidas diferentes. Não tinha tempo para

    enterra-la ou fazer qualquer coisa por ela. Só pensava em se

    afastar da civilização o mais distante possível. Carregou a

    menina ainda adormecida e acomodou-a da melhor maneira

    que pôde no banco traseiro do automóvel. Dirigiu-se à casa da

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