A Urna Dos Desejos
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A Urna Dos Desejos - Amauri Chicarelli
A Urna dos Desejos
(Contos).
Capa: Sergio Gomes Rosa
1
pdfconverterÍndice
O Carrossel.
As Canções da Marquise.
O Contraste das Ondas.
O Abrigo.
Meu Amigo Pedro.
Traição.
O Teleférico.
Mata Perigosa.
A Urna dos Desejos.
Nivaldo.
Os Sonhos de Cesar.
Os Ventos.
2
pdfconverterO Carrossel
Justino sentiu-se envergonhado daquilo. Não era a
primeira vez que aquele mal estar inexplicável secava sua
garganta e amolecia suas pernas quando se aproximava de um
parque de diversões. O filho puxava-o pela mão enquanto ele
tentava distraí-lo e leva-lo na direção contrária.
—Vem papai, vem.
— Você não quer pipoca filho?
— Depois papai agora eu quero ir no cavalinho.
Era tudo que ele não queria ouvir. Tentou atrair o menino
com maçã do amor, algodão doce, refrigerantes e todas as
guloseimas existentes no parque, mesmo com a proibição da
ex-mulher que mantinha uma atitude radical sobre a
alimentação do filho. Mas de nada adiantou, a criança queria
andar no carrossel e não havia nada que ele pudesse fazer.
Antes de chegar ao parque, verificou a localização do
brinquedo para evitar se aproximar dele, mas o encantamento
de estar pela primeira vez depois da separação conturbada,
sozinho com André, fez com que se esquecesse de tudo e só a
mão da criança puxando a sua era o que importava nessa hora.
Sem perceber, tinham caminhado na direção do temido
brinquedo e ele não podia negar nada ao filho naquele
momento. Caminhou resignado e tenso ao lado do menino,
tentando manter a calma.
Quando chegaram frente àquela esfera giratória cuja
cobertura arredondada lembrava vagamente a terra vista do
espaço, Justino teve que se segurar na cerca de madeira que
contornava a tropa de cavalinhos de todas as cores. Suas mãos
transpiravam e o suor escorria pela testa onde os cabelos lisos e
relativamente compridos colavam na pele clara. Ele já tinha
comprado os ingressos e os dois esperavam sua vez na fila. Na
plataforma os cavalos subiam e desciam no seu galopar
indiferente e silencioso, sempre sorrindo com seus grandes
3
pdfconverterdentes brancos e com os olhos fixos no nada enquanto giravam.
Parecia que os animais de mentira davam risadas zombeteiras e
o eterno movimento de sobe e desce era mórbido e desafiador
Aqueles sorrisos hipnotizavam o bom senso e a razão,
enquanto desafiavam o tempo passado e o futuro desconhecido.
Justino não sabia ao certo de onde vinha aquela fobia de
carrossel. Não sabia nem se era do carrossel ou dos cavalinhos.
Talvez dos dois. Sabia montar e não temia os cavalos, mas não
podia chegar nem perto daqueles brinquedos sem sentir uma
apreensão inexplicável. Sua infância foi marcada pelas
histórias bíblicas contadas pela mãe religiosa que lia com
grande dificuldade o livro sagrado quase todas as noites para
ele e para o irmão mais velho, que se encantavam com a
astúcia de Davi, a força de Sansão e o poder de Moisés contra o
Faraó teimoso. Todas essas histórias contadas, onde o bem se
contrapunha ao mal e onde a morte estava sempre presente, não
afetaram de maneira alguma sua mente infantil. Naquela
pequena fazenda onde nascera as crianças aprendiam desde
cedo a conhecer a morte e mesmo a conviver com ela. Viam os
animais serem sacrificados e depois servidos como alimento,
sem que isso provocasse perguntas difíceis de responder pelos
pais sem instrução. A morte era tão natural quanto à vida. Mas
a descrição dos quatro cavaleiros do apocalipse foi uma coisa
que marcou sua vida para sempre. Não parecia crueldade a
morte de Golias, do filho do Faraó ou dos milhares de filisteus
exterminados por Sansão. Mas os quatro cavaleiros não
queriam matar pessoas malvadas, queriam destruir o mundo.
—Vem papai, vem. É nossa vez.
Vacilante e confuso, ele transpôs o portãozinho da cerca
de madeira colorida, com passos incertos. Apertou a mão do
filho sem perceber que estava machucando até o menino
reclamar e faze-lo voltar à realidade. Carinhosamente colocou
André no dorso do animal de brinquedo e procurou se
controlar. A criança tinha escolhido o cavalo preto e o pai
mesmo sem poder ver o próprio rosto, sabia que estava pálido.
Quando afinal a roda começou a girar lentamente e depois se
4
pdfconverterestabilizar, ele sentiu que não havia mais nada sob seus pés.
Estranhamente o chão havia desaparecido e tudo ao redor foi
esvanecendo em câmera lenta e os objetos de transparentes que
foram se tornando aos poucos, acabaram sumindo. Justino
sentiu-se cercado pelo vazio. Os brinquedos ao redor e as luzes
desapareceram juntos com os sons dos gritos e dos risos das
crianças. Não havia mais qualquer coisa ao redor, apenas a
contraditória presença do nada absoluto. Como nos sonhos que
tivera desde a infância. Sonhos proféticos prevendo o fim de
tudo no dia em que ele subisse em um carrossel.
Aquele percurso interminável e vertiginoso, aquela
gangorra giratória chacoalhavam o cérebro no interior do
crânio. Teria o órgão se desprendido dos ligamentos que o
mantinham em seu lugar? Não sabia mais o que era realidade e
o que era alucinação. Tentou olhar para o céu, mas não viu o
azul límpido decorado com nuvens brancas que vira pela
manhã ao abrir a janela do quarto e tentar adivinhar como seria
o dia.
Justino desesperado procurava o filho, mas não via nada
além do nada. Sentia apenas que continuava girando numa
plataforma invisível até perceber que não estava sozinho. De
tempos em tempos apareciam as figuras de quatro cavalos que
ele diferenciava pela cor de cada um. Tentou se esquivar das
imagens que desfilavam ao seu redor e acabou caindo de costas
no que julgou ser um assoalho de tábuas rústicas. Ao olhar para
cima, viu que a abóbada celeste parecia enfurecida por
milhares de fogos de artifícios atômicos e seus cogumelos
gigantes no meio de labaredas espalhadas por toda sua
extensão. Desviou o olhar e então o mundo retornou. Mas a
terra, seu bairro e o parque não existiam mais como eram antes.
Os ferros retorcidos dos outros brinquedos estavam vermelhos
como brasas, dilatados pelo calor da chuva de meteoros que
caia do céu. Podia ver também corpos de homens, mulheres e
crianças dilacerados por toda parte, pegando fogo. Todos os
outros cavalinhos estavam irreconhecíveis, destruídos pelas
pedras e queimados pelo fogo. Somente os quatro continuavam
a galopar em torno dele, indiferentes ao que acontecia.
5
pdfconverterA voz do filho tirou Justino daquela alucinação.
---Vem papai, acabou.
Justino recobrando-se do pesadelo sentiu que ainda estava
ao lado do cavalo segurando André pela gola do macacão jeans
e que o menino estendia os dois braços em sua direção. Ainda
atordoado viu que o filho estava sobre um cavalinho branco.
Mas como? Tinha certeza absoluta que ele havia escolhido o
cavalo preto. Mas não tinha tempo para pensar nisso agora.
Pegou o filho e apertou contra o peito para aliviar o sofrimento
das visões que teve. Saiu dali o mais depressa que pôde e
levou-o para casa enquanto tentava responder às perguntas
dele, que falava o tempo todo. Ao voltar para a própria casa,
serviu-se de uma grande dose de uísque puro. Deitou-se no
sofá da sala e dormiu imediatamente.
Foi um sono profundo e vazio, sem sonhos ou pesadelos,
mas o vazio do sono foi o pior que poderia lhe acontecer.
Acordou molhado de suor quando a TV, programada para ligar
automaticamente na hora de seu telejornal preferido anunciava
pela voz tensa do locutor, as tempestades solares que causavam
gigantescas explosões na grande estrela surpreendendo os
astrônomos e físicos. Os telescópios espaciais transmitiram
para os centros de pesquisas do mundo todo, as imagens
daquele inferno de fogo lançando chamas de milhares de
quilômetros na imensidão do universo. O temor na voz do
jornalista era evidente. Na terra, centenas de vulcões
adormecidos tinham acordado de seu sono prolongado e com
intervalos de minutos, outros despertavam em solidariedade ao
sol, cobrindo países inteiros com cinzas, impedindo o trafego
aéreo e causando maremotos inimagináveis até então,
devastando ilhas e cidades continentais próximas ao mar.
Afundavam navios de grande porte e até mesmo danificavam
submarinos nucleares.
Nos dias seguintes a situação só piorava. A maioria dos
satélites de comunicação foi danificada pela intensa onda de
6
pdfconvertercalor acima da atmosfera ou atingidos por tempestades de
meteoros. As emissoras de TV e rádio quando conseguiam
transmitir, suspenderam suas programações normais e falavam
apenas do caos que atingia todas as grandes metrópoles da
terra. Justino evitava sair de casa. Nem pensou em seu trabalho
na usina ou em qualquer outra coisa além do filho. Quando
conseguia, telefonava à mãe de André insistindo que deveriam
permanecer juntos, mas ela alegava que estavam no interior e
não seriam atingidos.
Ele passava grande parte do tempo em frente à TV
esperando notícias e, quando a persistente estática do aparelho
era interrompida por alguma transmissão, ouvia amedrontado,
as notícias do fim do mundo e os apelos dos lideres mundiais
para que a população conservasse a calma. Em todos os países
a situação era a mesma. A crise de abastecimento trouxe
consigo ondas de saques nas grandes cidades e as imagens
transmitidas eram imagens de guerra. A população pacífica dos
grandes centros dividira-se em exércitos urbanos e pelas ruas,
cadáveres apodreciam ao relento sem que ninguém se desse ao
trabalho de enterra-los. Ou tinham morrido pela violência ou
pelas doenças que se alastravam com o calor opressivo e a
decomposição dos corpos.
Ele sabia que era apenas uma questão de tempo e sua
cidade, sua casa e seu filho seriam atingidos. Nas poucas vezes
que saia de casa para comprar alimentos notou que o preço
destes havia triplicado e diversos itens tinham desaparecido dos
mercados. Ouviu rumores de ataques aos rebanhos da região,
bem como o abandono dos diversos haras de criadores de
cavalos de raça espalhados pelas imediações. Justino tirou todo
o dinheiro que tinha no banco depois de horas passadas na fila.
A principio julgou que seria uma medida alarmista, mas mudou
de ideia ao ver a multidão que se acotovelava em frente à única
agencia bancaria da cidade.
Quando voltou para casa, o telefone tocava com
insistência. Era a cunhada pedindo ajuda. Sua voz era pastosa e
as palavras quase incompreensíveis. Seu irmão Pedro Justino
7
pdfconverterhavia morrido num acidente na rodovia, estava embriagado na
ocasião. Mas depois disso, a cunhada lutava bravamente contra
o vicio temendo perder a guarda da filha. Imediatamente ele
compreendeu o que estava acontecendo. A morte tinha chegado
à cidade, não havia tempo a perder. Encontrou a sobrinha da
mesma idade do filho dormindo no tapete da sala. A cunhada
estava morta na cama, cercada por seringas hipodérmicas e
várias garrafas de bebidas diferentes. Não tinha tempo para
enterra-la ou fazer qualquer coisa por ela. Só pensava em se
afastar da civilização o mais distante possível. Carregou a
menina ainda adormecida e acomodou-a da melhor maneira
que pôde no banco traseiro do automóvel. Dirigiu-se à casa da