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O Amor Fazendo Gênero
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E-book495 páginas6 horas

O Amor Fazendo Gênero

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Sobre este e-book

Este livro, resultado de uma pesquisa feita em Porto Alegre entre 1997/1998, trata de responder a seguinte pergunta: por que são mulheres a maioria entre terapeutas e usuários da medicina floral? Dividido em três grandes capítulos, explica as cosmovisões, as representações de saúde-doença e as representações de gênero do mundo da medicina floral. Além disso, o texto todo é perpassado pelas descrições das 38 essências do sistema floral de Bach e Rescue, o remédio das emergências.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de jun. de 2021
ISBN9786525202075
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    O Amor Fazendo Gênero - Fátima Perurena

    1. COSMOVISÕES DO MUNDO DA MEDICINA FLORAL (SINCRONICIDADES E DISSOCIAÇÕES)

    Agrimony¹

    Para pessoas joviais, animadas, de bom humor, que gostam de paz e que se desagradam com discussões ou com brigas, a ponto de devido a isso renunciarem a muitas coisas. Essas pessoas, ainda que amiúde tenham problemas, tormentos e inquietações, e sintam perturbações na mente e no corpo, escondem suas aflições por trás de seu bom humor e brincadeiras, sendo consideradas ótimas amigas. Com freqüência tomam álcool ou drogas em excesso para se estimularem suportando suas atribulações com ânimo.

    Apalavra dissociação vem do latim dissociatione, e significa o ato de dissociar, de desagregar, de desunir, de dissolver (o que estava associado). Dissociação é a palavra-chave da essência floral descrita acima, e eu posso dizer a palavra-chave que dá o tom do que se pretende analisar com este livro, tendo como ponto de partida as sincronicidades que o atravessam, do começo ao fim. Agrimony pode ser associado a um arquétipo, o do palhaço que oculta o pranto atrás do riso. O estado mental Agrimony corresponde na psicanálise ao que se conhece como a negação maníaca (Pastorino, 1987). Chamo atenção para o fato de que Bach, como explicarei no capítulo seguinte, trabalha com a proposta de que os florais atuam no lado positivo do padrão energético desequilibrado, e não, como quer a homeopatia, por exemplo, quando defende que semelhante cura semelhante, embora possamos nos referir à personalidade Agrimony, Chicory, e assim por diante. Descrevendo a essência Agrimony, Rodrigues afirma:

    "Que a dissociação é a principal defesa em nossa época é uma verdade palpável para quem reflete sobre o modo de vida da maioria dos seres humanos, principalmente nos grandes centros urbanos...A dissociação é uma defesa eficaz e que pode ser benéfica quando cumpre a função de resguardar a mente afetada por algo terrível que não pode ser manejado com os recursos disponíveis no momento, mas ela deve ser substituída pela lucidez à medida em que a psique esteja mais forte. Mas é uma defesa difícil de desmontar, principalmente quando ela é compartilhada por toda uma sociedade" (Rodrigues, 1998 A:p.1-2 – grifos meus).

    Tourraine (1998), como Rodrigues, também está preocupado com a dissociação, especialmente aquela que observa entre economia e cultura – o grande problema social a ser enfrentado nos dias de hoje. De um lado, uma economia globalizada que nos faz sentirmos cidadãos do mundo, de outro, a cultura cerceada pelos pequenos comunitarismos, como se refizéssemos o caminho inverso quando da passagem da era medieval para a moderna, com um sentimento de pertença, ao mesmo tempo, daqui e de todo lugar, ou seja, a nada e a nenhum lugar. Naquele momento, segundo qualquer manual de sociologia ensina, passamos do estado de comunidade para o de sociedade. Estaria agora ocorrendo o contrário? Enfraquecem-se os laços criados pelas instituições, seja através da língua, seja através da educação, o que resulta num ego extremamente dividido levando ao sofrimento de toda ordem que pode aparecer na fuga, na autodestruição e no divertimento esgotante, ou seja, um estado caracterológico bem agrimoniano.

    A questão da dissociação, portanto, faz parte da problemática sociológica de Tourraine, está presente na explicação da causa da doença apontada pelo criador da medicina floral (Edward Bach), entre o ego (personalidade) e a alma, bem como se destaca na preocupação de correntes feministas que denunciam o caráter masculino da ciência ocidental constituída na forma em que a conhecemos – medidora, esquadrinhadora, matemática, positivista, eurocêntrica, fragmentadora, a ciência cartesiana fragmentada, dissociada – de um lado a mente, do outro o corpo. Do ponto de vista teórico, embora tais correntes proponham-se resgatar corpo e mente separados pelo projeto cartesiano, acredito que, ao insistirem no caráter social da construção do gênero, ainda estão afeitas a esta cosmologia. Não saíram da teia do cartesianismo.

    Com isto, entendo que, se de um lado, o surgimento dos estudos de gênero permitiu avançar no sentido de mostrar o quanto as desigualdades são construídas socialmente, de outro, ao excluir o sexo, e, portanto, o corpo, do conceito de gênero, inverteram a hipótese de Freud – sobejamente repudiada por Beauvoir, para falar de um clássico como ponto de partida – de que a biologia é o destino. Agora a sociedade era o destino, ou seja, saímos de uma camisa de força para cair em outra? Desta forma, me parece que ainda não está resolvida esta questão. Pelo contrário, este entendimento de gênero pode ser responsável por mais uma dissociação a ser ressaltada – a separação entre corpo e psique. Por trás de toda esta problemática que envolve a dissociação está a sincronicidade. E sobre as sincronicidades que envolvem este trabalho, seria impossível listá-las todas, ainda que eu não as use como algum tipo de recurso metodológico, mas apenas como uma referência pessoal; cito uma que considero paradigmática.

    Quando escolhi trabalhar com a medicina floral, como terapêutica considerada alternativa, para entender a crescente busca por outras práticas de saúde que escapam da medicina ocidental contemporânea, não tinha ideia do quanto sua proposta médica estava envolvida num entendimento do ser humano como totalidade, muito menos tinha conhecimento que iria acabar por me envolver com questões de gênero, e, claro, menos ainda do quanto correntes feministas reivindicam uma ciência não calcada apenas na res cogitam do cartesianismo. Entre outras propostas da medicina floral, saliento a que aponta para a ampliação de consciência. Catharine MacKinnon, teórica feminista, afirma que o seu método é consciousness raising. Gênero e floral, floral e gênero, não parecem estar usando a mesma linguagem, trilhando os mesmos caminhos, senão os mesmos, pelo menos semelhantes?

    Não perceber os caminhos sincrônicos que se apresentam à minha frente seria, no mínimo, ignorar o que, de fato, apontam a medicina floral e o gênero – elementos constituintes deste livro – um outro paradigma para a ciência, e por que não dizer? – para a compreensão humana. Nesse sentido, não há como negar o valor da sincronicidade como uma categoria que fica meio à espreita, observando, e, no fundo, me dizendo: o caminho é este, a ciência é mais rica do que os manuais positivistas querem, há o não causal, há o imprevisto, sobretudo há o não-visto, a intuição, o faro, o paradigma indiciário apontado por Ginzburg (1989).

    Neste processo de construção de um tema de investigação, da pesquisa propriamente dita e do presente texto, saliento o papel fundamental que observei sobre o uso de minha intuição nisto tudo, assumidamente, embora acredite que todos aqueles que vivenciam a prática da produção de conhecimento a utilizem, mas a negam. Como medir intuição? Como dizer que se faz ciência utilizando categorias não mensuráveis? Onde está a tão desejada e exigida objetividade do fato científico?

    Durante toda minha trajetória de vida pude observar diversas vezes que alguns fatos aconteciam de forma coincidente, e, em algum momento perguntei-me pelo motivo de tais coincidências. Nunca soube me responder, mas eu sabia que tinha uma explicação, que mais tarde encontrei em Gustav Jung (1985).

    É o significado comum, desenvolvido por Jung com o termo sincronicidade, que percebi, e percebo, durante todo este processo de busca por respostas a minhas perguntas. Há uma sintonia muito grande. E a única leitura que posso fazer de tudo isto, pelo menos por enquanto, dita pela minha intuição, é de que, no mínimo, tenho um problema, uma questão que faz sentido indagar. Mais: que uma possível resposta pode estar exatamente na problematização da temática de gênero associada à medicina floral.

    Dissociação, sincronicidade. Sincronicidade, dissociação. Este o pano de fundo do cenário, a nota que dá o tom de quem coloca no ato da investigação, além da intuição, uma não-neutralidade assumida, e, com isto, estou afirmando que faço um outro caminho, distinto daquele pregado pela ciência ocidental cartesiana.

    1.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CIÊNCIA OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA

    Honeysuckle

    Para os que vivem muito no passado, lembrando-se talvez de uma época de grande felicidade, ou de um amigo morto, ou pensando nos sonhos que não se tornaram realidade. Não acreditam que possam ter felicidade como a que um dia tiveram.

    O estado mental Honeysuckle impede a devida conexão com o presente, remetendo sempre ao passado. Há uma certa inércia, com pouco sentido de mobilidade interna, o que redunda em uma fraca ligação com a corrente da vida. No seu estado negativo, Honeysuckle recusa-se a ser guiada pelos ditames de sua alma, ...ignora o fato de que um dos princípios mais importantes da vida é a mudança constante, de que tudo está num estado de fluxo (Scheffer, 1997:102). É o remédio da lembrança e da nostalgia, e, nesse sentido é um excelente consolo para os que estão sós, seja em que situação for.

    Chamei Honeysuckle para o texto, lembrando-me do fato de a ciência ocidental estar voltada para um paradigma criado no século XVII, e, que, portanto, é preciso revê-lo, para não estarmos sendo, no mínimo, saudosistas.

    A sociedade moderna, ou pós-moderna, como querem alguns, assumiu uma tal ordem de complexidade que o paradigma científico instituído praticamente há três séculos está-se tornando cada dia mais obsoleto no sentido de explicar o mundo em que se vive. O campo teórico no qual se está envolvido, metodologicamente falando, ainda é um campo que pode ser mapeado do século XVI aos primeiros anos do século XX, desde Newton a Freud passando por Descartes e Marx.

    A palavra crise é uma das mais citadas quando se quer referir ao mundo de hoje, uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais, segundo Capra (1992 A). De acordo com este mesmo autor, a sociedade de hoje enfrenta uma situação de transições, sendo que, entre estas, três estão sendo responsáveis por profundas mudanças em todo o sistema social, quais sejam: o esmorecimento do patriarcado como resultado do movimento feminista, o declínio da era do combustível fóssil e a mudança profunda experimentada pela forma de se chegar ao conhecimento, ou seja, à mudança de paradigma.

    Levando-se em consideração a rapidez com que ocorrem as mudanças, é possível que, guardadas as devidas proporções, a época atual seja semelhante àquela da passagem da idade média para a idade moderna, momento em que pairava uma incerteza geral e, por consequência disso, uma sensação de insegurança e de solidão. Tal como naquele período procuram-se respostas para o que se apresenta como caótico, insolúvel, triste, desencantado mesmo.

    O mundo social, o mundo das relações sociais, objeto desde sempre da sociologia, parece, num primeiro momento, inexplicável, tamanha a rapidez com que mudam os comportamentos. Pior que isso: como explicar a fragmentação de um indivíduo que se vê pertencendo a vários continentes, que vão desde o quase primitivismo das cavernas até a sociedade mais avançada tecnologicamente? Como juntar os cacos de um ego que perdeu sua unidade, que tornou-se múltiplo? Mais do que nunca o indivíduo que habita este planeta faz a eterna pergunta: quem sou, de onde venho, para onde vou? Perguntas simples como as que formulou Rousseau (apud Santos, 1997) parecem extremamente procedentes. Há razões verdadeiramente poderosas para que transformemos o nosso conhecimento vulgar, puro senso comum, sobre a natureza e a sociedade, em objeto de uma ciência produzida por poucos para ser usufruída por poucos? Resolverá a ciência o fosso abismal entre teoria e prática? Como dar conta do fato de que a maioria esmagadora da população mundial vive às expensas do simples senso comum, não tendo a menor ideia do que seja ciência, e menos ainda das benesses que ela proporciona? Por outro lado, como defender um paradigma de ciência que é responsável, entre outras coisas, pela destruição ecológica do planeta?

    O mundo inexplicado e ininteligível ao nosso redor parece ser o resultado de uma forma de fazer ciência alijada, alienada no sentido que Marx emprestava ao termo, do que caracteriza o ser humano (quando me utilizo do termo humano é para referir-me à espécie humana constituída de homens e mulheres), que é a sua capacidade criadora e imaginativa. Há quem sustente que é preciso pensar novas formas de imaginação e não nova forma de fazer ciência (Bohm, 1992). Mas não há como negar a penetração da ciência em todas as esferas da vida humana, e, nesse sentido, concordo com Harding, quando afirma que Nas culturas modernas, nem Deus nem a tradição gozam da mesma credibilidade que a racionalidade científica (Harding, 1996 A:16). Mas de que ciência, e de que paradigma de ciência estou falando?

    Quem melhor conceitua o tipo de empreendimento científico a que estou me referindo é o biólogo Edward O Wilson. Para este autor, ciência ...é a empresa sistemática e organizada que produz conhecimento sobre o mundo e o condensa em princípios e leis testáveis (Wilson, 1998:53). Wilson dá, inclusive, as características do seu conceito de ciência com o propósito de distingui-la do que ele chama das pseudociências: repetibilidade, economia (maior quantidade de informação com o mínimo de esforço), mensuração, heurística e conciliação. Astronomia, biomedicina (grifo meu) e psicologia fisiológica são os espelhos desta proposta. As humanidades, a forma como ele se refere às ciências sociais, por estarem presas a lealdades tribais, permanecem nos espaços folk (grifo meu). Para ele as ciências sociais não desenvolvem categorias de previsibilidade dos fenômenos sociais. A união ou a conciliação, que ele deseja que haja entre as disciplinas, na verdade, submete as ciências sociais às leis das ciências naturais. O grau de previsibilidade que ele almeja que as ciências sociais atinjam, está ancorado naquilo que ele chama de regras epigenéticas – operações inatas do sistema sensório e do cérebro. São regras de procedimento baseadas na experiência que permite aos organismos apresentar soluções rápidas aos problemas encontrados no meio ambiente. É esta ciência conceituada por Wilson que vem sendo posta em xeque. É esta ciência que molda, ainda, nossas perguntas e respostas, que encaixa nossos pensamentos mais criativos e imaginativos em formas estabelecidas, cortando as asas do que se poderia chamar de voo científico – aquele voo voltado para a criação, e não para a repetição do que vem sendo dito ad nauseum.

    A ciência a que estou me referindo é a ciência ocidental, desenvolvida através de epistemologias internalistas (Harding, 1998), travestida em uma racionalidade constituída como processo e consequência da revolução científica do século XVI, e que se originou no campo das ciências naturais, para só no século XIX ser estendida às então emergentes ciências sociais. Este modelo de ciência que nega legitimidade aos tipos de conhecimento que não se enquadram em seus esquemas ontológicos, metodológicos e epistemológicos, portanto, em seu paradigma, defende-se fundamentalmente de dois inimigos a serem derrotados – o senso comum e os estudos humanísticos – todos dois cheirando a irracionalidade.

    Se formos às verdadeiras origens deste paradigma, chegaremos aos gregos Platão e Aristóteles, principalmente, mas foram Copérnico, Kepler, Galileu e Newton que a consubstanciaram, com a efetiva sustentação filosófica de Bacon e Descartes, sobretudo deste último.

    Ressalto, assim, que os fundamentos dualistas do cartesianismo tem suas raízes na antiga Grécia, e que a filosofia desta época manifestava uma profunda somatofobia. Qual teria sido, então o (de)mérito de Descartes? O que o pensamento cartesiano fez foi ter ido além dos antigos gregos. Sua proposta, bem sucedida, foi ter separado o ser da natureza, sendo que apenas o corpo podia ser considerado parte desta, já que era governado por suas leis físicas; o seu sucesso foi ter ligado a mente a uma posição que estabelecia os próprios fundamentos do conhecimento, um vínculo que a coloca em um status de superioridade hierárquica sobre e acima da natureza, incluindo a natureza do corpo (Grosz, 1994).

    Aqui se entende conhecimento como um processo socialmente construído, fruto de relações sociais contraditórias inseridas em um determinado momento histórico. Descartes vivenciou uma situação trágica, de guerra de religiões que lutavam pela legitimidade de um dogma. Era preciso buscar um outro tipo de certeza, uma certeza universal que valesse para todos. Foi esse o mote que levou Descartes a sua filosofia da res cogitans separada da res extensa, dando precedência a primeira, mas calcada na matemática, único caminho que garantiria a certeza, a previsibilidade exigida por Wilson, a única possibilidade de se fazer ciência.

    1.2 DE COMO A CIÊNCIA OCIDENTAL FOI MASCULINIZADA PELO PENSAMENTO CARTESIANO

    Ironicamente, esta ciência pretendida por Wilson e pelo establishment da comunidade científica, que se reivindica objetiva, neutra, racional e racionalizada, foi pensada através de sonhos que Descartes teria tido em novembro de 1619, e que são comentados em um texto pouco usado para o entendimento de seu pensamento – As Meditações. A leitura que o filósofo aceito como pai fundador da ciência moderna fez daqueles sonhos, e que para muitos pode soar como pesadelo, foi de que tais sonhos, ou pesadelos, apontavam a ele que a matemática seria a chave para o entendimento do universo. A este respeito, Bordo afirma:

    "Quando nós, filósofos, ensinamos Descartes como um ‘racionalista’, nós esquecemos que foi uma visão mística, seguida por três sonhos vívidos e ameaçadores que o convenceram que uma ciência matemática universal poderia descobrir os funcionamentos do universo. Tanto no texto de As Meditações, quanto em relação à própria vida de Descartes, o inconsciente não é apenas um demônio a ser expulso pelo método correto, ele é também um guia para o filósofo, um aviso de que o caminho para a luz se dá através da escuridão" (Bordo, 1999:6 – grifos da autora).

    Tendo como ponto de partida uma leitura filosófica e psicológica d’ As Meditações, Susan Bordo (1987) desenvolve a hipótese de que as ideias desenvolvidas por Descartes nestes textos, podem ser encaradas como o drama de um parto, o nascimento cultural fora do mundo-mãe da Idade Média e do Renascimento, e a criação de um outro mundo – moderno, masculinizado pelo pensamento cartesiano e deliberadamente separado do mundo feminino; todavia, há quem entenda que os escritos de Descartes não apenas desenvolvem uma compreensão da razão que é muito mais inclusiva do que aquela comumente assumida por algumas críticas feministas, mas que também apresentam recursos para uma teoria do gênero que é compatível com abordagens feministas contemporâneas (Clarke, 1999; Winders, 1999; Paliyenko, 1999). Para os fins que me proponho, aceito a abordagem de Bordo (1987).

    Descartes entendia, segundo Bordo (1987), que as origens da obscuridade no nosso pensamento são os apetites, a influência de nossos professores e os preconceitos da infância, e que estes preconceitos todos tem uma coisa em comum: a inabilidade, devido a nossa imersão infantil no corpo, em distinguir claramente o que é sujeito e o que é objeto. Este estado de obscuridade só pode sair para a luz através da razão. Foi o que o filósofo argumentou n’As Meditações ao propor que a mente transcendesse o corpo, esvaziando-se de tudo que havia sido ensinado. O resultado disso é uma reconstrução filosófica que protege todos os limites que na infância são tão frágeis: o interno e o externo, o subjetivo e o objetivo, o eu e o mundo.

    Contrário ao que pensavam os medievais, Descartes entendia a subjetividade como uma ameaça epistemológica, e que se faz sentir até nossos dias. Com efeito, o que sabemos hoje através da arte, literatura, filosofia, da cultura enfim do período medievo é que a objetividade não fazia parte de sua cosmologia. O que importava era a continuidade possível entre os reinos humano e físico, as interpenetrações, através dos sentidos, entre o eu e o mundo. Assim, um entendimento de mundo holista, como dizemos hoje, passou a ser apontado como distorções causadas por ligações pessoais – a questão da neutralidade-subjetividade. A objetividade, não mais o sentido, tornou-se a questão, e tanto mais o ser humano estivesse envolvido com a natureza e ligado a ela, tanto mais a objetividade se tornava impossível. Kant, mais tarde, compreendeu a mensagem e apreendeu-a filosoficamente – para haver conhecimento é preciso que se separe sujeito de objeto.

    Assim, de um lado, temos um novo modelo de produção de conhecimento apoiado na pureza da mente e sua habilidade em transcender o corpo. De outro, um projeto ontológico da ordem das coisas é remodelado. Corpo e espírito passam a ser duas coisas distintas que não dividem qualidades, permitem interação mas não união, e são cada qual definidos exatamente em oposição ao outro. Bordo afirma:

    "Para o modelo de conhecimento no qual resulta, nem a resposta corpórea (sensual ou emocional), nem o pensamento associativo pode nos dizer alguma coisa sobre o objeto ‘mesmo’. A exploração dos vários significados pessoais ou espirituais que o objeto possa ter para nós, só pode ser entendida, como Gillispie afirma, ‘pela medida e não pela compreensão’" (Bordo, 1987:99 – grifo da autora).

    O mundo que naquele momento se apresentava para Descartes como sendo caótico, e que na verdade deixava transparecer toda efervescência cultural da época, era certamente causador de muita angústia. A proposta d’As Meditações, então, pode ter sido apenas uma defesa para tanta ansiedade, insegurança e incerteza. O drama do parto cultural que foi separar o indivíduo da natureza deixou uma sensação de estranhamento, de perda mesmo, e que Descartes sabidamente transformou em uma exigência para a riqueza do conhecimento e do progresso humanos. De uma cosmologia que não separava masculino de feminino, homem-mulher de natureza, corpo de mente, sobrou o renascimento e a estruturação do mundo e do conhecimento com um olhar totalmente masculino, no dizer paradigmático de Bacon : o nascimento verdadeiramente masculino do tempo (apud Bordo, 1987:104).

    O mundo natural, que desde Platão e Aristóteles era compreendido em suas origens maternas, e que tinha uma alma, uma alma feminina que permeava o corpo do universo, esse mundo foi destruído pela abordagem mecanicista da natureza – pela já tão conhecida metáfora do universo como uma máquina – o relógio. Mesmo que a astronomia e a anatomia já tivessem, ao tempo em que Descartes escreveu As Meditações, mudado o quadro dominante sobre o divino e os processos do corpo, foi ele o responsável direto pela cosmologia resultante que integrava as descobertas daquelas numa visão unificada da natureza.

    O século dezessete não matou apenas a natureza, mas todo um conjunto de valores epistemológicos normalmente associados à consciência feminina. Ele foi também responsável pela morte de um quadro conceitual que Bordo chama de pensamento compreensivo (nada que se relacione com a proposta metodológica weberiana), e que diz respeito à participação do objetivo e do subjetivo no entendimento da compreensão do ato social através do processo investigatório, o assumir uma resposta intuitiva a um valor epistemológico positivo. Longe de se rejeitar a objetividade, o que se quer é que ela sozinha não domine a cena da investigação e da compreensão humanas, mas exatamente que fique clara a necessidade de integração do pensamento compreensivo nas concepções dominantes de racionalidade, que se revise o conceito de objetividade.

    Keller (1985) trabalha com os conceitos de objetividade estática e objetividade dinâmica. A busca de um conhecimento que inicia pela separação entre sujeito e objeto, ao invés de desembaraçá-los um do outro está ligada ao primeiro conceito. No segundo conceito, que interessa a Bordo, e a mim também, Keller contempla a possibilidade de um conhecimento que faz uso da experiência subjetiva a fim de atingir uma maior objetividade. Parece-me que a proposta de Harding (1996 B) vai ao encontro das de Bordo e Keller.

    Harding(1996 B) pergunta-se se a teoria do ponto de vista feminista, que tem nela uma de suas principais proponentes, teria realmente abandonado a objetividade e abraçado o relativismo. Mais que preocupada com a objetividade, a teoria do ponto de vista feminista exige (grifo meu) vigorosos padrões de objetividade.

    As epistemologias do ponto de vista feminista reivindicam o reconhecimento de um relativismo histórico ou sociológico, mas não do relativismo epistemológico. Elas reivindicam o reconhecimento de que todas as crenças humanas – inclusive nossas melhores crenças científicas – são situadas socialmente, mas também exigem uma avaliação crítica para determinar quais situações sociais tendem a gerar as melhores afirmações de conhecimento objetivo. Harding sugere que se estabeleça uma objetividade forte (grifo da autora), contrária à objetividade fraca do objetivismo e seu irmão gêmeo, o relativismo. O que Harding está conceituando como objetividade forte ancora-se em duas possibilidades: 1) praticar a objetividade forte é partir, por exemplo, em uma sociedade hierarquizada pelo gênero, das vidas das mulheres, onde o mote não é estar fora ou estar dentro, mas outsiders within; 2) é a possibilidade de colocar sujeito e objeto no mesmo plano crítico e causal no sentido de nos permitir ver as vantagens científicas, morais e políticas desta forma de tentar atingir um relacionamento recíproco entre o agente e o objeto do conhecimento.

    Ora, o projeto cartesiano vai totalmente de encontro ao pensamento compreensivo proposto por Bordo, ao entendimento de objetividade desenvolvido por Keller, bem como à objetividade forte reivindicada por Harding. Para purificar a mente e transcender o corpo era impossível aceitar a continuidade entre sujeito e objeto. Nada de compreensões em relação ao objeto que se queria entender; pelo contrário, era preciso cultivar a imparcialidade, como se isto fosse possível, desejo de resto, ainda, do atual establishment da comunidade científica.

    Embora a ciência, ao longo de sua história, tenha tido sempre um comportamento misógino, de absoluta discriminação em relação às mulheres, o que se está querendo dizer aqui com masculinização do pensamento cartesiano, segundo Bordo (1987), ou como uma super masculinização do pensamento racional, no dizer de Harding (1996 A), não tem nada a ver com a dominação masculina em relação às mulheres, que de fato existe, mas com certas características cognitivas e preconceitos teóricos relacionados ao modo ocidental de fazer ciência, e que a transformam em uma atividade gendrada, assim como o conjunto das relações sociais como um todo.

    Tal como Chodorow (1990) e Gilligan (1991), Bordo (1987) utiliza-se da teoria das relações objetais, ou da teoria desenvolvimental, para desenvolver suas hipóteses, só que diferentemente das primeiras, seu trabalho não está focalizado na diferença de gênero, mas nas próprias categorias gerais daquela teoria – individuação, separação, angústia, permanência do objeto – numa tentativa de explorar sua relevância para mudanças existenciais e epistemológicas efetuadas sobre a dissolução do universo maternal orgânico da idade média e do Renascimento. Bordo pergunta-se: por que a cultura intelectual dominante dá essa virada decisiva no século dezessete? Uma resposta possível, segundo esta autora, poderia estar nas categorias psicológicas trabalhadas por ela no sentido de mostrar que houve um parto, parto que se deu com a total separação de todos os valores associados ao feminino – o único caminho que possibilitaria o voo para a desejada objetividade.

    Lembro, aqui, que o pensamento cartesiano, com seu método analítico, foi fundamental para o mundo em que floresceu, possibilitou o futuro tecnológico da sociedade que conhecemos hoje, e que, se, de um lado, gerou progresso, de outro, gerou miséria; de uma parte possibilitou o descobrimento de vacinas, o que resultou no não-extermínio de milhares de pessoas, de outra, criou a bomba atômica, e assim por diante. O cogito cartesiano, entre outras conseqüências, segundo Capra, ...impediu os médicos de considerarem seriamente a dimensão psicológica das doenças e os psicoterapeutas de lidarem com o corpo de seus pacientes(Capra: 1992 A, p. 55).

    O conhecimento, da forma em que o praticou Descartes, é um conhecimento estabelecido por conta de leis, portanto, de regularidades, onde o que importa não é exatamente compreender o real, mas dominá-lo e transformá-lo – o determinismo mecanicista defendido por Spencer, Comte e Durkheim. A natureza, com ela o corpo, e por conta disso as mulheres, retomando os gregos, não são mais que objetos passivos nas mãos da suposta objetividade científica.

    Como disse anteriormente, este livro se debruça sobre um outro entendimento de ciência, que será tratado um pouco mais adiante. Por enquanto, conto um pouco da história do surgimento do tema.

    1.3 ALGUMAS HIPÓTESES E UMA PERGUNTA A SER RESPONDIDA

    Walnut

    Para os que têm ideais e ambições bem definidos na vida e que os estão concretizando, mas algumas vezes se veem tentados a se afastar de suas próprias ideias, de seus objetivos e do próprio trabalho diante do entusiasmo, das convicções ou das convincentes opiniões dos demais. É o remédio adequado para proporcionar constância e proteger o indivíduo de influências externas.

    Walnut tem, no seu estado positivo, a característica do que é pioneiro, do que se abre, sem preconceitos, para o novo. Bach teria sido um estado caracterológico positivo de Walnut, à medida que pensou que uma outra forma de abordagem da medicina poderia ser feita. É o remédio indicado para fases de transição, todos os tipos de transição que se possa imaginar. Penso que esta seja uma fase de transição que estamos passando. Quando digo que estou assumindo um outro entendimento de ciência, que foge aos padrões racionais cartesianos esperados de todos que se propõem o ato da produção de conhecimento, estou também assumindo uma postura Walnut, não porque me sinta pioneira de alguma coisa, mas por pretender fazer do ato científico um ato de amor, de envolvimento e de paixão que vai, como disse, do começo ao fim, e que, nem por isto, penso, deixo de estar fazendo ciência.

    Volto à questão da sincronicidade. Devo dizer, antes de nada, que sempre tive uma certa atração pelo novo, pelo diferente, pelo não-estabelecido, digamos que eu me identifique com o estado mental Walnut. Quando pensei, num primeiro momento, que o tema deveria estar ligado, de qualquer forma, à área da saúde (dado o fato que observava, e observo até hoje como as pessoas associam felicidade a saúde), não tinha bem claro o que problematizar dentro de campo tão vasto. Trocando ideias com um colega, ele me perguntou por que eu não tratava de medicina alternativa. A palavra alternativa soou em meus ouvidos como um desafio que ia na direção do meu espírito Walnut. Nada do instituído, era preciso ver o que acontecia na periferia do hegemônico – a medicina ocidental.

    Comecei a buscar material que pudesse me dar subsídios de problematização a respeito de medicina alternativa. Logo vi que as publicações eram muito pobres, que era preciso comer o mingau pelas bordas, mas, finalmente, eu tinha uma pergunta a ser respondida: por que as pessoas estavam buscando práticas alternativas de saúde num movimento ascensional? Como não era possível lidar com todas as práticas alternativas de saúde (são tantas...!), era preciso escolher uma como parâmetro de análise. Pensei logo em florais, mas não tenho, até hoje, uma explicação racional da escolha naquele momento. Com esta ideia, montei meu primeiro projeto de pesquisa, e com ele ingressei no curso de doutorado.

    O cenário da sincronicidade que reivindico ainda não estava montado – faltava a pedra de toque. E aqui cito o que minha orientadora sempre dizia: Não somos nós que escolhemos o tema, é ele que nos escolhe. Assim, sem que eu jamais tenha lido um texto sequer sobre gênero, optei por fazer uma disciplina com o título Tecnologias de gênero, ministrado pela Professora Heleieth Saffioti, cujos livros eu sempre via nas prateleiras das livrarias, sabia quem era pela importância de sua extensa obra, mas a questão é que sua temática tratava de um assunto que eu, preconceituosamente, negligenciava, seja porque eu não tinha maturidade para mexer com meu mundo interno, e, assim, me ver como mulher, seja porque eu tinha uma ideia do movimento feminista como um movimento radical que tinha uma certa profissão de fé, como se fosse uma camisa de força que as mulheres tivessem que usar. E, certamente, qualquer coisa que me lembre radicalismo, definitivamente, não me agrada.

    De qualquer forma, eu diria que o gênero veio ao meu encontro, o encontro que faltava para montar a pergunta que trato de responder. Quando escrevi o paper de conclusão da disciplina referida acima, procurei buscar um elo de ligação entre gênero e, no caso, então já decidido, a medicina floral. Na preparação deste trabalho, tomei contato com um dos poucos livros com abordagem sociológica sobre a chamada medicina alternativaMedicinas Paralelas, de Laplantine e Raberyon (1989). Neste texto, os autores montam o perfil da clientela que se reivindica de uma outra cultura médica que não a medicina instituída – a população encontra-se nos centros urbanos, pertence a setores médios, está situada numa faixa etária entre 35 e 50 anos, e apresenta uma acentuada presença de mulheres. Este último dado foi o que mais me chamou atenção, ou seja, havia um recorte muito claro demandando uma investigação que relacionasse gênero e práticas alternativas de saúde.

    Se já havia um estado mental Walnut por tratar de um tema como medicina alternativa, assunto que alguns dizem estar umbilicalmente ligado ao irracionalismo, um desafio maior seria juntá-lo ao gênero, pela minha falta de conhecimento a respeito. E aqui entra a sincronicidade mais evidente. A medicina floral se propõe tratar do ser humano como um todo, deixando de lado a abordagem funcionalista e mecanicista da medicina ocidental. Por outro lado, correntes teóricas feministas denunciam a necessidade de se buscar um outro paradigma para a ciência que não seja o cartesiano hegemônico, visto que este ignora o feminino. Ressalto, entretanto, como já fiz menção anteriormente, que o problema não está resolvido. É preciso sair da camisa de força imposta pelas próprias correntes feministas, isto é, resolver o problema da dissociação corpo-psique. A crítica até hoje feita ao cartesianismo está perfeita, é procedente, mas ainda não apresentou a melhor solução. Continuamos todos, homens e mulheres preocupados com as desigualdades, buscando paradigmas holistas, que rejuntem o masculino e o feminino, o ego e a alma, a economia e a cultura. É por estes caminhos movediços que me movimento, na tentativa de compreender um pouco mais o fenômeno que me proponho, e, por via de consequência, a mim mesma.

    Antes de introduzir a próxima seção, ressalto que me utilizarei, indistintamente, de um lado, da terminologia da filosofia chinesa, yin e yang, e, de outro, das categorias junguianas de anima e animus, sempre que me referir a feminino e masculino. Utilizo-me destes recursos, por entender que nenhum ser humano é absolutamente masculino ou feminino, mas que é feminino-masculino, e, que, portanto yin e yang, anima e animus, no meu entendimento, dão conta melhor desta minha compreensão do que os dois adjetivos para os dois gêneros que conhecemos no mundo ocidental. Capra explica o uso desta terminologia:

    "É importante, e muito difícil para nós, ocidentais, entender que esses opostos não pertencem a diferentes categorias, mas são polos extremos de um único todo. Nada é apenas yin ou yang. Todos os fenômenos naturais são manifestações de uma contínua oscilação entre os dois polos;

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