Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Direito à moradia e participação popular: reinventando as audiências públicas – "Ninguém fica para trás"
Direito à moradia e participação popular: reinventando as audiências públicas – "Ninguém fica para trás"
Direito à moradia e participação popular: reinventando as audiências públicas – "Ninguém fica para trás"
E-book516 páginas6 horas

Direito à moradia e participação popular: reinventando as audiências públicas – "Ninguém fica para trás"

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O livro se concentra na perspectiva de um Direito à Cidade, construído pelos movimentos sociais e que buscam participação no processo decisório das políticas públicas. Nesse sentido, a ideia central da obra é propor uma nova forma de audiências públicas, realizadas numa nova vertente democrática. No caminhar, identificamos a especulação imobiliária e os entraves históricos da política de moradia social no Brasil. O Estatuto da Cidade e sua inovação carecem ainda de efetividade, ponto importante da construção da cidadania. Essa perspectiva é a linha condutora do livro, trazendo o comparativo com países que estão na vanguarda de políticas sociais. Este trabalho adota os dizeres da ONU-Habitat de 2016, que aborda o lema "ninguém fica para trás" numa clara alusão à construção de um novo humanismo, assentado no pensamento revisitado de Henri Lefebvre. Relevante para o estudo de Direito Constitucional e Direito Urbanístico.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de jul. de 2021
ISBN9786525203232
Direito à moradia e participação popular: reinventando as audiências públicas – "Ninguém fica para trás"

Relacionado a Direito à moradia e participação popular

Ebooks relacionados

Pobreza e Pessoas em Situação de Rua para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Direito à moradia e participação popular

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Direito à moradia e participação popular - Luiz Henrique Milaré de Carvalho

    1. O DIREITO À MORADIA COMO DIREITO HUMANO E SUA FUNDAMENTALIDADE

    No capítulo inicial, apresentamos a questão da moradia como inerente ao ser humano, em diversas perspectivas, seja na sua simples forma de abrigo, seja em sua complexa relação de identidade e pertencimento. Nesse trajeto, passamos por tempos históricos, estruturas religiosas, ideia de espaço e relação mercantil do homem com o espaço e a condição atual dos centros urbanos, suas projeções e as abordagens realizadas pelas Nações mundiais, no desiderato de conter o crescente problema da moradia.

    As populações vulneráveis ou invisíveis se aglomeram em áreas hostis e o crescimento de tais espaços mostra a desigualdade social histórica dentro do processo de urbanização brasileiro.

    Na perspectiva teórica, a obra de Henri Lefebvre que nos remete a construção de um novo humanismo, pautado não mais numa democracia rural, mas agora determinada pelos novos habitantes das cidades, que devem assumir o trabalho de construir a obra, isto é, a própria cidade, acessível a todos e que contemplem direitos iguais.

    1.1 O SIGNIFICADO DE MORAR

    O direito à moradia é questão complexa que se enfrenta em várias partes do mundo, presente inclusive em países ricos. O crescimento populacional, o inchaço das grandes cidades pelo processo de urbanização desenfreada, a marginalização de pessoas dos centros urbanos, a falta de renda e a precariedade dos serviços públicos constituem-se em desafios a serem enfrentados por diversos governos e sociedades.

    Isso porque as diferenças de classes, as políticas públicas desenvolvidas insuficientes e o apelo ideológico impactam àqueles que reclamam um teto minimamente digno.

    A moradia, transformada em mercadoria valorizada no mundo pós-moderno, sofre com as especulações imobiliárias, vitimando minorias mundo afora.

    Segundo os dados da Organização das Nações Unidas – ONU – estima-se que, no mundo, teremos uma população de 9,7 bilhões de pessoas em 2050, chegando a 11 bilhões em 2100.

    O relatório denominado Perspectivas Mundiais da População 2019 afirma um crescimento previsto de 2 bilhões de pessoas, superando os atuais 7,7 bilhões. O mesmo relatório afirma ainda que a população está envelhecendo, prevendo que até 2050, uma em cada seis pessoas no mundo terá mais de 65 anos (16%) — um aumento na comparação com a taxa de uma em cada 11 (9%) em 2019.¹

    Tal quadro gera, segundo a mesma pesquisa, uma forte pressão sobre a economia e o mercado de trabalho, impactando questões fiscais que financiam o sistema público, refletindo em áreas como saúde, educação e, no caso específico, na moradia social.

    Outro importante dado refere-se a uma estatística publicada pelo World Resources – Institute Ross Center for Sustainable Cities, onde se afirma existir cerca de 330 milhões de lares ao redor do mundo sem moradia acessível e segura, afetando aproximadamente 1,2 bilhão de pessoas.²

    Isso significa que, considerável parte da população mundial vive em situação precária no que diz respeito à moradia, havendo relatos que mostram a cruel e desumana condição a que se submetem homens, mulheres e crianças.

    No caso do Brasil, os centros urbanos revelam, a cada esquina, a triste sina daqueles que não conseguiram condições materiais para se abrigarem, num crescente dado estatístico perverso, mostrando, de um lado, habitações vazias, numa especulação de mercado onde o fito do lucro é a marca registrada e, de outro, famílias inteiras nas calçadas, pontes e viadutos, lançadas ao sofrimento e esquecimento pela sociedade e pelo Estado.

    O déficit atual de moradias no Brasil atinge cerca de 7,7 milhões de unidades, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV) para a Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC).³

    O problema impacta a cidade e as pessoas em todos seus ângulos, tornando a questão da moradia um problema estrutural do Estado e da sociedade brasileira, posto que, em pouco menos de 10 anos, o déficit de moradias cresceu próximo de 5,9%, segundo dados da mesma pesquisa.

    A questão assume contornos ainda mais sérios e amplos quando a pandemia do COVID-19 toma espaço nas periferias, afetando a saúde e a própria vida de muitos desvalidos.

    Sérios riscos à própria vida humana são relacionados à falta de moradia digna, com doenças corriqueiras⁴ e que se aproveitam desta precariedade para afetar muitas pessoas, conforme reconhece a Organização Mundial de Saúde (OMS), braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para questões de saúde.

    Impõe-se, dessa forma, o repensar quanto ao uso dos espaços urbanos, a urbanização de cidades, seu planejamento e atendimento aos mais básicos serviços, tornando a questão multifacetada, demandando, o olhar pela perspectiva do direito à cidade, contemplado no direito urbanístico, na arquitetura do urbanismo, do saneamento básico, da acessibilidade, mobilidade e, no caso, da participação política dos interessados diretos, ou seja, da população que depende da atuação prestacional do Estado para morar.

    Focamos, assim, na abordagem temática em seus aspectos psicológicos, de construção de identidade e personalidade, em aspectos mitológicos e religiosos, da relação com o trabalho, numa construção ao longo do processo civilizatório que redundou no direito à moradia como premissa para a dignidade da pessoa humana.

    1.2 MORADIA – DIREITO DA PERSONALIDADE

    Segundo o dicionário Houaiss,⁵ a palavra moradia, na língua portuguesa, é substantivo feminino, com sentido de casa, morada. Casa ou lugar em que se habita; moradia, moradio. Essa conceituação define a moradia como sinônimo de habitação e residência.

    Por seu turno, há ainda o conceito de morar,⁶ do latim morare, por morari. Mourar e murar (vários tempos do verbo) como sendo verbo transitivo, significando ter residência, moradia. O mesmo que habitar, viver. Também empregado no sentido de ter lugar, estar presente, como na expressão: a alegria mora naquela casa. Ainda como gíria, em que se utiliza morou, no sentido de compreender, perceber.

    Do ponto de vista jurídico, entende-se que uma pessoa se vincula a um determinado espaço delimitado, tendo sua atividade jurídica restrita a certo ponto do território nacional, seja urbano ou rural. A necessidade de fixar e ser encontrada em determinado local é essencial para os exercícios de direitos.

    Assim nasce o conceito de domicílio, tido como a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para efeitos de direito onde exerce, habitualmente, seus atos e negócios jurídicos. Por outro lado, a residência é o lugar em que se habita, com intenção de permanecer, mesmo que dele se ausente temporariamente.

    Juridicamente, a distinção terminológica revela os aspectos distintos: um, domicílio, a sede negocial; a residencial, a sede de fato.

    De também pertinente, a moradia pertence, como atributo, ao denominado direito de personalidade, compondo um rol de estruturas jurídicas que permitem ao indivíduo seu pleno desenvolvimento e existência, enquanto ser humano.

    Para Pedro Pais de Vasconcelos, personalidade:

    [...] é a qualidade de uma pessoa, e a personalidade jurídica é a qualidade de ser pessoa no Direito. É dessa qualidade que decorre a suscetibilidade de direitos e obrigações. A personalidade natural decorre da vida que, ao largo de possíveis e variadas controvérsias, tem início com a concepção, com a fecundação, seja in útero, seja in vítreo.

    De forma que o conceito de personalidade se liga ao conceito de pessoa, entendida esta como sendo todo ser humano que nasce com vida, com as ressalvas de discussões a respeito do momento em que venha a ter a tutela do direito, temática que, muito embora seja de relevância, não guarda relação direta com a pesquisa.

    E como conceito de personalidade, Carlos Roberto Gonçalves a define como [...] aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil.

    Interessa-nos o ponto em que a personalidade humana significa o [...] conceito básico da ordem jurídica, que a estende a todos os homens, consagrando-a na legislação civil e nos direitos constitucionais de vida, liberdade e igualdade.¹⁰

    Como direitos e atributos da personalidade humana, podemos destacar o nome, os atos de disposição do próprio corpo, proteção à palavra e à imagem, proteção à intimidade¹¹.

    Nesse sentido da intimidade, assegura o direito à vida privada, não se permitindo intromissões indevidas em seu lar, inclusive do próprio Estado. Aqui, por exemplo, a violação do domicílio de uma pessoa constitui ofensa à intimidade, com reflexos na esfera da personalidade humana, que possui direito ao seu exercício de afastamento das atividades públicas, vivendo – mesmo que em tempo reduzido – sua intimidade reclusa.¹²

    A moradia se situa, dessa forma, dentre os vários atributos da personalidade, podendo ser entendida como [...] manifestação da identidade pessoal, de privacidade, de intimidade, como expressão do direito ao segredo¹³ e que se traduz como valor da dignidade da pessoa humana.

    O psicólogo Carl Jung assim coloca:

    A casa, certamente, era o símbolo da minha personalidade e do seu campo consciente de interesses; a ala desconhecida da residência representava a antecipação de um novo campo de interesse e pesquisa de que, na época, a minha consciência não se apercebera.¹⁴

    E, como metáfora, coloca a relação da personalidade com a moradia, revelando a intersecção destes elementos na formação da personalidade humana, realçando sua condição de fundamental para a existência.

    1.3 MORADIA – IDEIA DE PERTENCIMENTO

    Afastando temporariamente do aspecto eminentemente jurídico, cumpre uma prefacial análise de morar, viver e habitar.

    Todos devem se abrigar, procurar uma morada, inclusive os deuses.

    Na tradição mitológica, antes da explicação dada pela ciência, a definição de moradia aguçava o espírito humano, em especial com a idealização do Monte Olimpo, na história dos povos do hemisfério nórdico. Pela lenda, o cume do Monte Olimpo era a morada sagrada dos deuses.

    Havia naquele local sagrado, um portal de nuvem, vigiado pelas deusas Estações e que era aberto para permitir a entrada e saída dos imortais do Monte Olimpo, ligando-os à Terra.

    Os deuses tinham moradas distintas, comparecendo quando convocados ao Palácio de Júpiter, assim como as divindades que residiam na Terra. Lá se regalavam de ambrosia e néctar, embalados pelas liras e musas, segundo Bulfinch.¹⁵

    Nos versos do poeta Homero, na Odisseia, a definição do Olimpo:

    Disse Minerva, a deusa de olhos pulcros,

    E ao Olimpo subiu, à regia e eterna

    Sede dos deuses, onde a tempestade

    Ruge jamais, e a chuva não atinge

    E nem a neve. Onde o dia brilha

    Num céu limpo de nuvens e ameaças.

    Felicidades sempiterna gozam

    Ali os seus divinos habitantes.¹⁶

    O Olimpo, portanto, era o paraíso sonhado, local de abrigo e vivência dos deuses, numa ideia de perfeição. Interessante que esta mesma mitologia nórdica, presente na coleção denominada Edas,¹⁷ relata, após a descrição do lugar sagrado dos Deuses, o nascimento da Terra e do Homem, numa simbiose mítica.

    Em tempos mais recentes, numa percepção simbólica e psicológica de morar, chama a atenção o singelo e premiado curta-metragem japonês A Casa dos Pequenos Cubinhos, de Kunio Kato, onde um simpático personagem luta para que sua casa não seja totalmente invadida pelas águas do mar.

    Ao longo dos anos, o personagem acrescenta sempre um novo pavimento, mantendo um alçapão que os interliga, numa referência simbólica destes com suas lembranças. Por vezes, abre-o para pescar, num sentido alegórico de ligação, memória e pertencimento.

    Esse ritual é interrompido quando, por um pequeno descuido, seu estimado cachimbo afunda nos compartimentos inferiores. Nas cenas seguintes, o personagem – vestido de roupa de mergulho – revive profundas e marcantes histórias em busca de seu precioso objeto. E enquanto submerge, as lembranças vêm de forma indelével, até remontar aos antepassados, revivendo fatos e acontecimentos que marcam sua ligação com o lugar. Os momentos retratados revelam-se como atos do teatro humano, da existência, dos medos, conquistas, alegrias e sofrimentos vividos.

    A alegoria do mergulho nos remete [...] a passagem do tempo, a construção de uma biografia e o limite inevitável ao escapismo e à alienação,¹⁸ segundo Marcelo Sobrinho. Encanta e nos faz refletir sobre as memórias existenciais que, ao seu tempo, acabam por encontrar os indivíduos nas esquinas da vida. Construímos castelos ao longo do existir, no lugar em que identificamos e nos reconhecemos.

    Com as imagens do homem e suas memórias, destaca-se a importância da moradia e sua inter-relação com a existência do homem, suas implicações e identificações. Percebe-se, dessa forma, que a moradia está estritamente ligada à própria condição de existência digna, na construção de sua identidade, seus valores, conceitos e experiências. Revela-se, pois, muito além do aspecto psíquico, apontando para uma gama de fatores ligados à moradia e que, em análise final, recaem na importância de seu respeito, valor fundamental humano.

    Para Bollnow, todo ser humano precisa de um centro, uma referência, constituindo este num espaço em que possa habitar, regressar, com sentido de raiz, devendo, pois, amar esse espaço, colocando tal condição como uma missão existencial. Dessa forma, a casa e o habitar se constituem como verdadeiro núcleo do espaço vivencial, diferente de qualquer outro, em razão da sua dimensão especial.¹⁹

    Na casa, a percepção do espaço e sua relação mudam, trazendo uma dimensão fundamental da nossa existência, segundo Proença.²⁰ Pondera ainda a autora que, em que pese grupos humanos terem restrições ao sentido clássico de pertencimento ao habitar, como ciganos e nômades, ainda assim a realização está condicionada ao ideal de identidade com um espaço. Afirma que, somente pelo habitar, o homem pode chegar à plenitude do seu ser.²¹

    De modo que, na construção do indivíduo, o papel do morar encontra eco nos valores que o fundamenta, impondo características que o seguirão ao longo de sua jornada vivencial.

    Ainda para Bollnow, a casa deve reunir as seguintes características para se falar em conforto do habitar, como forma positiva de construção de identidade: propiciar manter-se no mundo e fazer suas ações; ter espaço como sede de abrigo e paz, no sentido de recolhimento e constituir um espaço para relaxar e descansar para o enfrentamento da vida exterior, no espaço público.²²

    Na linha de formação da identidade humana, a moradia revela compartimentos que remetem à existência, com memórias, frustrações, medos e sentimentos, explorados agora simbolicamente no estudo de C. C. Jung,²³ quando adota a imagem da casa como ponto de integração psicológica, com abordagem da psicologia descritiva, psicologia das profundidades, psicanálise e fenomenologia para o entendimento e ensinamento da denominada topoanálise.²⁴

    No personagem do curta metragem citado, esse simbolismo mostra nossos compartimentos existenciais, construídos ao longo da vida.

    E, na continuidade da ideia de construção da identidade humana, Bachelard constrói o sentido da casa para o homem:

    Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz. Somente os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos.²⁵

    Adiante, o autor remete ao ideal de reconforto e segurança da casa, mostrando sua importância para a condição humana:

    A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser ‘atirado ao mundo’, como o professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que esse fato é um valor, um grande valor ao qual voltamos em nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa.²⁶

    Para Dallari, numa percepção mais pragmática, a moradia é uma [...] necessidade essencial dos seres humanos.²⁷ Afirma ainda que desde os mais remotos tempos da humanidade, o homem sempre precisou de espaços em que pudesse se abrigar das intempéries do clima, além de se proteger de animais ferozes e outras ameaças à sua existência. Buscou cavernas, construiu rudimentares habitações, onde pode recolher e conservar alimentos e água, além de outros bens essenciais à vida.

    Apenas por esses pontos, salienta Dallari, já [...] bastariam para que se reconhecesse o direito de moradia como fundamental para a pessoa humana.²⁸

    Ainda corroborando o argumento em termos a moradia como fundamental para o ser humano no sentido de abrigo, o pensamento de Peter José Schweizer e Wilson Pizza Junior revela que:

    A palavra casa nos leva a uma ideia de estrutura física, de uma construção material, à visão de paredes e teto. A moradia, no entanto, indica a realização de uma função humana, o ato de morar. Finalmente, a palavra habitação conduz a uma visão mais dinâmica no uso da casa ou da moradia; indica a ação de habitar. Os três conceitos são complementares e se referem à necessidade fundamental do ser humano de possuir um abrigo para nele realizar um conjunto de atividades que variam em função de cada cultura e do contexto social e ambiental nas quais se inserem.²⁹

    E, num aspecto mais sensível e poético, Warat associa a moradia nas relações pessoais, no retrato de solidão e angústia expressa na ausência do outro, completando o homem na relação do amor, despertando para sua completude:

    Todo começo é gregário, nunca solitário. Preciso sempre do outro que me ajude a aprender a começar. Precisamos sentir que construímos juntos nossa casa. O outro é o calor de nossa casa. Unicamente assim minha casa pode ser o calor dos outros. O calor de minha casa são as marcas dos calores dos outros que antigamente passaram e se hospedaram na onda. Meus velhos amores. Agora eles circulam em minha casa como uma casa muito particular de fantasmas que têm a missão de cuidar de minha ternura. São os cronópios que morreram em mim e que consideram que, todavia, não lhes chegou a hora de partir. Graças a eles estou vivo.³⁰

    Muito além de tais aspectos, a moradia é ainda lugar de repouso espiritual para os humanos. Retornando nos tempos, algumas culturas de origem greco-romana praticavam a religião doméstica, onde a casa era o centro sagrado de culto aos antepassados. Em local privilegiado da residência, havia o fogo sagrado, com oferecimento de jantares fúnebres em determinadas épocas do ano, buscando proteção e boas colheitas com a intercessão espiritual dos falecidos parentes, muitos dos quais sepultados na própria habitação, conforme Coulanges.³¹

    Por sua vez, no mundo clássico, que concebe a ideia de polis, alguns espaços são destacados na sociedade, constituindo-se em elemento de divisão do privado/público. Por tal razão, Aristóteles afirmava que o homem estava à mercê das duas ordens de existência, a pública e a privada, sendo a primeira constituída em sua bios-politicós.³²

    Era a distinção entre a esfera privada e a esfera pública.

    Nesse aspecto, a aglomeração de pessoas era feita com base na relação familiar, com o pater familis exercendo sua posição hierárquica de comando, definindo papéis importantes para o desenrolar das atividades humanas. Na casa – denominada oikia ou domus – eram atendidas as necessidades primárias, como alimentar, repousar e procriar. Somente depois de atendidas tais necessidades, podia o homem se lançar nos espaços públicos, exercendo a ação diante dos demais, na acepção política do termo.³³

    A vida pública, dessa forma, só se entendia possível após suprir todas as necessidades do privado, ou seja, da casa e de seus moradores. Esse ponto marca o primeiro elemento da cidadania, como forma condicionante para se fazer ouvir nos debates públicos.

    E, apontando para uma perspectiva religiosa do mundo cristão ocidental, a casa, na concepção judaica, possui sentido além de mera morada física, constituindo-se numa simbólica condição de crescimento interior, de descoberta da missão de cada pessoa no plano existencial.

    O Rabino Eli Touger assevera que no início, só havia vazio e escuridão, referindo-se à criação de tudo.³⁴ Deus teria como propósito criar o universo como moradia dos mundos inferiores, um lar onde pudesse se manifestar dentro de nossas limitações materiais. Assim, o lar seria o espaço material onde o ser humano se manifesta por completo, palco importante e constante na caminhada para a perfeição humana. Havendo a separação e a percepção pelo homem do propósito de Deus, a evolução seria o estágio de perfeição do homem, alcançando nas alturas, a morada de Deus.

    Já na história do cristianismo, o povo de Deus deve conquistar uma residência permanente, a Terra Sagrada e, ao mesmo tempo, atender a uma convocação para que esse mesmo povo deixe sua morada para andar e espalhar os ensinamentos, como os apóstolos com Cristo, parecendo, a princípio, paradoxal.

    Todavia, o sentido de deixar a moradia significa evangelizar, espalhar a palavra libertadora, na concepção cristã.

    Assim, Abraão foi obrigado a deixar sua casa, muito embora Deus tenha prometido uma terra onde morar, a terra de Canaã.³⁵

    Em outros trechos da Bíblia, Jesus renova as promessas de morada na casa do Pai, onde há muitas moradas (Jo 14,2), ainda que tenham que caminhar – Caminhai enquanto tendes luz (Jo 12,35).

    Como profeta, Jesus segue caminhando sem nunca parar, afirmando que as raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça (Mt 8, 20).

    No mundo islâmico, última grande religião monoteísta ocidental, a casa é assegurada como condição de simplicidade e de refúgio, devendo o homem construí-la para trazer o respeito, dentro de seus limites econômicos, nunca de modo a sustentar uma posição social a qual não pertença. Nesse aspecto, Maria Mendonça Guerra de Azevedo Seara remete à ideia de simplicidade da casa islâmica:

    A humildade que compõe o espírito islâmico reflete-se na sua arquitetura. A construção de palácios e edifícios imponentes é condenável e para o muçulmano a riqueza não é boa, não é pura. A extravagância é, portanto, desencorajada, não devendo ser construídas divisões desnecessárias. Uma casa deve ter um quarto de visitas e qualquer divisão a mais, desnecessária, será, segundo o Islão, para Satanás. Os escritos religiosos afirmam que aquele que construir acima das suas necessidades irá carregar a sua casa em cima dos ombros no dia do julgamento. Do mesmo modo, reprova-se o recurso a ornamentos caros, sendo condenável o uso de peças em ouro, prata e seda. A decoração deve fazer-se antes com peças simples como flores, tecidos etc. Isto porque, na impossibilidade de usar estátuas religiosas já que a figuração de Deus é proibida, ao recorrer a elementos naturais, ou mesmo quadros com representações da natureza, o muçulmano está a contemplar a criação divina.³⁶

    As grandes religiões ocidentais monoteístas pregam, dessa forma, a concepção da simplicidade e devoção em suas moradas, reinando a identificação do lar à crença religiosa, numa interface de construção de identidade, de modo de vida e valores espirituais.

    De volta ao aspecto histórico, o período medieval, diante das invasões de povos do Norte e da queda de Roma, acentua na Europa Ocidental a chamada Idade das Trevas.³⁷

    Tal período é marcado pelo terror e pela violência, havendo um processo de ruralização da Europa, com populações inteiras fugindo dos bárbaros³⁸ e de sua saga de conquistas. Muitos passam, dessa forma, a morar em castelos e conseguir proteção diante da violência, em arranjos sociais e econômicos que determinou o Feudalismo. Interessante ressaltar que o novo sistema, em última análise, deve-se muito ao fato do lugar e da moradia, como fatores determinantes para sua configuração.

    E, pelo cenário de disputas territoriais, guerras e violência pelas estradas europeias, o guerreiro medieval vivia em qualquer lugar que pudesse significar um abrigo, um esconderijo para poder se recobrar para as batalhas futuras. Ao atingir a idade adulta, lançava-se para o confronto contra seus inimigos, segundo Norbert Elias:

    O guerreiro da Idade Média não amava só a guerra, vivia dela. Passava a juventude preparando-se para isso. Ao chegar à idade apropriada, era armado cavaleiro e fazia a guerra enquanto as forças Ihe permitiam até a velhice. Sua vida não tinha outra função. Seu lugar de moradia era uma torre de vigia, uma fortaleza, simultaneamente arma de ataque e defesa. Se por acidente, por exceção, vivia em paz, precisava pelo menos da ilusão da guerra.³⁹

    A transição do feudalismo para o capitalismo trouxe a pacificação das estradas ocidentais, bem como o renascimento das cidades, com destaque para as italianas. Passou-se a viver muito além da mera perspectiva domiciliar, tendo o trabalho sofrido transformações também significativas. No novo sistema capitalista, a moradia deixava de ser o centro de tudo, onde se produzia o sustento, passando – gradativamente – a ter o antigo artesão o deslocamento de seu trabalho – agora para a fábrica.

    No processo evolucionista do capitalismo, sai o mercantilismo da Idade Moderna e entra o capitalismo industrial, retratado por Diderot na enciclopédia, descrevendo uma fábrica de papel na França pré-revolucionária onde os trabalhadores passam a viver de forma diferenciada, criando o desencaixe do morar e sobreviver:

    O cenário dessa fábrica modelo – tão bonito para nossos olhos – na verdade dramatiza uma grande transformação que começa na época de Diderot; ali, a casa separava-se do local de trabalho. Até meados do século dezoito, a família atuava como o centro físico da economia. No campo, as famílias faziam a maioria das coisas que consumiam; em cidades como Paris ou Londres, os ofícios também eram praticados na morada familiar. Na casa de um padeiro, por exemplo, diaristas, aprendizes e a família biológica do padeiro ‘faziam as refeições juntos, e dava-se comida a todos juntos, pois se esperava que todos dormissem e vivessem na mesma casa’, como observa o historiador Herbert Applebaum; ‘o custo da fabricação do pão [...]’. incluía a habitação, alimentação e roupa de todas as pessoas que trabalhavam para o amo.⁴⁰

    Esse instante marca o rompimento do viver do homem contemporâneo junto à sua moradia, criando uma série de implicações na sociedade hodierna, como mobilidade, marginalização e o morar longe do trabalho, como abordado por Engels em críticas à sociedade burguesa.⁴¹

    Sua análise nos fornece elementos de percepção do fenômeno histórico das cidades, o impacto na vida dos indivíduos e as transformações operadas pelo capitalismo industrial do século XVIII. Independente de viés ideológico, o relato nos permite aquilatar as condições de moradia como fator de relevo para os demais elementos sociais do período, impactando, sobremaneira, a vida e os rumos econômicos, políticos e sociais.⁴²

    Reflete, pois, a moradia com significado do exercício de uma profissão, de trabalho e sobrevivência, ainda que tenhamos hoje uma experiência de reviver o trabalho em casa, com auxílio da tecnologia.⁴³

    A casa também retrata, por fim, a condição social e cultural do homem, transmitindo seu conceito de belo, ornamentando espaços, criando atmosfera de conforto, luxo e bem viver. As obras de arte, pertencentes a esse conjunto de fatores, manifestam elementos do cotidiano, das percepções e que, na morada, atravessaram os tempos, desde as pinturas rupestres até os quadros renascentistas, modernistas e tantas outras criações que adornaram paredes e almas, enfeitam salas nas diferentes culturas.

    Importante concluir, nesse item, que a moradia encerra em si um conceito amplo, que se pode resumir na construção da identidade e personalidade do homem. Serve como modelo simbólico para o estudo deste mesmo ser humano, com seus amores, frustrações, anseios e vivências.

    Serve ainda como espaço para seus cultos e crenças, manifestando sua religiosidade tanto no aspecto de rituais como na própria construção de sua ligação com o Divino. É ainda local de abrigo, de condição de atendimento às suas necessidades básicas como animal racional, além de se constituir em fortaleza para sua defesa. E, por condição inata do homem, a moradia é também substrato para a expressão da arte, eternizando sentimentos. Em Ética a Nicômaco temos:

    O homem magnificente também apresta sua casa de maneira condigna com a sua riqueza (pois até uma casa é uma espécie de ornamento público), e gastará de preferência em obras duradouras (pois são essas as mais belas), e em toda classe de coisas gastará o que for decoroso; pois as mesmas coisas não são adequadas aos deuses e aos homens, nem a um templo e a um túmulo.⁴⁴

    Assim, a moradia se mostra como elemento indispensável da própria existência humana, impondo sua conceituação em cinco aspectos ou elementos, conforme Leão Junior: aspecto de proteção, com escopo de proteger vida e integridade; aspecto pessoal, com a moradia atendendo às necessidades individuais de seus moradores; aspecto físico, existindo instalações adequadas, como livres de umidades, odores, perigosas, como exemplos; aspecto espacial, onde deve ser atendida por serviços do Estado, como transportes, hospitais e, por fim, aspecto temporal, transmitindo uma relação de continuidade e segurança de que a moradia é fator presente e garantida para o futuro.⁴⁵

    Como percebido, a existência humana está intrinsecamente atrelada à moradia, seja em seu aspecto mitológico, religioso, cultural, social, econômico, além de sua identificação psicológica e de formação existencial. Não obstante, serve em aspecto prático, como proteção, restando, dessa forma, relacionar moradia como um o viver cotidiano, a realidade que espera a todos, dentro das desigualdades sociais.

    1.4 O ESPAÇO URBANO E A MORADIA – MERCADORIA CARA

    Morar não é fracionável. Não se pode morar um dia e no outro não morar.⁴⁶

    A citação literal de Arlete Moysés vem seguida de uma provocação, afirmando que se pode até almoçar num dia e noutro não, mas isso não se aplica à moradia. Esta não se pode fragmentar, como se fosse razoável pedir um pedaço da casa para morar, da mesma forma que se pede pão para aplacar a fome.

    A moradia é comprada, implica sempre um custo, capacidade para adquiri-la, ou mesmo alugar. Não se pede uma casa velha para morar, como se pede uma roupa usada e que não serve mais.⁴⁷ Deve ser paga, na grande maioria das vezes.

    Interessante considerar que um dos parâmetros do Decreto-Lei nº 399, de 1938,⁴⁸ onde se estabeleceu o salário-mínimo, há expressa menção da habitação como despesa necessária para atender as necessidades básicas do ser humano. Sua redação afirma que [...] o salário-mínimo será determinado pela soma das despesas diárias com alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte, necessários à vida de um trabalhador adulto.

    O trabalhador, deve, assim, receber uma remuneração que possa propiciar moradia, habitação, de forma digna. Porém, a realidade difere da redação do texto legal. Por uma conta aritmética muito simples, constata-se que a renda do trabalhador não atende a todos os itens essenciais.

    Conforme dados da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional ocorre, dentre muitos fatores, pela dificuldade em conseguir pagar o aluguel para moradia, notadamente em grandes centros urbanos. A pesquisa denomina de ônus excessivo com aluguel urbano e é considerado um fator metodológico para definir o déficit habitacional e leva em consideração os gastos superiores a 30% da renda com moradia.⁴⁹ Internamente, conforme apurado em 2015, o ônus excessivo com aluguel representa 50,0% do total do déficit habitacional, a coabitação familiar 29,9%, as habitações precárias 14,8% e o adensamento excessivo dos domicílios alugados 5,2%.⁵⁰

    Afeta o trabalhador com renda, dispondo de recursos expressivos para morar. E desloca para áreas mais precárias aqueles que não conseguem minimamente atingir renda para pagar um aluguel, independentemente de seu valor.

    A moradia acaba relegada a um plano secundário, produzindo habitações de improviso, sem condições adequadas para se viver.

    Mesmo com trabalho e renda, a moradia se torna mercadoria extremamente onerosa para o trabalhador comum.

    Assim, para a compreensão de todo o processo, necessária a gênesis de toda a problemática quanto ao aspecto de exploração do espaço e sua condição de mercancia.

    Impõe-se, desta feita, um recorte metodológico quanto aos aspectos temporais para entendermos esse processo de lucratividade e seu impacto nas vidas humanas.⁵¹ De modo que o presente estudo parte da ocupação de espaços e das cidades no nascente capitalismo industrial.

    De modo que, em busca de sobrevivência e renda, as cidades – espaço ocupado pelo homem que o fragmenta em forma unitária de moradia – foram se avolumando numa espiral crescente desde os primórdios da revolução industrial, quando trabalhadores se veem forçados a uma nova vida, agora urbana, em busca de emprego e salário.⁵²

    A industrialização mudou a renda – que antes era até obtida dentro de casa, com a exploração da terra e do trabalho campesino – trazendo nova forma e local de sobreviver.⁵³

    No entanto, esses espaços não estavam adaptados e prontos para receberem seus novos habitantes, gerando, desde o final de século XVIII, déficit de moradias em cidades da Alemanha, França e Inglaterra.⁵⁴

    Engels afirma que, muito embora a classe trabalhadora tenha sofrido com essa falta de infraestrutura, como a escassez de moradias, esta condição não ficou restrita apenas aos operários, atingindo, de maneira indistinta, todos os explorados pelo capitalismo. E esse cenário só

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1