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Nossa Senhora Achiropita no Bexiga: uma festa religiosa do catolicismo popular na cidade de São Paulo
Nossa Senhora Achiropita no Bexiga: uma festa religiosa do catolicismo popular na cidade de São Paulo
Nossa Senhora Achiropita no Bexiga: uma festa religiosa do catolicismo popular na cidade de São Paulo
E-book231 páginas2 horas

Nossa Senhora Achiropita no Bexiga: uma festa religiosa do catolicismo popular na cidade de São Paulo

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Sobre este e-book

Estudo antropológico de uma festa religiosa do catolicismo popular, na cidade de São Paulo, sua memória e atualidade. Procura-se entender as construções identitárias que se constroem em torno da santa calabresa e sua oposição com outras etnias residentes no bairro do Bixiga.
As relações de conflito são expressas através da santa em todas as manifestações em sua homenagem, tanto no cotidiano quanto no festivo.
Procura-se captar o momento de ruptura da festa do bairro para festa da metrópole, tornando-se uma festa de referência da comunidade italiana na cidade de São Paulo. Os significados da festa religiosa, incorporados em símbolos, referem-se à situações históricas do passado, passiveis de serem registradas através da memória de seus participantes, podendo ser comparadas ao contexto sociocultural dos dias atuais.
No decorrer do trabalho, verifica-se impossível estudar a festa em si mesma, enquanto estrutura específica, independente da comunidade na qual se realiza. A festa relata a história da própria comunidade, sua construção e reconstrução constante.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de ago. de 2021
ISBN9786525209180
Nossa Senhora Achiropita no Bexiga: uma festa religiosa do catolicismo popular na cidade de São Paulo

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    Nossa Senhora Achiropita no Bexiga - Maria Célia Crepschi Coimbra

    I PARTE

    AGOSTO MÊS DE FESTA MEMÓRIA COMUNITÁRIA.

    No princípio...

    era uma festa diferente... O povoado era pequeno, se formavam comissões de festeiros através de reunião e a partir dessa reunião tinha-se os cabeças e suas missões. Um tomava conta do leilão, outro do recebimento, porque tinha muita gente de fora, ... vinham pessoas até da Argentina, descendentes da Calábria. (JS, 97a, filho de calabrês).

    CAPÍTULO I. O LUGAR: BEXIGA.

    Já em 1902 o aglomerado de casas e barracos construídos por negros libertos e italianos tinha o essencial para um núcleo de povoamento, uma padaria, uma mercearia e uma santa padroeira: Nossa Senhora Achiropita, trazida pelos calabreses de Rossano, que chegaram no século XIX substituindo escravos alforriados. (JBV,43:2)

    1. Origem do Bexiga

    O Bexiga, cujo centro é a igreja de Nossa Senhora Assunção Achiropita, dista aproximadamente 1.700m da praça da Sé, centro geopolítico da cidade de São Paulo. Oficialmente está incluído no bairro da Bela Vista, cujos bairros limítrofes são estes: ao norte, Vale do Anhangabaú; a leste. Liberdade; ao sul, Jardim Paulista; a oeste, Cerqueira César e Consolação. É Nesse lugar que vamos procurar acompanhar os calabreses, que trazem ao bairro a devoção a Nossa Senhora Achiropita.

    O mato da antiga Chácara do Bexiga (v. mapa, p. 12 e 13) era lugar de refúgio de escravos; para lá também se dirigiam alguns alforriados, após a Lei Áurea, escravos libertos e portugueses. No início, eles ocupavam o brejo da Saracura, em torno do largo São Manuel (hoje Praça 14 Bis).

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    Figura 1 – Chácara do Bixiga – 1881.

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    Figura 2 – Campos do Bixiga.

    Por entre o mato correm rios que vão determinar a distribuição espacial e a ocupação da área:

    (...) o rio Saracura Pequena que vinha das colinas do Trianon, descendo pelo fundão ou vale que mais tarde seria a Av. 9 de Julho, o rio Saracura Grande que vinha com seu leito pelos lados da Marques Leão e Rocha, desembocando no Saracura Pequena formando um único rio que unia-se ao Anhangabaú.

    "Nas margens do Saracura Grande podia-se ver grandes plantações de verduras, notadamente de agrião, plantada pelos portugueses: havia também vacas onde podia-se comprar leite tirado na hora. Nesta região podia-se notar muitos portugueses. (JBV,48: 3)¹

    No final do século passado chegam os primeiros imigrantes italianos²; os que vão para o Bexiga ocupam-no a partir do largo do Piques (atual praça das Bandeiras), situado dentro do perímetro urbano. No decorrer do tempo, os italianos e seus descendentes vão constituir maioria no bairro, mas originalmente predominavam negros e portugueses. Segundo o Sr. J.S. (97 anos, filho de calabreses), a formação do Bexiga

    (...) se deu a partir do largo do Piques, estendendo-se em seguida para o miolo do bairro, no trecho entre as ruas Major Diogo e Marques Leão.

    O largo do Piques e um dos pontos mais importantes da história do bairro, por ter sido um centro de intensa atividade econômica - ali se fazia o comércio de escravos, era grande o movimento de tropeiros. Conta-nos o Sr. J.S.:

    O movimento era tão grande, que em meados do século passado ali foi estabelecida uma fazenda a varejo, tomando o nome de loja dos Tropeiros. Existia uma pequena área no largo do Piques que era conhecida pelo nome de ‘páteo dos animais.’ Nesse largo, posteriormente começaram a circular as carroças, que também serviam como meio de transportes.

    O sr. J.S. relata-nos que, quando sua família se mudou para o Bexiga, em 1890, a rua 13 de Maio (hoje uma das principais do bairro) ainda não existia, era só mato, com uma ou outra chácara existente. A família não pretendia se estabelecer no Brasil:

    Minha família não era para vir para cá. Eles falavam da América que era a Argentina e não o Brasil. Meu pai e mãe eram calabreses de Rossano. Eles pretendiam ficar alguns meses na Argentina e depois voltar para a Itália. Mas logo arrebentou a revolução na Argentina. E éramos em três irmãos naquela época. Então viemos para o Brasil. Quando aqui chegamos estava se alastrando a febre amarela e foi um caos. Meu pai foi o primeiro alfaiate daqui. Ele tinha a alfaiataria Ítalo-Paulista, onde é o Mappin hoje, e tinha muito mais preparo do que um ex-escravo, para fazer as roupas dos elegantes da época.

    O mesmo entrevistado nos fala da festa que os negros realizavam no bairro:

    Durante muitos anos, os negros libertos e seus descendentes comemoravam a data de 13 de maio com uma festa na capela quê existia no largo São Manoel. Chamava-se festa de Santa Cruz. Mas a capela foi demolida antes da 1a Guerra, e só então a festa passou a ser realizada na rua 13 de Maio, onde existiam vários cortiços habitados por ex-escravos.

    Por meio da festa de Santa Cruz, celebrada com batuques e danças, os negros libertos tentam afirmar que aquele espaço (definido pelo tempo sagrado) lhes pertence.

    Assim como eles, afirmam-se nesse espaço também os imigrantes italianos, por meio da festa de sua santa, e onde já existiam vários cortiços habitados por ex-escravos, vão erguendo suas habitações.

    A massa compacta do casario modesto foi surgindo sem qualquer projeto (,..). As residências eram desenhadas pelos ‘capomastri’, arquiteto que usava planta, mas riscava diretamente no chão e levantavam as paredes dos sobrados. (JBV, 79:2)

    Dessa maneira, sendo gradualmente ocupado pelos italianos, o Bexiga vai modificando sua fisionomia e redefinindo seu espaço.

    A maioria dos italianos que aqui chegaram, mais da metade eram calabreses e pode-se afirmar categoricamente que as principais ocupações destes imigrantes eram sapateiros, pedreiros, carpinteiros, jardineiros, alfaiates. (JBV, 85:2)

    Os calabreses que se estabeleceram no Bexiga, lugar de ex-escravos, se por um lado tinham preparo profissional, por outro tinham fama de possuir temperamento muito explosivo.

    Muitos justificam o fato de que a maioria dos imigrantes radicados no Bexiga serem calabreses atribuindo ao temperamento explosivo dos calabreses (...). Assim, enquanto muitos imigrantes italianos já vinham contratados para trabalhar em fazendas, os calabreses preferiam as cidades, diferenciando-se dos vênetos e napolitanos, toscanos, bareses, e outros. Eram comuns as brigas entre negros e calabreses, com isso ganharam fama de valentões. (JBV, 85:2)

    No relacionamento com negros, portugueses, ingleses e com outros imigrantes italianos, os calabreses sempre mantiveram conflitos, mais ou menos latentes, afirmando-se como um grupo distinto no Bexiga.

    No brejo da Saracura - a Saracura Grande (rua Marques Leão) e a Saracura Pequena (rua Rocha) - havia somente casebres onde habitavam os negros, e não casarões com escadarias (cf. Grünspun, 1979:25). Nas palavras do sr. C. (60 anos, filho de calabreses): Na Saracura eram cortiços, dos negros. As casas cheias de salinhas. Os negros nunca se misturavam com os italianos.

    Outra fonte de informação dá a seguinte versão:

    Na parte baixa do Bexiga (que é a Saracura) localizavam-se as vilas e os cortiços que na realidade eram ocupados por calabreses e negros, homens de bom caráter, excelentes chefes de família e que realmente contribuíram para o progresso e o desenvolvimento de nosso bairro. (JBV, 56:2). (grifo nosso).

    É interessante notar que, na primeira versão, é estabelecida uma oposição quanto à geografia humana local, separando-se negros e italianos, ao passo que, na segunda, estes são colocados lado a lado, sugerindo um paralelismo: calabrês/vila, negro/cortiço.

    Já em 1902 o aglomerado de casas e barracos construídos por negros libertos e italianos tinha o essencial para um núcleo de povoamento, uma padaria, uma mercearia e uma santa padroeira: ‘Nossa Senhora Achiropita’, trazida pelos calabreses de Rossano, que chegaram no século XIX substituindo escravos alforriados. (JBV, 43:2).

    Os calabreses que chegaram para substituir os escravos alforriados de fato o fizeram, tanto no campo do trabalho quanto na ocupação do espaço, além de trazerem um novo objeto de devoção religiosa: Nossa Senhora Achiropita será a padroeira do bairro.

    Às margens do rio Saracura também residiam portugueses, que ali criavam vacas e desenvolviam a horticultura. Segundo o sr. C., Eram poucos os portugueses no Bexiga. O número maior era da colônia italiana.

    Sabe-se que, desde o final do século passado, também os portugueses faziam sua festa - a festa de São José -, posteriormente realizada na Vila dos Portugueses, situada na rua Rui Barbosa, e não mais na região da Saracura.

    Em fins do século passado chegaram os investidores ingleses, alguns dos quais instalaram suas residências no espaço mais alto do Bexiga - eram os fidalgos do Morro dos Ingleses -, em oposição a italianos e negros, que habitavam a região mais baixa. Assim, o espaço geográfico era corresponder de maneira significativa ao espaço social, a hierarquia entre os grupos étnicos esta regionalmente marcada.

    Segundo um descendente de calabreses, nesse morro havia um campo de golfe (nas imediações do atual Teatro Ruth Escobar). Lemos no jornal do bairro:

    (...) havia muito mato em volta do morro dos Ingleses, e no decorrer das partidas de golfe sempre perdia-se uma bola no meio do ‘capim barba de bode’, sendo que os ingleses (...) ofereciam aos garotos do bairro um vintém por bola que achassem. (JBV 72: 2).

    2. Bela Vista e Bexiga

    Dizem os antigos moradores do Bexiga que, em resposta aos apelos dos fidalgos do Morro dos Ingleses, em 1910 o nome do bairro foi mudado oficialmente para Bela Vista. No entanto, os italianos e seus descendentes jamais aceitaram a mudança e insistem em acentuar a oposição entre as duas áreas, pois em termos de limites físicos, estas são facilmente confundíveis por quem não integra a comunidade. Para eles, o espaço no qual imprimiram sua identidade sempre foi e continua sendo o Bexiga. ³

    Segundo Nuto Sant’ Anna, o nome Bexiga remonta ao período entre 1789 e 1792; a varíola, popularmente conhecida como bexiga, durante longos anos atacara a cidade de São Paulo, e a região em que se concentravam os doentes contagiados pela moléstia passou a se chamar de Bexiga. O que parece é que se pretendia isolar os doentes que deviam ser retirados para os lugares de praxe, situados nos arrabaldes de São Bento, Tabatinguera e o Piques mais conhecido por Bexiga (...) e que ficavam em seus limites. (Sant’ Anna, 1977:73).

    Alguns moradores também relacionam o nome do bairro a uma epidemia de varíola. Para outros, a origem foi um matadouro da Prefeitura localizado no bairro, onde se vendia bexiga de boi (Cf. JBV, 73:2). por fim, há os que fazem uma associação com o dono da chácara em que o bairro se constituiu, chamado Antônio Bexiga. Em todo caso, foi por causa da bexiga que o Bexiga ganhou seu nome, e seus moradores são chamados os bexiguentos.

    3. O Bexiga ontem

    No tempo da Chácara do Bexiga, o bairro apresentava intenso movimento de tropeiros, conta-nos o sr. C.; Elas ficavam exatamente na entrada da Chácara do Bexiga, onde estacionavam. Naquela época esse era o largo do Piques.

    Ele nos conta também que posteriormente as tropas seguiam pela estrada Caminhos Novos, hoje avenida Brigadeiro Luís Antônio, e iam parar em Santo Amaro. O Bexiga cresceu rápido, talvez pela proximidade com o centro da cidade, favorecendo sua grande movimentação. O marco zero do bairro, segundo sr. B (65 anos, calabrês), foi o largo do Piques: Posso afirmar que ali era o coração do Bexiga, o ponto mais importante da época.

    Com a abertura de ruas e a multiplicação de casas, o centro do bairro transferiu-se para a parte de cima, entre as duas regiões mais influentes de São Paulo - o centro da cidade e o espigão da avenida Paulista- -, e ali os calabreses erigiram sua capela, na rua 13 de Maio, em cujas proximidades concentrava-se a maior parte de suas moradias.

    Na década de 30, num lado da linha do bonde predominavam italianos e seus descendentes, seguidos de mulatos e negros; do outro lado da linha, portugueses, alguns judeus e paulistas de classe média, como professores e funcionários públicos, muitos dos quais eram descendentes de portugueses e italianos.

    O espigão da Paulista foi escolhido pela burguesia para construir seus casarões, enquanto nas baixadas nas proximidades da Saracura, foram-se fixando os negros e nas demais áreas do Bexiga, os lotes foram sendo comprados pelos calabreses que imigravam. (Lucena, 1983:27).

    O morro dos Ingleses era reflexo da Av. Paulista (...) até ganhar certos ares aristocráticos." (Id.: 69).

    Segundo o sr. J.S., No alto, no Morro dos Ingleses, moravam os fazendeiros de café, que acendiam charuto com notas de 500 mil-réis.

    O Bexiga na década de 30, segundo Haim Grünspun (1979: 31), era um bairro no qual se aglomeravam negros, mulatos e italianos em alegres e barulhentas reuniões festivas. Nas palavras do Sr. J.S., nessa época "70% de seus moradores eram imigrantes italianos, 10% eram portugueses e 20%, ex-escravos e seus descendentes.

    Até o início dos anos 50, estes últimos festejavam a abolição na rua 13 de Maio. Porém, na década de 30, com a predominância de italianos (em especial calabreses) e seus descendentes, são estes que se tornam anfitriões dos negros e que os prestigiam no dia da festa de Santa Cruz, oferecendo-lhes comidas e bebidas em mesinhas debrua. O sr. J.S. nos diz que por uma noite o Bexiga era mais africano do que italiano.

    A situação econômica dos moradores do Bexiga caracterizava-se de maneira.geral como uma situação de pobreza, em contraste com a opulência de seus vizinhos da Paulista; para os moradores de origem italiana, existia também uma oposição em relação aos seus parentes do Brás, cujas condições econômicas eram em geral melhores.

    No bairro havia vendas (mercearias) que ofereciam produtos a granel, não industrializados, cantinas

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