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Bumbás da Amazônia: Negritude, intelectuais e folclore (Pará, 1888-1943)
Bumbás da Amazônia: Negritude, intelectuais e folclore (Pará, 1888-1943)
Bumbás da Amazônia: Negritude, intelectuais e folclore (Pará, 1888-1943)
E-book316 páginas4 horas

Bumbás da Amazônia: Negritude, intelectuais e folclore (Pará, 1888-1943)

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Sobre este e-book

A obra Bumbás da Amazônia: negritude, intelectuais e folclore (Pará, 1888-1943), de Antonio Maurício Costa, aborda o período que foi marcado por profunda transformação da cultura das classes populares e o modo como os intelectuais a interpretavam, considerando as interações entre sujeitos sociais na Amazônia brasileira.
A partir do estudo dessas interações, o livro, em seus três capítulos, trata de um exemplo de história contemporânea da produção de significados acerca da noção de cultura popular, discutindo sobre os usos e as repercussões em torno de manifestações culturais produzidas por agentes das classes trabalhadoras.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de fev. de 2022
ISBN9786558408598
Bumbás da Amazônia: Negritude, intelectuais e folclore (Pará, 1888-1943)

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    Bumbás da Amazônia - Antonio Maurício Costa

    TOADA DE ABERTURA

    "Ele não sabe que seu dia é hoje (4x)

    O céu forrado de veludo azul-marinho

    Veio ver devagarinho

    Onde o boi ia dançar (…)

    E vem de longe o eco surdo do bumbá sambando

    A noite inteira, encurralado, batucando…

    Bumba meu ‘Pai do Campo’, ô ô

    Bumba meu boi-bumbá"

    (Boi-Bumbá, Batuque Amazônico, 1934, Waldemar Henrique)

    "Boi Pai do Campo, teu dia chegou (2x)

    O danado do negro pegou na espingarda e matou (2x)

    Boi Pai do Campo, eu te quero bem (2x)

    Quem matou Pai do Campo pode me matar também (2x)"

    (Boi Pai Do Campo Teu Dia Chegou, toada de boi-bumbá, gravada em Belém-PA em 30 de junho de 1938, Cordão Boi Pai do Campo)

    Os últimos anos do século XIX inauguraram um período em que as repúblicas latino-americanas absorveram elementos da nova ordem capitalista opostos ao persistente legado colonial, especificamente na atividade econômica, na ordem política, nas artes e nos meios de entretenimento. Este novo ambiente pavimentou o caminho para a emergência de um sentido intelectualizado para o termo popular (Gonzáles, 2012, p. 86-87). Por exemplo, no domínio específico da música, movimentos de vanguarda da América Latina se dedicaram à renovação da arte nacional a partir de fontes nativas, ao encorajar o reconhecimento e a compilação da música vernacular naquele período (Moreira, 2012, p. 214).

    Ao mesmo tempo, grandes cidades latino-americanas passaram a concentrar número considerável de serviços de lazer e entretenimento, parte deles acessíveis a trabalhadores urbanos comuns (Vinci de Moraes, 2000, p. 19). Gente dos estratos médios e parcelas das classes trabalhadoras tornavam-se cada vez mais aptas ao consumo de atrações artísticas oferecidas por espetáculos teatrais, por eventos circenses, por apresentações musicais, por registros fonográficos e outros tais. Festejos marcados por grande participação popular expandiram-se desde fins do século XIX (em direção às primeiras décadas do século XX), em grande medida, associados às novas possibilidades comunicacionais estabelecidas pelos emergentes meios de reprodução, de difusão de informação e de promoção de conteúdos artístico-culturais: os jornais diários, as revistas ilustradas, o gramofone, o cinema e a radiodifusão. Grupos e associações festivas e musicais compostas por trabalhadores pobres, negros e mestiços, moradores de bairros suburbanos das grandes cidades brasileiras, ganharam cada vez mais atenção da imprensa, negativa e positiva, desde o final da escravidão no Brasil.

    Na capital do Pará, cordões carnavalescos, conjuntos de pastorinhas e grupos de bois-bumbás, de pássaros e de bichos receberam crescente repercussão jornalística a partir de 1888, especialmente nos momentos do ano em que sua presença nas ruas se adequava ao contexto festivo: cordões de rua, no carnaval; pastorinhas, nas festas natalinas; bumbás, pássaros e bichos, nas festas juninas. Mas a presença desses coletivos alcançava também outros espaços e ocasiões além de apresentações em ruas, praças e casas particulares. Poderiam exibir-se em teatros populares, enviavam emissários a redações de jornais, obtinham divulgação em revistas ilustradas ou erguiam espaços próprios para suas atividades em seus bairros de origem.

    Os grupos de bumbás¹, divulgados pela imprensa paraense desde fins do século XIX, eram conjuntos performáticos dirigidos por núcleos familiares e dedicados à exibição de textos dramáticos, coreografias, figurinos e cantos (toadas). Brincante é a autodesignação dos participantes dessas trupes até os dias atuais. Como ocorre em diferentes estados do Norte e do Nordeste do país, as apresentações têm como tema central o roubo, a morte e o renascimento de um animal de estimação (boi, pássaro etc.). Entretanto, trata-se de um mote que pode variar em função do contexto de exibição e de inovações narrativas incorporadas ao roteiro, sejam elas cômicas ou trágicas (Carvalho, 2011). A dinâmica de produção do folguedo em diferentes pontos do Brasil aponta roteiros sempre diversos, maleáveis, descentralizados, fragmentados e abertos a influências da realidade local (Cavalcanti, 2001, p. 78).

    Este livro focaliza o período que vai do Pós-Abolição até o decorrer do Estado Novo² na Amazônia brasileira como momento de profunda transformação da cultura das classes populares e do modo como os intelectuais³ as interpretavam. Segundo Hall (2003, p. 250), seria no intervalo entre as décadas de 1880 e 1920⁴ que a noção de cultura popular tradicional viria à tona em sua forma moderna, ligada à atribuição intelectual genérica da autenticidade cultural do povo. A crítica de Stuart Hall à tal construção (cultura popular) propõe a não existência de um estrato autêntico, autônomo e isolado de cultura da classe trabalhadora (Hall, 2003, p. 250). Seriam, então, as condições sociais e materiais dos trabalhadores pobres que demarcariam de forma mais nítida a expressão de um universo cultural subalternizado sempre em conexão com a proeminência das artes, da ciência e dos valores identificados com as elites capitalistas.

    O imediato período Pós-Abolição no Brasil foi marcado pela promessa de liberdade e cidadania à população liberta, esperança acompanhada de limitações estipuladas por práticas mantenedoras da desigualdade de raça e de classe. A impossibilidade de alcance pleno de cidadania a partir de 1888 se revelou pela propagação, em discursos elitistas, de estigmas de raça e de associação da negritude ao cativeiro. No mesmo passo, pessoas egressas da escravidão, ao lado de negros e mulatos livres de antes do 13 de maio de 1888, engrossavam o contingente de trabalhadores pobres que vivia sob essas condições (Alberto, 2011, p. 3). Reeditavam-se, assim, hierarquias raciais no contexto Pós-Abolição, na medida em que discursos de autoridades e narrativas jornalísticas identificavam entre os negros perversão de costumes, passividade e desordem moral (Abreu, 2004, p. 4).

    O fato é que a presença massiva e festiva de pessoas negras livres nas ruas desde a campanha abolicionista (Abreu; Dantas, 2011, p. 104), incomodava representantes de setores das elites urbanas, que demandavam instrumentos de controle e de repressão a manifestações coletivas como festas e outras práticas de lazer. Para a população negra das grandes cidades brasileiras dos primeiros anos da república, o acesso ao espaço público para trabalho, diversão, práticas religiosas, dentre outros, era questão premente e correspondente à busca por cidadania. A conquista desse direito exigiu a adoção de estratégias diversas de ação e de reivindicação (Guillen, 2014, p. 72), tais como a formação de núcleos associativos identificados com locais de moradia e de trabalho.

    Na outra ponta da sociedade, representante de setores dominantes, a geração de intelectuais emergentes a partir da década de 1870 preconizava a própria missão de iluminar o país através da ciência e da cultura. A meta pretendida era a de colocar o país ao nível do século, com a superação do atraso cultural por meio da integração ao moderno e ao científico. Ademais, intelectuais defensores do regime republicano o concebiam como um momento demarcador de ingresso do país no século civilizado (Oliveira, 1990, p. 79, 81, 90). Para o cumprimento desse encargo, tomava-se a Europa, no geral, e a França, em particular, como modelo civilizacional a ser alcançado (Needell, 1983, p. 84-93). Literatos e outros representantes intelectualizados de profissionais liberais se autoelegiam como agentes da consciência iluminada do nacional (Velloso, 1987, p. 3) e se engajavam em elaborar propostas para a construção da nação e a remodelação do Estado (Sevcenko, 1999, p. 83).

    Tratava-se de uma aspiração da europeização das consciências. Buscava-se esse intento com a imposição de novos costumes e valores na vida pública e na esfera privada, que pudessem atualizar a sociedade brasileira, de modo mais amplo, em função dos modelos europeu e norte-americano. Tal empreitada seria realizável por meio da ampliação do alcance da educação escolar, da celebração de símbolos cívicos, da propagação da história oficial da nação⁵ e, principalmente, através da difusão de ideais republicanos por meios de comunicação, tais como jornais, revistas, cinema e rádio⁶ (Sevcenko, 1999, p. 97). Ao mesmo tempo, os intelectuais incumbiam-se de levantar registros sobre as tradições nacionais supostamente arcaicas que, seguindo o modelo francês, seriam elencadas em inventários folclóricos (Dantas, 2009, p. 58) de contos, lendas, mitos, cantos, danças e crenças do mundo rural. Enquanto isso, nas cidades de grande porte, os defensores de reformas urbanas e da regeneração moral da população contribuíam discursivamente para a marginalização dos modos de vida da população negra e mestiça (Velloso, 1988, p. 8-9).

    Os homens de letras da época lançaram-se como representantes da regeneração. O programa de reformas assim denominado e desenvolvido na capital federal pretendia tornar a cidade do Rio de Janeiro modelo nacional de modernização e higienização do espaço urbano, processo acompanhado pela imposição legal de novos códigos de comportamento público. A regeneração carioca, com efeito, serviu de modelo e/ou acompanhou ações de modernização urbana que ocorriam em outras capitais de estados. Neste contexto, jovens literatos do início do século XX divulgavam crônicas em jornais e revistas que exaltavam aspectos do ethos civilizado importado da Europa. O novo estilo de vida referia-se ao que então se chamava de mundanismo, comportamento inovador no trajar, na valorização dos esportes, em práticas de convivência social como o flirt, no interesse pelos bens de consumo modernos, dentre outros (Oliveira, 1990, p. 113).

    Já as manifestações que recordavam o Brasil antigo, tradições populares de origem rural vigentes ainda no tempo da segunda Revolução Industrial, despertavam menor interesse em jovens intelectuais partidários da onda modernizante. Na última década do século XIX e primeira do XX, projetava-se a noção de que as tradições de matriz africana pertenciam ao passado e que, apesar de originalmente brasileiras, estariam a ponto de desaparecerem. Logo em seguida, no segundo decênio do novo século, despontaram visões de que a herança afro-brasileira pertencia ao campo do folclore nacional, do típico/exótico, digno de registro e preservação, tarefa a ser cumprida por intelectuais especialistas (Dantas, 2011, p. 102). Em outras palavras, festas, crenças, saberes, danças e cantos identificados com negros e mestiços do campo e da cidade começaram a ser crescentemente reconhecidos por literatos, artistas de formação acadêmica e autoridades políticas (brancos, na maioria), circunscritos ao campo da cultura. Ao mesmo tempo, tal reconhecimento desconsiderava o protagonismo cultural de negros e mestiços contemporâneos daquela época como promotores dessas manifestações. Pouca atenção era dada à situação de subalternidade e marginalização vivida por essas pessoas no contexto da Primeira República (Dantas, 2011, p. 102).

    O fato é que a nova ordem sociopolítica inaugurada com a abolição e a república, como já visto, foi assinalada pela ascensão da lógica de racialização, pela qual a diferenciação entre brancos e negros (entre estes últimos, incluídos os mestiços) implicava na atribuição de disposições e comportamentos negativos à pele escura e à origem racial (Santos, 2017, p. 190). A essencialização da inferioridade dos negros na nova ordem liberal/republicana imprimia-se como a outra face da moeda, onde se cunhava o projeto de transformar os trabalhadores pobres das cidades em sujeitos morigerados e disciplinados (Chalhoub, 2012, p. 257).

    A utopia elitista do limiar do século XX, chamada a posteriori de forma saudosista de Belle Époque, correspondia ao ideal de progresso pretendido pelos setores dominantes para algumas grandes cidades brasileiras, para onde fluía o capital estrangeiro (fruto da exportação nacional de produtos primários). Esse demandava novos princípios de organização urbana⁷, novos serviços públicos, novos hábitos de consumo (Oliveira, 1990, p. 111), novos canais de comunicação e a ampla disponibilidade de meios de entretenimento. A modernização do Rio de Janeiro, por exemplo, despontou na primeira década do século XX como marca simbólica, para as elites da capital, do progresso e do sucesso do país em se aproximar dos padrões europeus/franceses, promessa de um futuro moderno em que as potencialidades nacionais seriam plenamente aproveitadas (Needell, 1983, p. 86, 92, 93). Adotar esse horizonte como meta implicava em combater os hábitos da sociedade tradicional, expulsar usos e práticas de negros e mestiços da área central da cidade (Sevcenko, 1999, p. 30) para distribuí-los pelas faixas suburbanas ou contemplá-los como sobrevivências arcaicas nas zonas rurais. A Europa possível que a regeneração criara na capital federal impôs-se com intransigência sobre as tradições populares (Velloso, 1988, p. 11-14).

    Coisa semelhante ocorreu na capital paraense, especialmente a partir da última década do século XIX, com o vultoso avanço das fortunas e com o aumento de fundos no tesouro público, decorrentes da expansão da exportação de borracha para países industrializados (Cancela, 1997, p. 32). A valorização desse produto nos mercados internacionais, naquele momento, pôs à disposição do governo do Estado e da intendência da capital recursos aptos a serem investidos em um amplo projeto de reforma urbana (Sarges, 2002). A reestruturação urbana de Belém seguiu por duas frentes principais: a criação e a ampliação de novos serviços públicos (canalização de água, instalação de rede elétrica, modernização do transporte público, calçamento de ruas e praças) e a criação de condições infraestruturais para o surgimento de espaços de lazer dedicados às elites locais (hotéis de luxo, teatros, confeitarias, cafés, livrarias, clubes recreativos, cassinos) (Cancela, 2011, p. 116-118).

    Os ideais republicanos de progresso e de civilização orientavam a política de modernização da capital paraense, dirigida pelo Intendente Antônio Lemos entre 1897 e 1911 (Sarges, 2004). Tal como na Capital Federal, as intervenções urbanísticas de Lemos tinham como foco a higienização dos espaços públicos e de áreas de moradia, dedicando-se, por conta disso, ao combate à existência de concentrações de habitações precárias no centro da cidade e a repressão às supostas práticas incivilizadas de trabalhadores pobres (Trindade, 1999, p. 28-29). Em outras palavras, hotéis, casas de pensão, casas de cômodos, cortiços, estalagens, botequins, tabernas, bordéis, bares, todos tornaram-se alvo da política higienista e civilizadora do intendente. Atingia-se, assim, sobremaneira, os espaços de morada, de trabalho e de lazer de mulheres e homens pobres, negros e mulatos, obrigados a buscarem residência em trechos periféricos da cidade em relação às áreas de intervenção urbanística.

    A nova ordem republicana não escravista desorganizara os antigos laços de clientelismo e de subordinação existentes antes de 1888, de modo que os velhos meios de garantia da disciplina social tornavam-se inadequados diante das reivindicações e dos anseios da população subalternizada no Pós-Abolição (Thompson, 1974, p. 387-385). Trabalhadores pobres que resistiam à imposição civilizadora do novo ordenamento político e jurídico tendiam a ser enquadrados, no juízo das autoridades públicas e das vozes da imprensa, na condição de vadios e desordeiros, associados a práticas condenadas pelas elites, como a capoeiragem, os batuques festivos, as crenças de matriz africana, dentre outros (Santos, 2017, p. 176).

    O emprego generalizado do rótulo desabonador da vadiagem acompanhava pari passu a deterioração das condições de trabalho e de vida da população pobre urbana (Oliveira, 1990, p. 112). Tal situação exigia de pessoas das classes trabalhadoras o emprego de meios estratégicos para a garantia de mínimos direitos e de reconhecimento de cidadania em seu favor. Na esfera cultural, uma das vias possíveis nessa direção era o ingresso de artistas negros e mulatos no mercado de entretenimento em formação na cidade (Corrêa, 2010; Santos, 2017, p. 191). Outro caminho poderia ser a participação ativa em festejos populares de grande repercussão, por meio da exibição (às vezes remunerada) de expressões musicais e teatrais derivadas de tradições e práticas festivas da ancestralidade negro/amazônica, tais como os cordões de boi-bumbá, os grupos de pássaros e de bichos.

    A atividade de donos de boi, de tiradores de toadas⁸, de guardiões de pássaros⁹ (e de outros bichos) e de brincantes em festejos juninos, em apresentações encomendadas por particulares fora do mês de junho e, a partir da década de 1910, em concursos promovidos por instituições poderia garantir prestígio e visibilidade a esses sujeitos. Encontros e compromissos travados entre o então chamado (pela imprensa) pessoal do boi (ou do pássaro) e jornalistas, políticos, literatos e autoridades de segurança pública poderiam assegurar a sua posição como agentes culturais, ao mesmo tempo em que, em alguns casos, se afirmava positivamente sua negritude (Cunha, 2005, p. 577-582) e sua condição de moradores de bairros suburbanos.

    Cordões carnavalescos e juninos sediados nas áreas pobres da cidade gozavam de certa tolerância dos gestores públicos nas primeiras duas décadas do século XX, quando suas atividades se restringiam aos bairros de origem (Velloso, 1988, p. 24). No entanto, a presença desses grupos em ruas e praças situadas em áreas nobres de Belém era alvo de preocupação e de denúncia na imprensa, particularmente por temores de desordem e imoralidades, o que correspondia à antiga aversão da época do cativeiro ao ajuntamento de escravizados. Apesar disso, a mobilização coletiva em agremiações festivas, nos grupos de bois e de outros animais, contava com apreciadores por toda a cidade e aventurava-se no estabelecimento de alianças e de trocas simbólicas com representantes das elites (jornalistas, agentes de polícia, literatos, políticos) que lhes pudessem garantir respeitabilidade e possibilidade de ocuparem o espaço urbano. A demanda pelo direito de festejar compunha o rol dos anseios por cidadania, meta almejada por cordões recreativos que se expressavam como forma de ação coletiva e de participação sociopolítica emergente naquela época (Velloso, 1990, p. 223).

    A geração de jovens intelectuais do final da década de 1910 direcionou parte de sua atenção para as expressões lúdicas de agremiações negras nas grandes cidades brasileiras de então. A crise europeia resultante da Grande Guerra estimulou em literatos brasileiros o interesse pela busca da identidade nacional a partir de matrizes folclóricas, em favor da promoção de uma linguagem artística nacional (Oliveira, 1990, p. 126). Diferentemente da geração de 1870, os jovens vanguardistas tendiam a recusar o distanciamento em relação às tradições nacionais, justificado pela adoção do modelo civilizacional francês (Needell, 1983, p. 99). Reunidos em agremiações literárias, brotavam em capitais brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Manaus e Belém grupos de escritores que ansiavam por renovação e cultivavam uma espécie de nostalgia pré-moderna, pelo fato de vislumbrar em manifestações tradicionais populares matrizes da autêntica cultura nacional (Lyon, 2009, p. 689).

    A década de 1920 abriu caminho para o Modernismo, em suas muitas vertentes, como um novo horizonte intelectual e artístico para o país. Como pauta comum, estava o combate ao vício da imitação dos modelos europeus nas artes, a necessidade de superar o atraso nacional em termos intelectuais, a busca por enraizar o trabalho da intelectualidade brasileira e, já para o final do decênio de 1920, a ideia de que arte e pensamento se tornam modernos na medida em que se fazem brasileiros (Oliveira, 1990, p. 175-179, 181-183). A tarefa de abrasileirar a arte e a cultura nacional caberia, portanto, aos próprios modernistas, que se julgavam os mais capacitados para conhecer o Brasil (Velloso, 1987, p. 2).

    A meta de modernizar o Brasil, em termos culturais, encontrou eco e maior propagação a partir dos anos de 1930 com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Por conta disso, ocorreu uma reorientação dos intelectuais para o âmbito do estado, para se posicionarem em torno de um projeto político/pedagógico de valorização das matrizes populares da identidade nacional (Velloso, 1987, p. 3-5). Uma das bases para a integração dos ideais modernistas com a política cultural do regime Vargas situava-se na tese da excepcionalidade da harmonia de raças no Brasil (Alberto, 2011, p. 10). A ideologia opositora ao reconhecimento da existência de discriminação racial no país contribuía para manter a hierarquia não oficial de raças no mercado de trabalho e no acesso à cidadania.

    O discurso da suposta unidade nacional expressa em manifestações tradicionais situadas no campo do folclore, segundo a proposição de intelectuais modernistas, serviria para marcar uma ruptura com o passado cultural brasileiro (Gomes; Abreu, 2009, p. 9-10). O ponto alto dessa mobilização se deu com o advento do Estado Novo, em 1937. O golpe político de Vargas, que lhe garantiu poderes ditatoriais durante oito anos, abriu caminho para que representantes de vertentes modernistas mais conservadoras¹⁰ atribuíssem a si mesmos o papel de representantes da consciência nacional (Velloso, 2017, p. 153). A figura do intelectual/profeta incumbia-se, então, de perseguir o ideal de renovação da nação e, como missão ideológica, de retransmitir às massas a autêntica cultura nacional (Velloso, 2017, p. 156-170).

    Naquele ambiente de vinculação da política cultural estatal ao trabalho de literatos e artistas de diferentes linguagens, organizou-se o mais notório empreendimento de investigação folclórica da primeira metade do século XX do Brasil. A Missão de Pesquisas Folclóricas percorreu cidades e localidades interioranas nas regiões Norte e Nordeste durante o primeiro semestre de 1938, como iniciativa do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. A viagem idealizada por Mário de Andrade, diretor do departamento desde 1936, inspirava-se na expedição que ele próprio realizara à Amazônia em 1927, e posteriormente ao Nordeste, entre o final de 1927 e o início de 1928 (Valentini, 2010, p. 143).

    Mário de Andrade planejava retornar às regiões que conheceu em 1927 e 1928, mas foi gradualmente desviado de sua intenção por conta da incerteza política que se seguiu ao golpe do Estado Novo em novembro de 1937. A ideia da missão surgira a partir da realização do Curso de Etnografia ministrado por Dina Lévi-Strauss para funcionários da Divisão de Expansão Cultural do Departamento de Cultura (Valentini, 2010, p. 23). O curso tornou-se a base para a fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore em maio de 1937, da qual participavam intelectuais como Mário de Andrade, Dina Lévi-Strauss, Claude Lévi-Strauss,

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