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Dagger III: Dagger, #3
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Dagger III: Dagger, #3
E-book386 páginas5 horas

Dagger III: Dagger, #3

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Sobre este e-book

A verdadeira razão pela qual eles o seguem nessa loucura não é o que parece.

Os amigos ao seu lado não são o que parecem.

A única coisa com a qual ele pode contar é Solidão, a espada que não gosta de ser separada dele. Com ela ao seu lado, Dagger não teme perigo algum, nem mesmo as sombras que o espionam de cima. Elas o vigiam, desejando que marche até o fim da estrada, onde há alguém que o espera.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de out. de 2021
ISBN9781667415611
Dagger III: Dagger, #3

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    Pré-visualização do livro

    Dagger III - Walt Popester

    Prólogo

    Uma mulher marchava pelo deserto.

    Ao cair da noite, o vento do oeste tornou-se uma presença tangível e perturbadora que se interpunha entre ela e a salvação. Ele rasgava as trevas nauseantes habitadas pelas sombras do passado – figuras sem rosto emergindo das profundezas da consciência para atacá-la a cada respiração, a cada passo. Ela teve certeza de que elas prevaleceriam, mas então ergueu os olhos e viu uma luz, não muito longe dali, oculta até aquele momento por rajadas de areia. Um pensamento materializou-se em sua mente: Saber que você vai perder não é motivo suficiente para parar de lutar. O quinto mandamento. Ela repetiu as palavras várias vezes em um balbucio mecânico e as guardou em seu coração. Lutar, apesar de tudo. Jamais curvar a cabeça perante a raiva cega do destino, e seguir em frente para onde quer que a estrada o possa levar. Era isso o que fazia de um simples ser mortal um Guardião. E eu sou uma Guardiã. Ainda sou!

    Então, o vento traiçoeiro atirou-a mais uma vez contra a dura realidade, fazendo-a cair.

    - Não desista agora. Estamos quase lá! – gritou o homem, em meio à fúria dos elementos.

    - Deixe-nos aqui, Eremita!

    - Só quando estiverem a salvo. Por Ktisis, Aniah! Levante-se!

    A mulher abraçou o embrulho contra o seu peito, e afundando um pé na areia, ela se levantou. Só então, numa breve trégua concedida pelas correntes, foi que Aniah o viu. Diante deles erguia-se o domo branco do Santuário, vasto e imenso. É tão lindo, pensou ela.

    - Estamos quase chegando! – o Eremita tentou protegê-la com o seu manto.

    A luz apareceu. A luz desapareceu. Eles marcharam.

    Os rostos titânicos dos deuses retratados no granito contemplavam a partir do passado ao longo de toda a antiga via de acesso ao Santuário. Eles os estavam observando.

    Eles não nos querem aqui. Somos estranhos. Aniah só respirou ao sentir o calçamento firme sob os seus pés. As feridas que a haviam tornado uma mãe ardiam um pouco menos, mas ela ergueu os olhos e seu sangue congelou.

    - Não olhe!

    - Baomani, eu…

    - Não olhe!

    Bem-vindo ao lar, meu filho...

    Do centro do domo, tão alto que era impossível ver o seu cabo, erguia-se o Martelo de Skyrgal – um bloco maciço de mayem, noutro tempo a morada da alma de Ktisis. Era um farol em um mar de areia, concedido aos mortais desde o início dos tempos. Dizia-se que sua luz divina podia ser vista até da Baía de Asa. Agora, ele era um monólito inútil no coração das ruínas.

    Aniah acariciou seu ventre violado, avançando entre as edificações brancas e decrépitas, o espelho estilhaçado da luminosidade de Ktisis. A estrada parecia não ter fim, até que ela tropeçou nos degraus de uma imponente escadaria. Ela ergueu os olhos para as ruínas de um palácio de mármore. Os domos e pináculos desmoronados se assomavam nas colunatas em frente ao pórtico. Acima de todos, erguia-se uma estátua quebrada, da qual restava apenas um par de pinças abertas e ameaçadoras.

    - Esse é o templo do deus desconhecido. – Baomani pôs o pé no primeiro degrau e olhou para ela. – Venha comigo, se quiser viver.

    Aniah subiu com ele até o fim das escadas, vindo a uma grande porta de bronze.

    O Eremita bateu com força usando a única aldrava que restava. – Hagga, meu pupilo! Eu voltei! – gritou ele, mas o vento pareceu sufocar seu chamado desesperado.

    No silêncio que se seguiu, ela pensou ter ouvido o homem dizer repetidamente: - Ele não pode me abandonar. Ele, não.

    O tempo passou, lento e cruel. Então, o velho metal gemeu. Eles adentraram na brecha ofertada pelo destino, vendo-se no escuro.

    Pelo menos não estamos mais à mercê da Mãe Deserto. Aniah abaixou o seu gorro, tão carregado de areia que houve um baque audível no chão quando ele caiu.

    O Eremita veio à frente. – Hagga, é você? Meu pupilo, você veio mesmo para...

    Eles ouviram alguns passos lentos, até que uma bola de ensiferum iluminou toda ruga na face de um velho. – Você busca refúgio no Santuário mais uma vez, Eremita?

    Aniah compreendeu que aquele não era o salvador deles.

    Baomani foi até a luz, mas o rosto desapareceu quando a esfera foi encoberta. – Godivah... Santo Pai, onde está Hagga?

    O velho riu. – Meu caro Arax. Mostre a ele onde está o seu pupilo.

    Perto dali, uma segunda esfera luzente fez o rosto devastado de um rapaz aparecer na escuridão. A luz recaiu sobre os buracos irregulares onde seu nariz fora cortado, nas extremidades afiadas de seus dentes quebrados, em suas órbitas tão inchadas que ele não conseguia abrir os olhos.

    Ele disse: - Perdão, Mestre... por favor... me perdoe. – Ao seu lado, reluzia o sorriso metálico esverdeado de Arax, o sacerdote Torturador – todos os seus dentes consistindo de mayem sagrado.

    As trevas reivindicaram ambos os homens.

    A voz do ancião continuou: - Foi difícil entender o que ele dizia com a boca reduzida assim. Quando ele revelou espontaneamente que você havia retornado à estrada, eu não quis acreditar na sua estupidez disfarçada de desespero. Procurá-lo e buscar o perdão dele foi um ato tolo – corajoso, mas tolo. Não entendo o jogo que está jogando. Será isso um jogo duplo? Um jogo triplo? Você extraiu a alma de Ktisis do Martelo. Correu para os braços dos Discípulos e agora volta para nós em busca do quê, exatamente?

    - Refúgio para esta mulher – respondeu Baomani. – Eles já estão nos seguindo. Você sabe disso.

    Eles escutaram as passadas do Santo Pai. – E, com ela, suponho que também deveremos acolher no seio do Santuário o seu fardo. É ele o objetivo maior disso tudo, a blasfêmia maior.

    - Godivah, eu...

    - Como decidiram chamá-lo?

    O Eremita abriu a boca, mas Aniah respondeu: - Eu não dei um nome para ele.

    O velho emitiu um som de lúgubre divertimento. – Não. Não deu. Quando dá um nome a alguma coisa, você se torna responsável por ela, como diz o velho ditado. Então você não quer ser responsável por ele, mas isso... – Ele parou. – Como decidiu defini-lo, pelo menos?

    - No momento, ele parece ser só uma criança. – Ela abraçou o embrulho. – E está com fome.

    - Sua criação – decidiu Godivah, como se não houvesse escutado. – Essa criação saiu do seu ventre e você não quer ser responsável por ela. Logo, por que eu deveria ser? Por que deveria dá-lo refúgio no mesmo santuário que esse homem – outrora recebido como um filho – se sentiu compelido a profanar?!

    Aniah não respondeu.

    - Tenho pena de você. – O Santo Pai havia voltado a andar. – Pobre moça imprudente, uma das melhores Guardiãs Delta, e ainda assim uma criança impotente contra o que está acontecendo à sua volta. E dentro de você. Mas a culpa cabe unicamente ao homem ao seu lado. Pergunte-o se ele está feliz com o resultado. Pergunte-o se está feliz com sua criação.

    - Eu fui chantageado. – Baomani tentou controlar a voz. – E você também sabe disso, se os seus informantes ainda são capazes de falar a verdade.

    Como que num protesto, um bater de asas ruidoso ressoou sob o teto.

    Crá!

    - Meus informantes não me traíram, ao contrário de meu pupilo. Eu teria posto tudo o que já tive em você.

    Um silvo metálico nas trevas. – É, e teria perdido.

    - Sim, Arax. Eu perdi, como um pai perde quando o filho envereda pela estrada que leva à perdição. Por vezes, tenho a sensação de que ele me influenciou por todo esse tempo, manipulando minhas memórias e minha dor. Dizem que Eles conseguem fazer isso, sabia?

    Ainda aquele sussurro: - Talvez ele se tornou um deles, Santo Pai.

    - Pode ser. E nós sabemos como detê-lo, não é?

    - Sabemos, sim. Ele mesmo nos ensinou.

    O Eremita deu um passo no escuro. – Querem me punir? Muito bem! Vocês só têm que me jogar para fora daqui. Logo Aeternus e Skyrgal entenderão o que aconteceu – os mil ardis que me trouxeram em minha fuga até aqui – e me torturarão por minha traição. Eu tomei deles o resultado de mil labutas, vocês não veem?

    - Tamanha blasfêmia não porá os pés dentro do Santuário – declarou Godivah. – Nós não criamos esse problema e não o resolveremos. O destino decidirá o fado dele, e o de todos nós – Ktisis nos salve. Enviaremos um de nossos mensageiros alados ao Pendracon Hammoth e o informaremos. Se ele e a mulher forem rápidos e sábios, os dois não terão dificuldades em encontrar-se na Luz no Fim do Mundo. Que a Fortaleza pense na criança. Que a Fortaleza tolere a sua presença, como punição por erros tão antigos como a pedra com a qual ela foi erigida. Esteja certo de que não serei louco a ponto de deixar sua criação nas mãos do inimigo.

    - Então, não tenho mais nenhum tempo a perder. – O homem retirou-se em direção à porta.

    - Um momento – disse o Santo Pai. – Eu acabei de dizer que a mulher e sua criação não podem ficar.

    Dúzias de esferas de ensiferum foram desveladas nas mãos do mesmo número de irmãos do Santuário, armados até os dentes.

    Godivah caminhou entre eles, olhando diretamente nos olhos de seu antigo pupilo. – Agora você é meu convidado, Eremita. Para sempre.

    * * * * *

    1. O Cabeça do Clã

    Algum tempo antes.

    Recitando sem vontade a sua prece, Exodus marchava, cabisbaixo e chutando as pedrinhas em seu caminho.

    Ele ergueu o rosto. Duas crianças – um menino e uma menina – estavam sentadas numa mureta, com os pés balançando. Eles faziam cócegas um no outro, tateando com inocência os próprios corpos. De repente, a menina beliscou o bumbum do menino e então fugiu. O menino deu um pulo e correu atrás dela, iniciando assim uma busca que duraria o dia inteiro – e talvez uma vida.

    Dois adolescentes partilhavam de uma outra doçura, de mãos dadas, enquanto um bando de crianças suadas cruzava o caminho de Exodus, gritando a plenos pulmões e correndo atrás de uma bola improvisada. Eles quase o derrubaram no chão, mas Exodus sorriu porque toda centelha de vida que seguia em seu caminho, naquele mar de morte, lembrava-o de como a vida era bela e valia a pena ser vivida.

    Até mesmo para simples Tankars como nós...

    O sorriso desapareceu de seu focinho quando se lembrou do lugar para o qual se dirigia e da tarefa à sua frente. Ele afastou os olhos, à procura de seu único farol: o Martelo de Skyrgal no Santuário, com a alma luminosa de Ktisis lacrada em seu interior. Diziam que era possível vê-lo do mar nos dias em que a Mãe Deserto era leniente com seus filhos, mas ele não acreditava nisso. Até mesmo dali, a luz mal era visível. Olhando para ela, Exodus sentiu uma profunda e indefinível inquietação – o deus deles estava mesmo no mundo mortal, tão perto, independentemente da distância. Ele era visível de toda parte, mas inalcançável para todos.

    Exceto para aqueles sacerdotes que nunca deixam que nos aproximemos de Ktisis. Controle um deus, e você controlará o mundo inteiro que o adora...

    Ele espantou um besouro de seu focinho balançando a cabeça, a qual era coberta de pelos brancos a não ser pela imensa queimadura que desfigurava o lado esquerdo. Com as mãos entrelaçadas nas costas, ele prosseguiu, orando em seu íntimo: Mãe Deserto, concedei-me o dom de não julgar o meu próximo até que tenha andado um pouco com as patas dele. Guardes meu filho, de modo que ele não conheça os duros golpes infligidos pela guerra fraterna. Levai-me pela mão até a terra prometida no fim da estrada, o mundo em que prosperaremos em paz depois da Alvorada Tankar. Mãe Deserto, filha de Ktisis, guiai-me do primeiro ao último passo nesta longa caravana sem redenção que é a existência mortal.

    Todos os passos que ele dera em sua vida o haviam levado até ali, na forma de um Asmeghin – o líder sacerdote-guerreiro do clã Nehama. Os quatro clãs que guiavam a sina dos Tankars haviam chegado naquele dia ao centro da cidade santa para realizar o Rito do Renascer. Suas tendas se estendiam em todas as direções ao redor da esplanada dos templos, e mais caravanas ainda estavam chegando, linhas cinzentas recortadas contra o deserto ocre.

    Todos se alvoroçavam à espera do pôr do sol que anunciava o início do ano para a civilização nômade e guerreira do deserto. Naquela ocasião, os quatro clãs abandonavam toda ocupação – inclusive a guerra – e se reuniam aos pés do Trono de Skyrgal para celebrar o fim do inverno. Nenhum conflito era permitido. O assassinato de um semelhante, naquele dia, era severamente punido, mas tal incidente só ocorrera uma vez na história. O único enterro dado àquele perpetrador foi dentro dos estômagos dos que haviam se alimentado de seu corpo inteiro logo depois.

    Falar sem temer a retaliação tornava aquele dia o único no qual se considerava seguro o bastante reunir o Conselho. Somente as famílias dos Asmeghins podiam tomar parte nele – os parentes de primeiro grau: filhos e filhas, irmãos e irmãs, mães e pais. As decisões das quais dependia a existência de todos tinham que ser compartilhadas pelos sacerdotes-guerreiros com o seu próprio sangue, a fim de que o senso de responsabilidade pudesse arrefecer os típicos instintos Tankar e guiar toda escolha.

    Exodus olhou para cima. Ele estava no meio da esplanada aos pés do Trono de Skyrgal – o local mais santo de toda Adramelech, o imenso trono erigido pelos Górgors para receber, um dia, a entronização sagrada do deus.

    A luz do sol iluminava o encosto da assombrosa estrutura, pintando-o com um brilho acobreado. Os quatro templos – um para cada clã – pareciam, assim, estar aos pés de uma muralha de labaredas.

    Deve ser grande demais até para ele...

    Dois brutamontes guardavam a entrada, empunhando seus machados duplos fixados a longas hastes de duas mãos. Eles se curvaram e descruzaram suas armas para deixá-lo passar.

    O Asmeghin entrou e andou sobre o tapete vermelho-sangue. Sob a luz tênue do corredor, este parecia uma língua regurgitada do rosto de Skyrgal em seu brado perpétuo esculpido nos fundos, ladeado por dois chifres deformados de granito amarelo. Exodus avançou debaixo do palato do deus e atravessou a tenda que ocultava a úvula.

    Ao examinar a arena escura, ele soube que era o último a chegar.

    - Exodus, Asmeghin dos Nehamas – saudou-o o velho Gehennah. – Jamais ousaríamos começar sem você!

    Com os seus mais de dois metros de altura e as vestes e pelugem brancas características de seu clã, Exodus dificilmente passaria despercebido. A multidão abriu caminho enquanto ele descia as escadas. Os quatro Asmeghins eram os únicos que podiam pôr os pés na arena. Seus familiares se assentavam nos degraus, mais alto ou mais baixo dependendo de sua importância, e respiravam silenciosamente o ar carregado de incenso.

    Com o Nehama havia somente o seu filho, que o precedera. Exodus olhou de um lado para o outro, mas não o viu. Seus olhos paternais ainda o procuravam quando Exodus proferiu perante os seus pares: - Dèbris Gehennah, Asmèghin tam Bèshavis brat. Nèma ta Kràhe vau cron y sprak va tàma Tankàra jag, kem tabre sa làka res.

    O sacerdote-guerreiro mais jovem – um Tankar com pelos escassos em seu peito nu – voltou-se para o ancião que trajava azul, rindo. – Eu não entendo o que ele late.

    - Ele me disse: Sábio Gehennah, Asmeghin dos amados Beshavis. Suplico-lhe que não me aborreça e fale em nossa língua Tankar, como a sacralidade deste lugar requer. Rem ka, dèbris Exodus. Que assim seja, sábio Exodus. – O velho anuiu uma vez. Quando ele voltou a falar, foi na língua Tankar: - Espero que entenda que até este ponto temos falado na perversa língua humana – mesmo que não entendamos inteiramente as suas regras – para que não fôssemos rudes com nosso distinto convidado. Afinal, o comércio e as trocas culturais fizeram dela a língua do futuro, facilitando a interação entre os povos. Quando duas ou mais pessoas não se entendem, elas muitas vezes começam a temer umas às outras e acabam entrando em guerra. Não é mesmo?

    O Asmeghin dos Nehamas assentiu, também, uma única vez. – Isto é o que diz, e tenho que acreditar em suas palavras. Meu clã nunca rejeitou nossas práticas e costumes tradicionais em favor dos ocidentais.

    - Sim. Nós percebemos. Então, compartilhe suas experiências com todos nós. Vale a pena fechar-se atrás das muralhas de sua porção de Adramelech, quando o mundo do outro lado de suas portas oferece intermináveis possibilidades?

    Exodus olhou à sua volta, sem procurar mais o filho. – Também sou grato aos humanos por terem nos ensinado a sua língua...

    - Bem, fico feliz em ouvir isso de v...

    - ...pois agora sei como amaldiçoá-los.

    O velho Gehennah bateu a ponta de seu cajado no chão. O sorriso sumiu de seu rosto. – Eu o estimo, Exodus. Como ordena nossa antiga tradição, os velhos devem demonstrar respeito aos jovens, de quem as suas vidas dependem. Pense nisso: os humanos fazem o contrário. Quem é jovem deve demonstrar respeito aos mais velhos, pois estes têm a experiência.

    Em meio ao silêncio geral, Exodus foi até seu assento ao fim dos degraus, enterrando firmemente os pés na areia sagrada. Ele colheu um punhado dela com suas grandes mãos e a esfregou no nariz com gestos cerimoniais. E voltou a sondar o local. Estão olhando para mim, não é? Estão tentando prever se serei um problema para vocês, e o quão grave. – As tradições humanas não me interessam. Elas são o produto de um mundo no qual nunca vivemos, longe da sábia orientação das ruínas ancestrais.

    - Essas quatro pedras que você tanto ama?

    - Sim. Foi aqui que eu cresci, e o meu pai e meus ancestrais desde a Alvorada Vermelha, o dia em que Skyrgal renegou o seu povo indigno para tornar os Tankars os senhores do deserto. Os lábios desses rostos titânicos parecem imóveis só para os que não têm ouvidos para ouvir... e certamente para os que os desmantelam para vender suas pedras ao Ocidente.

    - Suponho que esses lábios só se movam quando o cogumelo dança – sussurrou o sacerdote mais jovem, provocando os risos de alguns.

    Exodus virou-se. Ele imaginou como o crânio daquele pirralho Kahar incrédulo ficaria acima da entrada de sua tenda – com certeza, um ótimo amuleto para afugentar os demônios das dunas. Ele afastou o pensamento, já que não tinha desejo algum de ser comido vivo, não naquele dia. Os outros Asmeghins estavam à espera de um único erro seu para resolver da maneira mais efetiva o problema que ele representava.

    Era a sua grande satisfação ser o obstáculo no caminho deles. Não era a primeira vez na história em que isso acontecia com um Nehama, e – queira Ktisis – não seria a última. – Nós dançamos nos braços do Solstício e de sua preciosa polpa branca – Exodus respondeu calmamente. – Os cogumelos que mencionou não são parte de nosso mundo. Essas são substâncias impuras contrabandeadas por humanos para o divertimento de alguns Tankars jovens. Eles dão um conhecimento parcial, ditado pela voz interior – a sombra que nos espia de além dos limites da consciência. Provavelmente, os Kahars já marcham pelo caminho traçado por seus novos mestres. Quem sabe?

    - Os Kahars nunca tiveram mestres!

    Gehennah estendeu uma mão para silenciar o jovem Asmeghin. – Por favor, Nehorur. Há pelo menos vinte anedotas históricas às quais Exodus poderia chamar a nossa atenção, e não temos tempo para ouvir cada uma delas.

     - Vinte e cinco – apontou Exodus. – Começando com o dia em que os primogênitos dos Kahars passaram a ser os escravos particulares dos Beshavis.

    - Tradições, de fato, antigas. – Gehennah anuiu uma vez só com a cabeça, num movimento nervoso. – Discussões de nossa história nunca me interessaram, particularmente. Estou aqui para formular mais uma vez minha proposta, embora isso seja um esforço vão.

    - Se realmente tem que...

    - Peço-lhe que nos deixe passar.

    - Vocês não passarão.

    - Precisamos entrar naquele maldito templo!

    O eco de seu grito morreu lentamente sob a abóbada da arena. Um clamor confuso elevou-se entre os membros das famílias.

    Exodus fechou os olhos e escutou bem, filtrando palavras individuais a partir da mistura de vozes indistintas. Ele logo intuiu que a situação era ainda pior do que havia pensado ao pôr os pés na areia sagrada. Todos já estão do seu lado, maldito seja.

    O Asmeghin entendeu que já havia perdido, mas não considerou isso razão suficiente para parar de lutar. Ele limpou a garganta. – Hoje, os Tankars são os senhores incontestáveis das dunas, mas eu vi: voltar a abrir as portas do templo trará novos demônios ao nosso meio.

    - Alucinações insignificantes – ladrou o Asmeghin Kahar, impaciente. – Dê-nos mais detalhes. Esses demônios têm chifres? E suas caudas... qual o seu comprimento?

    Dessa vez, todos riram.

    Exodus olhou para o jovem Asmeghin diretamente nos olhos. Não há qualquer terra que seja pequena demais para ser dividida, não é? Você não passa de uma reles sanguessuga que quer mais, e, portanto, seus olhos vagueiam para a casa vizinha, imaginando se seus vizinhos podem estar de saída. – Falo de demônios de carne e osso – respondeu ele. – Humanos, Górgors, e aqueles indivíduos híbridos dos quais o nosso... distinto convidado é um.

    - Ele não é mortal.

    - E não é um deus. – O Nehama olhou ao seu redor, à procura dele de novo. – Eles lutarão contra nós e uns contra os outros, todos contra todos para usurparem a posse daquele lugar. Mancharão as areias tanto com o sangue do lobo como do cordeiro, e o que vocês chamam de pobreza hoje passará a ser o sonho saudoso num futuro muito mais terrível! Eu vi, seus tolos. Eles virão!

    - Há um outro demônio que não está considerando. – O Kahar ergueu o rosto e sorriu, enquanto afagava a fiel cimitarra a seu lado. – Mais fraterno do que pensa.

    Exodus ignorou aquela provocação vulgar, virando-se mais uma vez para o velho Gehennah. – Quando o levei lá dentro em busca de conselhos sobre o que fazer, aqueles crânios colossais emergindo das areias do tempo também deveriam tê-lo alertado quanto à natureza daquele lugar. Eu pude sentir um sofrimento de um milhão de anos, um mal tangível suspenso como a poeira no ar. Dor divina, capaz de alterar a própria estrutura da Criação.

    Gehennah girou a bengala em sua mão, observando-a pensativamente. – Não. Aqueles olhos quiseram nos dizer outra coisa: A Longa Espera acabou, filhos do deserto. Sua Mãe benevolente finalmente ouviu as suas preces para mostrá-los o fim da estrada.

    - E suponho que nosso distinto convidado veio aqui para falar disso.

    - Uma suposição correta. – O velho deu de ombros. – Veja isso como minha última tentativa de persuadi-lo a mudar de ideia. Espero que ele possa aconselhá-lo como fez com todos nós. Há algo no modo como ele fala. Ele consegue entender o que você está prestes a dizer antes que o diga. Ele o entende.

    - Quaisquer que sejam as suas palavras, minha posição não mudará – disse Exodus. – E quaisquer que sejam as consequências, elas serão enfrentadas.

    - Não diga isso.

    - Onde está ele?

    - Dê uma olhada à sua volta. Seu doce Solstício ainda está nublando os seus sentidos?

    O Nehama se levantou. Ele caminhou lentamente entre os Beshavis da Baía de Asa, que pareciam usar o seu patrimônio inteiro em seus corpos em trajes de seda turquesa, braceletes lápis-lazúli e colares de safira. Exodus achou-se cercado pelos Kahars seminus, com pelos avermelhados que cintilavam à luz quente das tochas e braços tão longos que os forçavam a andar curvados ao chão. Por fim, havia os Atormentadores dos territórios do norte, cuja existência perto das fronteiras com os Górgors havia-lhes dado a forma de dissidentes afeitos à guerra.

    Ele quase tropeçou em Baikal, seu segundo filho, e acariciou afetuosamente o seu rosto. Enfim, Exodus encontrara o filho que a Mãe Deserto lhe havia decidido poupar. – Ei, pulguinha. Você fica pequeno demais no meio de toda essa gente.

    - Eu vi ele, Papai! – gritou Baikal, sorridente, depois que seu pai já havia se afastado.

    - Baikal, filho de Exodus! Tankars que não passaram pelo Julgamento do Fogo não têm permissão de falar aqui!

    Uma voz humana respondeu à reprimenda imediatamente, restaurando o silêncio. – Por favor, Gehennah. É só um garoto.

    Exodus se virou e a multidão se separou, abrindo um caminho turvo até a figura que havia acabado de falar – o seu distinto convidado usava a máscara metálica de Ktisis, revelando toda a armadura de mayem por baixo, forjada à semelhança do deus chacal.

    Ele pareceu olhar para o Asmeghin Nehama, e apenas para ele, ao falar. – Seu amor pelo caminho antigo é admirável, Exodus. – Ele deu um passo. – Admiro aqueles que sempre permanecem na linha. Isso é exatamente o que eu fazia, no meu tempo. E talvez seja por essa razão que estou aqui hoje, exilado de tudo o que me era querido.

    - Humanos não podem participar de nossos conselhos. – O Nehama voltou-se para os outros. – E não podem falar na língua Tankar. Isso é sacrilégio.

    - Você mesmo disse que ele não é humano, não mais – respondeu Gehennah. – Ouça a proposta do divino Aeternus, antes de julgá-lo. Ou será que seus ouvidos estão tão cheios de verdades reveladas que não consegue mais ouvir?

    Todos riram de novo.

    Exceto o ser dentro da armadura. – Eu não sou mais um homem, e você também sabe disso. Deixei de ser um homem quando fui tocado pelo meu deus.

    - Flagelado, é o que quis dizer.

    - Escolhido. – O Primeiro Discípulo deu outro passo. – Abençoado com o dom que só o Senhor da Destruição pode dar – sobreviver às mudanças. Esse é o meu destino.

    - Você... – Exodus fechou seus punhos com toda a força, enterrando as unhas nas palmas. – O que quer de nós?

    - Quero uni-los. – Aeternus veio à frente. – Uni-los contra o inimigo comum e evitar a guerra civil desnecessária que estiveram prometendo uns aos outros por tanto tempo – a guerra que matará até o último de seus filhos. Não querem que isso aconteça de novo, certo?

    Exodus estremeceu. Seus punhos cerrados tornaram-se duas mãos abertas.

    - Eu entendo a sua dor. – O ser na armadura se aproximou e afagou o jovem Baikal. – Nenhum pai deveria ter que enterrar o filho, mas essa tem sido a sua porção.

    - Solte-o. – O pai acolheu o filho com um puxão, pondo uma mão em sua cabeça. – Jamais terás medo, Baikal. Seguirás sempre o seu instinto e sangue, como condiz a um Tankar.

    Aeternus emitiu um riso leve. – Ktisis... acho que já vi essa cena.

    - Tenho ouvidos para ouvir e olhos para ver. Qual é a sua proposta, humano? E por que busca a ajuda dos Tankars?

    Os olhos metálicos se alternaram entre a luz e a sombra em uma dança sem fim. Exodus sentiu que olhava para o rosto do deus que sempre guiara as suas ações. Porém, ele era um Asmeghin, aquele que olha além, e sabia a diferença entre o Deus do Vazio e alguém que andava com sua máscara. Desprezado pela morte e banido por seus próprios Irmãos de Sangue.

    - Eu conheço um lugar, além da fronteira entre os mundos – começou Aeternus. – Um mundo onde todos prosperaremos, longe da árida crueldade do deserto. Em paz. Em harmonia.

    - Esse mundo…

    - Cale a boca! – ordenou Exodus a Gehennah, que havia tentado falar. – Continue.

    - Os mesmos Guardiães que rejeitaram a mim e aos meus – como você, com razão, recordou – escondem um portal no fundo de sua maldita Golconda.

    - Um portal?

    - Ele leva a um local que chamam de Mundo Além. Egoístas e covardes que são, eles nunca o exploraram, enquanto nós, mortais, lutamos por um pedaço de terra seca – um mísero e seco pedaço de terra, sujo com o sangue de nossos filhos.

    Exodus não respondeu.

    Aeternus falou a centímetros do rosto dele. – Até mesmo do topo de suas estruturas mais altas, quando raia o amanhecer e o ar do deserto está limpo, vocês podem ver Skyrgal levantar o braço contra o sol para se defender em virtude de seu destino cruel. Isso também acontece com vocês? Lutar contra o destino, sabendo que irão perder?

    - Acontece – respondeu o Asmeghin.

    - Acontece, pois os poderes fortes assim decidiram. Acontece, pois essa é a vontade dos que nos governam de cima – mestres de fantoches despóticos com o poder da vida e da morte sobre todos. Não enxergo qualquer vencedor na guerra entre os clãs dos Tankars, a não ser o punhado de homens resguardados em suas torres, jogando-nos migalhas e dizendo que os culpados pela nossa fome são aqueles mais famintos do que nós.

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