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Terra sem Lei
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E-book455 páginas6 horas

Terra sem Lei

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Sobre este e-book

Ibipiranga é uma pequena cidade localizada no interior do Ceará, situada numa região extremamente árida do sertão, mais precisamente no polígono das secas. O clima quente e seco faz jus ao nome desse lugar, que em tupi-guarani quer dizer “terra vermelha”.Como uma cidadezinha do interior no inicio do século XX, Ibipiranga deveria ser um lugar extremamente pacato. No entanto, trata-se de um município dominado pelo poder e o autoritarismo de um único homem: Carlos Lucena, um rico fazendeiro que dá as ordens na cidade, tendo em suas mãos o Prefeito e o Delegado, e ainda tendo como braço direito o cangaceiro mais temido da região, o cruel José Moura, mais conhecido como Zé Caolho.Após descobrir uma jazida de granito nas terras de João Silva, o qual não as vende por dinheiro nenhum, o ambicioso Carlos Lucena ordena a Zé Caolho que elimine João e toda a sua família, composta pela esposa e cinco filhos.Carlos Lucena não esperava, porém, que o filho caçula de João Silva, o menino Joãozinho de apenas dez anos, escapasse com vida daquela chacina. Dezoito anos depois, João Filho retorna à Ibipiranga em busca de uma única coisa: vingar-se dos responsáveis pela destruição de sua família! Mas o jovem vingador, além de enfrentar Zé Caolho e seu bando de jagunços, terá que enfrentar também um forte sentimento que nutre pela linda jovem Vivian Lucena, filha de seu grande inimigo Carlos Lucena.Tem-se inicio a um emocionante confronto de João contra seus inimigos, com batalhas alucinantes e de tirar o fôlego, tendo o tórrido sertão cearense como cenário. Ao mesmo tempo trava-se um intenso conflito de sentimentos, os quais o jovem vingador julgava estar preparado, mas que acaba sendo pego de surpresa por algo mais puro do que ódio e vingança.Entre você também nessa empolgante história de aventura, romance e muita ação pelo sertão nordestino.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de abr. de 2022
ISBN9781526005670
Terra sem Lei

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    Terra sem Lei - Luis Boto

    cover.jpg

    O sol estava ardente naquela tarde, a terra seca e arenosa raramente coberta por algum juazeiro ou menos ainda por mandacarus e arbustos que formam aquele agreste, o céu limpo sem nuvens, porém com alguns urubus que contrastam com sua cor a procura de comida, uma pequena poça d'água barrenta aqui, outra mais lá adiante e só. É como pode ser descrita essa paisagem típica da região do sertão central do Ceará, no nordeste brasileiro. Um lugar belo de se ver, mas hostil para quem vive nele, que não raro, castiga o povo com prolongados períodos de seca.

    Num lugar tão deserto não se pode deixar de notar um grande coche puxado por dois cavalos comandados por um cocheiro maltrapilho que avança rapidamente em meio ao sertão, a ponto de deixarem para trás uma grande nuvem de poeira em seu rastro. Seguindo intrépido o seu caminho, o coche desenvolve uma velocidade que mostra claramente a sua pressa em chegar ao seu destino. Os cavalos alcançam o horizonte de um serrote e de lá se avista mais adiante um grande e belo casarão rodeado de currais e árvores secas, além de algumas pessoas que parecem trabalhar naquele lugar. O cocheiro invoca os cavalos e o veículo avança serrote abaixo de encontro àquela casa.

    No pátio do casarão, um homem de roupas finas e elegantes brinca com um casal de crianças, onde o menino aparenta uns dez anos de idade e a menina não deve passar dos oito. O casalzinho não esconde a alegria de estar brincando com aquele homem, que vez por outra se esquiva das crianças a fim de não sujar seu belo terno.

    De dentro da casa surge uma formosa mulher vestida com um longo vestido sem nenhum decote e com glamourosas sobressaias, estilo de moda predominante no início do século, durante o nascimento da República no Brasil.

    A mulher avista a chegada do coche em frente à porteira de acesso ao casarão, e chama o homem que ainda se enteste entretém com os prodígios das crianças:

    − Carlos, o Sr. Corrêa está chegando!

    De súbito, aquelas brincadeiras são interrompidas, o homem de nome Carlos se despede das crianças:

    − Continuem brincando e tenham cuidado, eu volto logo.

    As crianças reclamam, mas em vão, Carlos se distancia em direção à porteira da casa, ao encontro daquele velho homem que sai de dentro do coche com uma maleta na mão. Carlos olha para a mulher e avisa:

    − Olhe as crianças.

    Em seguida o elegante homem se aproxima do velho senhor que acabara de chegar, vestido com de traje alinhado e um chapéu velho de couro para protegê-lo do sol escaldante.

    − Como foi a viagjem, Sr. Corrêa?

    − Muito calor, Sr. Carlos. Muito calor! - respondeu o velho Corrêa passando um lenço na testa.

    − Vamos, entre e conversaremos mais à vontade - chama o Sr. Carlos pondo a mão no ombro do velho senhor.

    Os dois avançam casarão adentro enquanto as crianças agora brincam com a vistosa mulher. Lá dentro, os dois passam pela espaçosa e luxuosa sala de estar, atravessam um corredor e chegam até uma enorme e robusta porta de mogno, onde o Sr. Carlos tira um chaveiro do bolso e com uma das chaves ele destranca a tal porta e a abre, e os dois entram num suntuoso escritório. Carlos senta-se na cadeira do birô central e o velho Corrêa se senta numa das cadeiras em frente. Nesse instante, entra no escritório também uma senhora negra já de idade, e pergunta:

    − O Senhor vai querer algo, Sr. Carlos?

    − Sim Dinorá, traga água para nós, por favor.

    − Sim Senhor - responde a mulher já se retirando do gabinete.

    Os dois se acomodam em seus asscentos, o velho Corrêa se dirige ao Sr. Carlos:

    − Como vão os negócios sem os escravos, Sr. Carlos?

    − Ainda estou me habituando, mas está difícil.

    − Lá pelas bandas do sul os fazendeiros já estão tendo bastante lucro.

    − É, eu sei, mas aqui no sertão Sr. Corrêa, você sabe que as coisas são mais difíceis, tanto que há algum tempo estou pensando em mudar de ramo.

    − É mesmo, Sr. Carlos? E os seus funcionários, não são bons como os escravos? - indaga o velho Corrêa com ar de espanto.

    − São sim. São muito bons, porém tenho que pagar pela mão de obra, o lucro cai demais e nesse iníicio de regime a crise está feia.

    Dinorá chega com uma bandeja com dois copos de vidro e uma bela vasilha jarra de vidro cheia d'água. Carlos e Corrêa saboreiam aquela água refrescante a ponto de soltarem discretos sorrisos um para opro outro. O velho comenta:

    − É uma pena morarmos numa terra tão quente e dominada pelo calor, não acha Seu Carlos?

    − É verdade meu caro, mas não há lugar melhor pra se viver do que o lugar da gente, não concorda?

    − Sem dúvida. - Cconfirma o velho Corrêa.

    Mas de repente, Carlos muda sua expressão, encarando o velho senhor de forma séria e segura, indagando-o:

    − Agora meu amigo, vamos falar no que realmente nos interessa?

    − Como quiser, Sr. Carlos - responde o velho, colocando o copo no criado-mudo ao lado dele. Carlos continua:

    − Então me diga, como foi a sua conversa com João Silva sobre a minha proposta?

    − Bem, eu levei a sua proposta conforme você havia feito, expliquei todos os detalhes, principalmente no que dizia respeito às vantagens para ele, e é claro, tentei ao máximo persuadi-lo a assinar o contrato de venda. - explica o velho.

    − Certo. E qual foi a posição dele? - questiona novamente Carlos de forma apreensiva.

    − O cabeça dura simplesmente disse que não aceita e nunca aceitará nenhuma proposta de compra das terras dele. - explica o velho com ar de insatisfação.

    − Mas que droga! - inflama-se Carlos batendo com a mão no seu birô e se levantando rumo à janela do escritório que dá para os estábulos do casarão.

    − Pois é, Sr. Carlos, e ele ainda mandou avisar que o senhor não mandasse mais ninguém na casa dele pra oferecer dinheiro pelas terras dele, pois jamais venderá o que herdou de seus pais - continua o velho.

    − Sr. Corrêa, você sabe que os últimos geólogos que estiveram por essas bandas descobriram que existe muito granito naquelas terras, não sabe?

    − Sim, é claro que eu sei! - responde o velho se mostrando um pouco assustado com a expressão hostil de Carlos.

    − Você sabe também que eu sou a única pessoa nessa região com condições financeiras suficientes para bancar a exploração dessas terras, não sabe?

    − Sei sim! - confirma novamente o velho ainda mais amedrontado.

    − E é claro que você sabe que o granito é um minério difícil de encontrar, é muito valioso e pode me tornar um dos homens mais ricos do país, não sabe?

    − Com certeza, Sr. Carlos.

    − Portanto Sr. Corrêa, se você não teve capacidade para convencer aquela besta de vender suas terras, e não tendo mais ninguém para confiar essa missão, terei que tomar outras providêencias e de um jeito ou de outro, aquelas terras e todo o granito que há nelas serão meus.

    − Eu fiz o que estava ao meu alcance para convencê-lo, mas foi em vão - se desculpa o velho meio sem jeito.

    − Está bem, Corrêa, está bem. Agora eu tomo conta do serviço.

    − Mas como o Sr. vai conseguir se ele já disse que não vende por dinheiro nenhum? - indaga o velho Corrêa meio curioso.

    − Isso já não lhe diz respeito, meu velho, mas pode esperar, e verá que vou conseguir o que quero.

    O Sr. Corrêa se atenta ao brilho nos olhos de Carlos ao proferir aquelas palavras. Ali, naquela expressão dura feito uma rocha, via-se claramente que Carlos Lucena estava disposto a qualquer coisa para adquirir as terras de João Silva.

    O coche agora avança sertão adentro e se distancia da casa de Carlos. Escorado no portão principal da casa, ele apenas observa a carruagem sumir no horizonte levando de volta o Sr. Corrêa.

    De repente, Carlos é interrompido por uma singela mão feminina que lhe toca o ombro por trás, ele olha e vêver a elegante mulher que havia ficado com as crianças enquanto ele conversava com o visitante.

    − Está preocupado, Carlos? - pergunta a mulher.

    − Um pouco, Maria, um pouco. Onde estão as crianças?

    − Orlando está dormindo, enquanto Vivian está fazendo as tarefas da escola. - responde a mulher de prontidão.

    Os dois se deslocam rumo à porta de entrada da casa, e Maria pergunta:

    − Então Carlos, Corrêa trouxe boas notíicias para você?

    − Nenhuma, Maria. - responde o inconformado homem, ainda com indignação no olhar.

    − Então ele não conseguiu convencer João Silva? - insiste Maria.

    − De jeito nenhum, o infeliz não vende as terras dele por nada nesse mundo.

    − É uma pena Carlos, e olhe que ele nem sabe que tem granito lá! - comenta a mulher meio sem jeito.

    − É uma pena pra ele. - revida Carlos bruscamente.

    A mulher mostra um olhar de espanto ao ouvir aquelas palavras de Carlos, que continua:

    − Sabe Maria, há coisas na vida que a gente insiste em não fazer, luta e reluta, mas chega um momento em que não resta outra saída se não fazê-la.

    − Não estou entendendo, Carlos. - afirma a mulher já curiosa.

    − Você vai entender Maria, você vai entender. - acalma Carlos abraçando delicadamente o ombro de Maria.

    − A propósito querida, você já providenciou a documentação das crianças pra escola em São Paulo?

    − Sim, Carlos, apesar de eu continuar contra essa ideéia deles estudarem longe daqui tão novos. - responde ela com um semblante meio triste.

    − Não fique assim, Maria, também fico triste, mas sabemos que é o melhor pra eles, aqui nessa região não existe boas escolas, e quero dar um bom futuro para ospros dois. - explica o homem, bastante entusiasmado.

    − Está bem, Carlos, seja o que Deus quiser. - finaliza a mulher ainda com um semblante meio inconformado.

    Carlos abraça mais forte o ombro de sua esposa e os dois entram na casa. O sol já está próximo de se pôr, o céu alaranjado combina com a terra encarnada que rodeia a casa da família Lucena.

    A manhã estava muito bonita naquele dia, o vento forte fazia a terra seca desprender-se da superfície e banhar de areia aquela casa simples, de pequenos currais com porcos, um extenso galinheiro e alguns gados esguios que comem um resto de pasto seco que ainda existe por ali.

    Dentro do pequeno curral, um homem de aparência já bem desgastada, barbado e com trajes rudes típicos da região, peleja sofrivelmente para tirar algum leite de uma vaca magricela. Por trás desse homem chega um garoto de mais ou menos dez anos, cabelos loiros e olhos azuis, com vestimentas rudes iguais ao do homem. O garoto o chama:

    − Pai!

    O homem se volta para o garoto ligeiramente, e soltando um discreto sorriso responde:

    − Oi Joãozinho, o que quer?

    − A mamãe está chamando pra se despedir da tia Bernadete, ela já vai voltar pra casa dela. - responde o garoto Joãozinho de imediato.

    − Está bem, meu filho., Aavise que já vou.

    E o garoto volta correndo, ele atravessa todo o terreiro da casa, passando pela cacimba e o galinheiro e se dirigindo pra dentro de casa. O homem acompanha o garoto mais de longe, daí ele chega à porta, ao olhar para dentro de casa ele avista a mesa da cozinha rodeada por sete pessoas, sendo um deles Joãozinho, que está ao lado de sua mãe, além de dois rapazotes, uma mocinha e outra menininha, que parece ser um pouco mais velha que Joãozinho. Outra mulher, a mais bem vestida, se dirige para o homem dizendo:

    − João, meu velho cunhado, agradeço demais a sua hospitalidade, mas, agora tenho que ir.

    − Você sabe que é sempre bem- vinda em nossa casa, Bernadete. - responde João apertando delicadamente a mão da mulher.

    - Venha sempre nos visitar minha irmã - é o pedido da mãe dos meninos.

    Bernadete se volta para a outra lhe dando um forte abraço, em seguida reclama:

    - Você é que deveria visitar minha casa, Teresa., Sseria ótimo passarmos o dia juntas passeando por toda a cidade.

    - Pode apostar que vou - responde Teresa soltando um largo sorriso.

    - E nós vamos com você, não é mamãe? - indaga uma das meninas.

    - Claro, Marina. Você e Judite irão comigo quando eu for visitar a tia Bernadete.

    - Hei! E nós? - reclama o primogênito da família.

    - Vocês homens ficarão comigo aqui na lida, e só irão à cidade quando eu for. - intervém João na conversa.

    - Ah papai! - a reclamação dos meninos é geral.

    Bernadete rir ao ver a situação dos garotos, daí ela se lembra:

    - E Felícia, onde está ela?

    De súbito surge uma mulher negra e já idosa, com uma bacia na mão e roupas sujas em seus braços:

    - Estou aqui, Dona Bernadete.

    - Ah Felícia! Já estou indo e vou sentir saudades de você - afirma Bernadete dando um forte abraço na negra.

    Todos vão para fora da casa e se dirigem para o oitão, onde está o coche de Bernadete. João previne:

    - Tome cuidado, cunhada., Eesses caminhos do sertão estão a cada dia mais perigosos.

    - Não se preocupe João, estou acostumada a andar por essas estradas desertas, e nunca vi nada de anormal. - abranda a elegante mulher.

    - Não se esqueça de encomendar o meu vestido, ouviu titia? - avisa a menina Marina.

    - Pode deixar querida, não vou me esquecer.

    Um dos meninos, enciumado com a irmã, atiça:

    - Nenhum vestido vai te deixar mais bonita.

    - Nem mais feia! - completa Joãozinho.

    Risos dos garotos.

    - Vocês são insuportáveis.! - reclama a mocinha com muita raiva.

    Mais uma vez João intervém:

    - Não quero briga, meninos. Calados e respeitem a sua irmã.

    Ainda rindo com aquela situação, Bernadete sobe e entra no coche que ela mesma vai guiar, onde ela invoca o cavalo e avança, se despedindo:

    - Até logo minha irmã! Tchau João! Tchau crianças! Até mais ver Felícia!

    E todos respondem positivamente para a dama que se distaância e segue sertão adentro.

    Os garotos logo se espalham: José e Paulo, os mais velhos, partem para um depósito de ferramentas, pegam cada qual uma enxada e vão para o roçado; Marina e Judite vão tirar água da cacimba; já Joãozinho, vai para o curral, onde tenta continuar o que seu pai estava fazendo: tirar leite da vaca magricela.

    Ao lado de Teresa, João observa a movimentação harmoniosa em sua casa e exalta:

    - Eita garotada esperta!

    - É verdade, João. - concorda a mulher soltando um largo sorriso.

    Os dois caminham em direção a casa e Teresa, de súbito, se lembra:

    - João, e o Sr. Carlos Lucena, será que ainda vai aperrear a gente pra comprar essas terras?

    - Acredito que não. Depois do que eu disse àquele velho Corrêa sobre a sua proposta, acho que o Sr. Carlos deve ter se convencido de que nunca venderei as terras que pertenceram aos meus pais e avóôs. - responde João bastante convicto.

    - Eu só queria saber qual o interesse tão grande dele por essas terras secas e desertas. - retruca Teresa, intrigada.

    - Eu também. Deve haver um motivo muito forte pra ele querer dar tanto dinheiro justamente por nossas terras, um motivo que só ele sabe.

    De repente, Teresa faz com que eles interrompam a caminhada e pergunta:

    - João, você não acha que depois de tanta insistência, não está na hora de você conversar com Carlos Lucena ao menos pra saber a razão dessa questão toda?

    João frisa bem o seu olhar no de Teresa, pensa um pouco e em seguida responde:

    - É Teresa, talvez sim! Mas preciso pensar muito antes de decidir falar com aquele lá.

    - Você é quem sabe! - completa a mulher dando um ponto final à conversa.

    Os dois continuam a caminhar juntos até a entrada da casa, quando Teresa entra e João se dirige para o velho depósito de ferramentas e com uma enxada segue para o roçado ajudar José e Paulo na lida.

    Já é mais de meio-dia, o sol está literalmente ardendo, o calor insuportável do sertão nordestino que abrasa as terras de João Silva faz com que todos os animais de seu pequeno sítio procurem abrigo nas sombras de alguma árvore seca ou paredes da casa e do velho depósito de ferramentas. O vento está forte e, vez por outra, levanta pequenas nuvens de areia.

    Felícia sai de dentro de casa e chama em voz alta:

    ̶ Sr João! O almoço está na mesa!

    João surge de trás de um monte de mato ressecado que ele acabara de colher. Muito suado, ele coça a barba e responde:

    ̶ Já estou indo Felícia.

    Lá na cozinha da casa, a mesa já está pronta, os cinco filhos do casal Silva estão cada um com seus pratos esperando o chefe da família chegar para então começarem a satisfazer a sua fome. João chega, olha para todos, solta um leve sorriso e avisa:

    ̶ Não esperem por mim, ainda vou tomar um banho.

    Todos começam a comer numa festa só, enquanto João entra no pequeno banheiro para tomar seu banho.

    Pouco tempo depois, as crianças descansam do almoço, inclusive o caçula Joãozinho, que dá um cochilo no colo de sua irmã Marina. Teresa observa João devorar sua comida e comenta:

    ̶ Pelo jeito você gostou da comida de hoje.

    ̶ Não sei quem cozinha melhor, se é você ou é Felícia - responde João comendo uma coxa de frango.

    Em seguida Teresa se volta para Felícia e ordena:

    ̶ Felícia vá à cacimba e traga água fresca pro João, pois a que tinha aqui já acabou.

    ̶ Sim senhora. - responde de prontidão a negra e imediatamente pega um balde e parte em direção a cacimba, que fica lá no meio do terreiro da casa.

    João continua devorando o frango sempre observado por Teresa, e as crianças continuam descansando, quando de repente o silêncio é bruscamente interrompido por um forte barulho, como se fosse o de um tiro de algum rifle. Muito espantados, os garotos despertam rapidamente de seu descanso. João e Teresa se levantam da mesa meio atônitos. Marina observa Felícia escorada no peitoril da cacimba, cambaleando até soltar o balde e cair no chão. Teresa grita:

    ̶ Felícia!

    ̶ Felícia! - gritam também os garotos quase que em coro.

    João olha espantado para aquela cena, ele não entende o que houve com a velha mulher. Os garotos, com exceção de Joãozinho, correm para ver o que acontecera com Felícia. Ao chegarem junto à negra, José a desemborca: os olhos dela estão abertos, mas estáticos, e não respira mais. Marina observa o sangue que escorre de um buraco no tórax de Felícia, e logo eles concluem que aquele buraco fora feito por uma bala, o que explica o barulho ouvido por todos. Judite começa a chorar e se abraça com o cadáver, mas os garotos também sabem que quem disparou o tiro ainda deve estar por perto, e assim como acertou a pobre mulher, pode fazer o mesmo com qualquer um deles. Porém, antes deles se darem conta do perigo a que estão sujeitos, ouve-se outro tiro: o medo toma conta de todos, e João agora tem certeza de que ele e sua família estão sendo atacados covardemente. Paulo cai sem vida no chão. João se desespera e sai gritando em direção a filho:

    ̶ Paulo! Paulo! Meu filho!

    Teresa fica imóvel, tamanho o choque de ver seu filho ser assassinado ali na sua frente, sem ela poder fazer nada. Joãozinho se agarra fortemente com sua mãe, enquanto que seu pai chega até Paulo e o abraça todo ensanguentado, tendo seus irmãos ao lado chorando com desespero.

    Ouve-se mais dois tiros: José e Judite caem um sobre o outro. Teresa grita em prantos estarrecidos e João grita mais ainda:

    ̶ Não! Não! Pelo amor de Deus! Não!

    Marina se levanta vagarosamente. Mesmo em estado de choque, de tanto pavor, ela sabe que pode ser a próxima vítima. João olha para todos os lados e não ver ninguém, somente nuvens de areia que sobem da terra pela força do vento.

    Teresa joga Joãozinho pra dentro da casa e grita para Marina:

    ̶ Corra minha filha! Corra!

    Ouvindo o apelo da mãe, Marina corre em disparada rumo à entrada da casa, julgando ela que ali estaria segura, mas novamente um tiro certeiro atinge de cheio a moça indefesa, que cai no pé da porta, quase aos pés de Teresa, que se ajoelha chorando e gritando junto ao corpo de sua filha. Uma dor e uma tristeza insuportáveis invadem o coração de João e de Teresa, que vêem seus filhos serem dizimados em segundos, sem saberem por quem e por que, e o que é pior, sem poder fazer nada, visto a brutalidade e a covardia com as quais age o assassino.

    Joãozinho não entende nada do que está acontecendo, ele apenas fica mais aterrorizado a cada instante, a cada tiro, ficando quieto e escondido debaixo da mesa da cozinha, sendo que dali de onde está, dá pra ver tudo o que acontece lá no terreiro: ele ver sua mãe ajoelhada junto ao corpo de Marina na entrada da casa, João também ajoelhado junto ao corpo de Paulo lá no meio do terreiro, e bem próximo, os corpos de José e Judite um sobre o outro, além do corpo de Felícia perto da cacimba. São cenas fortes demais pra um garoto de dez anos.

    A nuvem de areia sob o forte vento, não deixa que as vítimas vejam seu algoz. Outro tiro é ouvido, desta vez João é quem cai no chão sangrando muito no abdômen e se remoendo de dores. Desesperada, Teresa corre pra junto do marido, onde ela se agarra com ele chamando-o:

    ̶ João! João!

    Teresa nota que ele ainda respira, daí levanta devagar a sua cabeça e a põe em seu colo. Chorando muito ela olha pro seu marido e lamenta:

    ̶ Ó meu João! O que fazem com agente? Que desgraça é essa que caiu sobre nós João?

    João olha para Teresa e tenta falar, mas as dores que ele sente não deixam.

    O vento ainda é muito forte, João e Teresa olham para todos os lados e não conseguem ver ninguém devido às nuvens de areia que continuam se levantando da terra. Joãozinho permanece em baixo da mesa da cozinha, ele não tem coragem para ir até onde estão seus pais. Os tiros parecem ter parado, será que o assassino foi embora? Ou deu só uma trégua? Eis que João e Teresa veem surgir vagarosamente através daquelas nuvens de areia, quatro homens, que avançam a passos contados em sua direção. João olha bem para aquelas quatro criaturas com a certeza de que são eles os responsáveis por tudo o que ele está passando naquele momento.

    Joãozinho também já consegue ver aqueles homens que se aproximam mais e mais de seus pais, e ali naquele instante o jovem garoto sabe que está preste a perder o resto de sua família.

    Ao chegarem mais perto, João observa que todos estão muito bem armados com rifles, vestem botas e roupas rudimentares e grandes chapéus para proteger-lhes o rosto do sol ardente. Um deles está todo vestido de preto e usa um tapa-olho direito, percebe-se claramente que ele é o líder do grupo. Ele fixa bem seu olhar frio e cruel em João, ainda deitado sobre o colo de Teresa. Nenhum deles solta uma só palavra, apenas observam aquela cena horrível do sofrimento de João e sua esposa, curvados ali em sua frente naquele chão em brasa. No entanto, para os quatro assassinos, certamente aquela cena é motivo de orgulho, já que foram eles que a promoveram. Teresa fixa bem seu olhar no homem de preto e chama seu marido ainda chorando:

    ̶ Olhe João, olhe, é Zé Caolho! Foi ele João!

    Joãozinho ver e ouve tudo, e seu pavor aumenta ainda mais quando ele vê o dito Zé Caolho erguer seu rifle e apontá-lo para sua mãe. Seu pavor é tão grande que não consegue se mover e nem falar, mas ele consegue ouvir claramente quando o homem profere suas primeiras palavras para seus pais:

    ̶ Creio que deveriam ter aceitado vender essas porcarias de terras.

    Os olhos de João e Teresa se enchem de ódio, ali naquele momento eles entenderam tudo o que estava acontecendo: como eles deixaram claro que nunca venderiam as terras a Carlos Lucena, a única maneira que o fazendeiro encontrou de adquiri-las foi eliminar os donos, e era justamente o que Zé Caolho e seu bando estavam fazendo no presente momento. Teresa não se contém de tanta raiva e explode a sua cólera:

    ̶ Maldito seja Carlos Lucena! Que ele queime no inferno por to...

    Teresa é bruscamente calada por uma bala que lhe atravessa o crânio, e cai sem vida junto a João, que mesmo sem falar dá pra ver em seu semblante que ele não acredita que aquilo esteja acontecendo.

    A essa altura, depois de presenciar tantas atrocidades, o coração de Joãozinho está em pedaços, o seu choro de medo e desespero é incontido.

    João ainda respira e olha fixamente pra Zé Caolho. Aquele que trouxe a desgraça à sua família tem o sangue frio como gelo, seu olhar é capaz de aterrorizar qualquer homem, ou até mesmo a um animal. O herege olha pra João e pra todos os corpos que ali estão, em seguida vira-se pra um de seus comparsas e afirma:

    ̶ Jeremias, vá lá dentro e veja se tem mais alguém. Se tiver, tu já sabe o que fazer.

    Atendendo a ordem, o tal Jeremias parte de imediato pra dentro da casa, e Joãozinho se aterroriza ao ver que o homem vem em sua direção. Já quase sem forças para se mover, João consegue se virar para sua casa, reúne todo o restante de força que ainda possui e solta um aviso desesperado ao seu filho caçula:

    ̶ Joãozinho! Corra! Fuja daí!

    Nesse momento João recebe um chute covarde nas costas, e rola pelo chão quente com mais dores do que nunca. Joãozinho sai rapidamente de baixo da mesa e corre rumo a uma sala que dá para os fundos da casa, mas Jeremias ver o garoto e vai atrás dele. Na sala o garoto avista a janela que dá pra fora da casa pelos fundos, ele corre em direção a ela, pois imagina que se conseguir sair ele terá boas chances de escapar pelos matos secos, os quais ele tão bem conhece. Porém, quando o menino tenta pular a janela ele é ligeiramente agarrado pelo bandido, que o pega pela gola da camisa e o joga no chão com violência. Apavorado, Joãozinho chora muito e implora a Jeremias:

    ̶ Por favor, seu moço, não me mate!

    Jeremias fixa o seu olhar no de Joãozinho. É um olhar frio de um criminoso que apavora uma criança assombrada e indefesa. Mesmo assim, o homem aponta seu rifle para o garoto, que chora e implora:

    ̶ Não me mate! Não me mate!

    De repente, num breve momento de pena ao ver a situação daquele menino, Jeremias amolece um pouco o seu coração e pergunta:

    ̶ Quantos anos tu tem?

    ̶ Dez - responde Joãozinho com a voz trêmula de medo.

    ̶ É a mesma idade do meu bruguelo - comenta o indivíduo soltando uma cínica risada.

    Lá fora, João ainda se dobra de dores pelo chão quando ele ouve o tiro que vem de dentro de sua casa. Ele olha bem para o interior da casa e chora muito. Naquele instante ele tem a certeza de que Joãozinho também morrera.

    Dentro da casa, na sala, Jeremias assopra a fumaça que sai do cano de seu rifle devido ao disparo que acabara de dar. Joãozinho está com os olhos fechados como se estivesse dormindo, mas eis que se abrem. Ele não acredita que ainda está vivo, o buraco da bala está na parede ao lado, bem próximo a ele. Jeremias guarda seu rifle e afirma:

    ̶ Olha pirralho, pula a janela e se manda daqui, pra bem longe ouviu?

    ̶ Sim! Sim senhor! - responde o garoto ainda apavorado.

    ̶ Mas pra bem longe mesmo, pois se eu te ver em qualquer lugar, aí tu morre. Entendeu pirralho?

    ̶ Sim senhor! - responde novamente Joãozinho agora com a certeza de que pelo menos vai escapar naquele momento.

    Imediatamente o garoto sobe a janela e pula para fora da casa, daí ele corre abaixado para dentro do matagal seco, rumo a um morro que fica exatamente nos fundos da casa.

    João observa a volta de Jeremias pra junto do bando, que ao se aproximar de seu chefe afirma:

    ̶ Tá feito, Zé.

    Zé Caolho solta um leve sorriso, sem dúvida ele está muito satisfeito com sua chacina, quem sabe ele até está se divertindo com tudo. João olha pros quatro algozes de sua família, frisa-os bem e com alguma força que ainda lhe resta, ele avisa:

    ̶ Desgraçados! Um dia vão pagar por tudo que fizeram aqui.

    Sem dizer uma só palavra, Zé Caolho aponta seu rifle para João e friamente dispara o tiro de misericórdia. João agora se estira no chão e não mais respira. É o fim da família Silva.

    Zé Caolho dá uma ajeitada em seu chapéu e no tapa-olho, em seguida vira-se para seus capangas e ordena:

    ̶ Queimem tudo!

    Obedecendo a ordem, os três homens rapidamente fazem tochas e as acendem, daí começam a atear fogo em toda a casa de João Silva. O menino Joãozinho, único sobrevivente da chacina, graças a um breve momento de lucidez de Jeremias, quem sabe tocado por Deus, está agora escondido no alto do morro por entre o matagal seco. A casa pega fogo rapidamente e logo já está toda em chamas, enquanto Zé Caolho apenas observa tranquilamente a conclusão de seu serviço.

    O vento ainda está muito forte, e lá de cima do morro, Joãozinho ver os quatro assassinos sumirem na nuvem de areia, indo embora. Ao garoto sobrevivente resta apenas contemplar aquela terrível visão que ficará marcada para sempre em sua memória: a casa em que ele viveu até ali, em chamas, os corpos de seus pais e irmãos sendo também consumidos pelo fogo, os animais do sitio todos correndo pra longe das labaredas, em fim, o seu lar, sua família e sua vida destruídos. O garoto acabara de passar por momentos que seriam capazes de transtornar qualquer adulto em sua fase mais madura, quanto mais uma criança de dez anos de idade. Que triste.

    Joãozinho olha pro outro lado, ao invés daquela terrível cena, ele ver o horizonte do sertão onde crescera, e só em seu pensamento ele toma a sua primeira grande decisão na vida: é para aquele horizonte imenso que lê deve seguir. E assim o faz, deixando para trás aquele horrível episódio que acabara de acontecer e a lembrança de uma família feliz, de uma vida alegre ao lado de seus pais e irmãos, o que nunca mais terá novamente.

    É mais uma bela manhã naquela árida região do sertão nordestino. Como está num período invernoso, existem vários pontos com alguma vegetação em meio ao denso e seco agreste, algumas poças dágua e até mesmo pequenas lagoas, fruto de alguma chuva forte que tenha dado recentemente.

    Passaram-se dezoito anos desde o massacre da família de João Silva. O que terá acontecido nesse período? Será que Carlos Lucena conseguiu explorar o granito das terras de João? Ou será que ele, como mandante do crime, foi preso? Será que pelo menos a policia descobriu quem foi o responsável por aquele crime hediondo? E quanto a Joãozinho, o que terá acontecido com ele?

    Pra começar, vale destacar uma bela e enorme casa construída próximo às antigas terras de João Silva. A casa é definitivamente muito bonita, centro de uma grande fazenda, enormes estábulos, currais, muitos cavalos e bois, além de uma linda área de lazer coberta por arbustos e árvores, que apesar de secos, ainda produzem uma boa sombra.

    O dia está movimentado na casa, pois os empregados estão trabalhando a toda força, uns limpando os cavalos e os coches, colhendo algum leite de vacas mirradas, outros cortando troncos de carnaúbas, em fim, uma manhã de intensa atividade naquela fazenda.

    Um coche passa pela porteira da fazenda, a qual tem escrito em sua placa de entrada o título Fazenda São Carlos, e avança em direção à casa grande. Ao chegar em frente à mesma, desce do veículo um jovem rapaz de uniforme militar característico da época, trazendo consigo um envelope lacrado. O jovem observa a casa e o movimento ao redor dela, então avança rumo à porta de entrada. Chegando, ele bate delicadamente, e não demora muito a porta se abre, onde o jovem é atendido por Dinorá, a velha empregada de Carlos Lucena.

    ̶ O Sr Carlos está em casa? - pergunta o jovem meio que apressado.

    ̶ Não senhor, ele está trabalhando. O que deseja? - indaga Dinorá.

    ̶ Trago uma correspondência - afirma o jovem rapaz mostrando o envelope.

    ̶ Se desejar, posso levar a encomenda à Dona Maria, esposa dele.

    ̶ Pois não. Leve e peça pra ela assinar a guia de recebimento, por favor. - explica o rapaz dando uma solução para a ausência de Carlos.

    Calmamente Dinorá se dirige pro interior da casa em direção à Dona Maria, que está na varanda interna sentada num belo banco de cimento olhando um álbum de fotografias.

    ̶ Com licença Dona Maria.

    ̶ Pois não Dinorá, o que quer?

    ̶ Correspondência pro Sr Carlos - responde a velha senhora entregando

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