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Amar em Istambul
Amar em Istambul
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E-book173 páginas2 horas

Amar em Istambul

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Sobre este e-book

Potente. Massiva. Dolorosa. A narrativa de ‘Amar em Istambul: dolo(ro)sa premeditação’, da autora Diana Di devora o leitor num estranho jogo de influências ignoradas, paixão, obsessão, olhares e conquistas. Lembranças e desafetos costuram uma colcha de vingança, sedução e palavras perigosas. Mas que também fortalece a existência. Se a memória no outro escapa, para aquele que recebe a ferida, permanece. O leitor é conduzido à vida de Charlotte, uma londrina que se mudou para Istambul e conheceu Philip Govier em um curso de escrita criativa. Numa teia de vontades e vingança, a história de cada um se constrói, intrigante e plural. O que encontramos ao fim da jornada é um misto de espanto e reparação. Um prazer de imponência única. Já dizia André Breton em seu livro Nadja, 'A beleza, ou será convulsiva, ou não será.'
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de mar. de 2022
ISBN9788556621511
Amar em Istambul
Autor

Diana Di

Diana Di nasceu em Coimbra, Portugal, em 1978, e, após residir no Algarve e em Leiria, regressoua Coimbra onde fez o restante percurso escolar e ingressou na faculdade em Filologia Clássica. Lecionou, deu formação alguns anos e foi empresária.

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    Amar em Istambul - Diana Di

    Capítulo I

    Aproximou-se lentamente do extremo do velho e gasto passadiço de madeira e, olhando as águas, deixou que, por instantes, os sons e cheiros de todos os longínquos momentos ali passados lhe invadissem a alma. Sentou-se com os pés suspensos sobre o rio.

    Era um fim de tarde de outono. A fria brisa já vencia os escassos raios de sol e as folhas vermelhas e acastanhadas que eram arrastadas pelo vento boiavam à tona da água. Com o olhar vazio, abraçava a caixa de madeira no regaço como se cuidasse de uma alcofa com uma criança frágil. Pegou num canivete e cortou as cordas e os nós que cerravam e encerravam aquela caixa. Respirou profundamente antes de lhe retirar a tampa e, assim que a abriu, não conseguiu segurar a maldita lágrima furtiva que conseguiu escapar daquele saco que ela julgava tão bem e há tanto tempo amarrado.

    O soldadinho de chumbo!! – pensou – e lembrou-se do dia em que Phil lho oferecera. Ali mesmo naquele passadiço, numa manhã de domingo, quando combinaram tomar o pequeno-almoço juntos. E em que ele foi com um casaco azul royal fechado até ao pescoço e um gorro para não ser reconhecido. Afinal, estava próximo da casa dos pais, a aldeia onde nasceu e cresceu.

    – Este soldado vai andar sempre contigo – disse ele, abraçando-a. – Ele tem os olhos bem abertos e postos em ti. Vai controlar-te na minha ausência. Não quero ninguém a aproximar-se de ti assim que eu viro as costas.

    Desenroscou sua cabeça e mostrou-lhe que o corpito do soldadinho era oco. Era um pequeno cilindro vazio. E Phil apontou para os seus próprios olhos e para o interior do soldadinho insinuando que os seus olhos estariam ali.

    Ela riu-se e fechou os olhos para cristalizar o momento. Os domingos de manhã eram tão raros, os domingos de manhã nunca eram seus. Gostava daquelas demonstrações de domínio e de posse que se pareciam com ciúmes sem o serem, mas que ela fazia de conta que eram porque isso a deixava mais feliz, porque isso a deixava mais segura. E apertou o soldadinho de chumbo na mão com toda a força, ao mesmo tempo que se entregava aos braços e abraços de Phil, sorvendo-lhe o aroma do pescoço e do rosto, ao mesmo tempo que lhe passava os dedos pelo cabelo, que agarrava as suas orelhas, que descia para a nuca e para as costas onde lhe acariciava os pelos enquanto pensava sou feliz aqui, sou feliz nos teus braços, sou feliz neste nós. E sorria em silêncio.

    Charlotte agarrou o soldadinho e apertou-o com a mesma força com que o apertara anos atrás, fechado na sua mão que aproximou do peito. Mergulhou dentro da caixa novamente e emergiu com uma folha de papel. Um poema, o poema com a data do dia em que tinha conhecido Phil. Recuou até ao telefonema em que Phil estava a folhear os seus rabiscos num caderno de capas pretas. Ele organizava mentalmente as lições pelos dias em que tinham ocorrido – as lições a que assistia e as lições às quais não podia estar presente, mas a que Charlotte esmeradamente assistia, corrigia e formatava, mais do que para ela própria, para lhe enviar – e ela acompanhava-o do outro lado do telefone. Organizavam os materiais juntos pela ordem das lições até que Phil diz suspirando:

    – ... e depois... a aula do dia em que te conheci, 20 de fevereiro.

    Conheceram-se num curso de escrita. Ele queria aprimorar a retórica e o discurso argumentativo, ela queria voar nas palavras, em prosa, em verso com todos os sentidos e sentidos inversos. Gostava das palavras, gostava de brincar com as palavras e usá-las e gastá-las e trocar-lhes as voltas e brincar com a polissemia. E, quando estavam juntos, soltavam o verbo e diziam disparates e riam os dois dos disparates que diziam. E pareciam dois inadaptados num mundo próprio que só eles tinham a chave para entrar.

    Nesse 20 de fevereiro, Charlotte foi, pela primeira vez, à oficina de escrita que já decorria há alguns meses. Entrou e sentou-se discretamente num canto. Phil falava teatralmente, como é tão seu, com uma jovem lindíssima e Charlotte lembra-se de ter pensado que rapaz tão escandaloso. Faz e quer ser notado. Que vontade de aparecer. Mas, subitamente, ele deixou escapar algo que chamou a sua atenção.

    – A minha família é de Londres, mas mudaram-se para a Turquia há alguns anos atrás. Eu nunca percebi bem se sou inglês, se sou turco – dizia ele na sua voz possante.

    Charlotte não gostou dele no primeiro esgar. Mas decidiu ir falar com ele no fim da aula. Apresentou-se, dizendo-lhe que também era de Londres. A sua família mudara-se para Istambul uns anos antes porque a carreira diplomática do seu pai assim o ditara. O cargo já havia terminado há algum tempo, mas ela decidira ficar porque já não era capaz de se conceber sem as águas do Bósforo, sem o cheiro das especiarias, sem os pináculos das mesquitas ou os chamamentos ao entardecer para o Ramadan.

    Phil disse que era militar CGG – Comando Geral de Gendarma – Jandarma Genel Komutanlığı. Tinham alguns assuntos em comum, mas quase nada. Trocaram números de telefone. Quase um pro forma. Despediram-se ao entardecer quando o vento soprava já com um vigor nada cálido. Lembra-se de sentir o rosto frio. E ela disse-lhe:

    – Quando terminarmos o curso de escrita, bebemos uma garrafa de vinho para comemorar!

    E seguiu o caminho dela, convicta de que não mais voltariam a falar a não ser o mínimo exigido pela socialização da sala de aula. Nos dias seguintes, o seu telefone não parou mais de tocar. Somavam-se chamadas perdidas com chamadas recebidas e as pequenas e mancas conversas de dois desconhecidos, rápida e repentinamente, se transformaram em longas conversas sobre os mais variados temas, desde política a peep shows, o passado de cada um, amores e desenganos, passados pouco presentes, aventuras da adolescência…

    Rapidamente aqueles momentos passados ao telefone se transformaram em conversas profundas e intimistas e eram a parte mais importante do dia de Charlotte. Era quando ela existia sem filtros e sem porquês, onde ela ria desbragadamente e dizia tudo o que lhe passava na alma, assim como Phil. E criaram uma vontade quase viciante de falar. Ela podia ficar horas a ouvi-lo. Não importava se tinha fome, sono ou afazeres. Desligava-se para o mundo e entregava-se horas àquelas conversas. Até porque Phil não morava em Istambul. Morava em Bayramiç, a algumas horas de Istambul. Vinha esporadicamente à oficina de escrita. Mas falavam todos os dias. Desde que Phil entrava no carro e seguia para o quartel até quando Phil estacionava o carro na garagem para reentrar novamente em casa, noite adentro.

    Falavam em todas as pausas, falavam em horário de trabalho, falavam enquanto comiam, enquanto Charlotte escovava os dentes ou enquanto Phil fazia a barba.

    Phil ligava-lhe inúmeras vezes, exceto aos fins de semana. Ao fim de semana, Phil emudecia. E Charlotte respeitava. Procurava ela própria não pensar nesse silêncio duradouro de dois intermináveis dias. E às sete da manhã de 2a feira, o telefone tocava. Ela despertava sem lhe dizer que ele a acordara. Ou já estava efetivamente acordada, movida pela adrenalina de ouvi-lo, de fechar os olhos e fazer de conta que ele estava ali... E falavam longamente ao longo do dia quase sempre até que cada um estivesse deitado. Não havia dias sem Phil. O próprio curso de escrita tornou-se enfadonho quando ele não podia estar.

    Phil era um sedutor nato. Sabia bem como chegar às mulheres; o que dizer, o que citar, as músicas que cantava ao ouvido, os elogios, os galanteios tão prosaicos e sem poesia nenhuma soavam-lhe a realidade, soavam-lhe a verdade. Charlotte, uma sonhadora, desacreditada por promessas não cumpridas por outros ogros e sapos, achou que aquela rudeza bruta com que Phil dizia as coisas, tão distinta das distintas e caras palavras usadas pelos outros que conhecera, só podia ser o tal do amor verdadeiro, sem máscaras, sem artifícios, sem maquiagens.

    Phil não era o seu biótipo. De todo. Na verdade, poderiam passar por irmãos. O mesmo tom de pele ebúrneo, o mesmo verde nos olhos, o mesmo nariz aquilino de árabe. Com uma diferença. Charlotte tinha longos e fartos ondeados cabelos louros e Phil curtos cabelos negros. Tão escuros como a sua alma.

    Um mês depois de se conhecerem, Phil voltou a Istambul e combinaram encontrar-se em frente ao mercado das especiarias. Às onze da noite. Fazia muito frio, sentia-se uma garoa fina que se misturava com os néons laranjas esfumaçados pela neblina. Ela chegara, nesse dia, da Capadócia, mas decidira ir para Istambul porque poderia estar algumas horas com ele. Estar, tocar. Não que não ficasse feliz pelas cinco a seis horas diárias que passavam ao telefone, mas essas horas despertavam-lhes o desejo de se tocarem, de se sentirem. Apenas umas escassas horas que lhe encheriam a alma!

    Subiu com o carro para cima da calçada, desligou os faróis e saiu apressadamente do carro em direção à escultura de ferro, onde ele estava, à chuva, com um casaco de couro preto, cabeça levemente tombada sobre o ombro esquerdo e mão direita no bolso das calças. Enquanto se aproximava, ele sorriu e disse-lhe que gostara da forma como ela havia parado o carro, segura, e foi ao seu encontro. Ela sorriu e saudou-o com um Assalamu Aleikum. Chegou perto dele e abraçaram-se longamente. Enquanto estavam abraçados, ela sussurrou-lhe:

    – Tens a noção de que eu não deveria estar hoje aqui? E que fiz milhares de quilômetros, hoje, só para te abraçar? Amanhã tenho de estar em Ankara às 10h da manhã. Já lá podia ter ficado... vim por umas horas. Vim para te ver.

    Foram comer um hambúrguer. Phil olhou-a seriamente e disse:

    – Sabes qual é a diferença entre ti e todas as mulheres que estão aqui? É que tu estás feliz! A tua pele brilha porque tu refletes felicidade. E sabes qual é a diferença entre nós e aquele casal que ali está? Nós temos cumplicidade. Olha para eles... não se olham, não conversam. Nós estamos um com o outro. Olhamo-nos, ouvimo-nos!!

    Na verdade, Phil teria sido um publicitário de sucesso. Dominava a arte do top of mind como ninguém. E usava as suas ferramentas para, mais ou menos, subtilmente se autopromover. "Nunca na tua vida conheceste ou vais conhecer um tipo como eu".

    Charlotte recordou todos estes momentos, ainda com as impressões de aromas, olhares, toques. Lembra-se de ter pensado que ele estava sexy à chuva, lembra-se de o tempo ter parado durante aquele abraço, lembra-se de as suas pernas tremerem em bicos de pés para poder mantê-lo sob os seus braços. Lembra-se de como foi feliz, ali, por instantes, nas margens do Bósforo, sob o olhar atento, quiçá reprovador, da Santa Sabedoria. Mas, ali, todos os sinais contrários pareceram sinos e sins a abençoarem uma história maldita.

    Rabiscou algo numa minúscula folha e enrolou-a finamente por forma a que coubesse dentro do soldadinho. Fez um tosco barquinho de papel com a folha do poema, onde acomodou o soldadinho de chumbo. Recuou pelo passadiço até à margem e largou o barquinho nas águas. Rapidamente este tomou o rumo da corrente. Charlotte ainda o seguiu por alguns metros, até que este se tornou demasiado veloz e absolutamente inalcançável. Mas Charlotte continuava a correr ao longo da margem, desesperada por ter largado o soldadinho, arrependida de o ter abandonado à sua sorte, soluçando sem parar. Foi interceptada por um braço forte e másculo que a deteve.

    – Segura-o, agarra-o.… ele vai perder-se, ele vai afogar-se – gritava Charlotte enquanto batia nos ombros de Gabriel por este estar diante de si, sem a deixar salvar o seu soldadinho de chumbo.

    Gabriel abraçou-a para lhe conter os braços descontrolados. Segurou-lhe os antebraços e abanou-a para que ela caísse nela.

    – Ei... fizeste tudo para ele se afogar. Agora não há volta a dar, agora tens de conviver com a culpa ou, pelo contrário, sentires-te livre e em paz. Não era o que querias? Não foi isso que te moveu?

    Charlotte rendeu-se sem mais se debater e baixou os braços resignada.

    – A urna está a chegar... sentes-te preparada para ir?

    Não conseguiu conter mais as lágrimas. Sentiu-se invadida por um vazio sem fim.

    Capítulo II

    Gabriel levava-a pelo braço. Sabia bem que a imagem segura, destemida e independente que passa para o mundo, quando Charlotte passa, esconde, na verdade, uma menina assustada e frágil. Na pequena capela cristã do vilarejo, familiares e amigos aguardavam a chegada do carro

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