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Os Melhores Contos de Maupassant
Os Melhores Contos de Maupassant
Os Melhores Contos de Maupassant
E-book356 páginas4 horas

Os Melhores Contos de Maupassant

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Sobre este e-book

Guy de Maupassant foi um escritor e poeta francês com predileção para situações psicológicas e de crítica social com técnica realista. Foi amigo do célebre escritor francês Gustave Flaubert, a quem se referia como "mestre".
Além de romances e peças de teatro, Maupassant deixou 300 contos, todos obras de grande valor.
Neste volume estão reunidos alguns dos seus melhores contos.
IdiomaPortuguês
EditoraMimética
Data de lançamento29 de abr. de 2024
ISBN9789895620180
Os Melhores Contos de Maupassant
Autor

Guy de Maupassant

Guy de Maupassant was a French writer and poet considered to be one of the pioneers of the modern short story whose best-known works include "Boule de Suif," "Mother Sauvage," and "The Necklace." De Maupassant was heavily influenced by his mother, a divorcée who raised her sons on her own, and whose own love of the written word inspired his passion for writing. While studying poetry in Rouen, de Maupassant made the acquaintance of Gustave Flaubert, who became a supporter and life-long influence for the author. De Maupassant died in 1893 after being committed to an asylum in Paris.

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    Os Melhores Contos de Maupassant - Guy de Maupassant

    O Ferrolho

    Título original: Le Verrou (1882)

    Os quatro copos diante dos convivas conservavam-se agora meio cheios, o que indica geralmente que os convivas o estão de todo. Começava-se a falar sem escutar as respostas, cada qual se ocupava apenas de si; e as vozes alteravam-se, os gestos exuberantes, os olhos brilhantes. Era um jantar de solteirões, de velhos solteirões endurecidos.

    Tinham eles fundado aquele jantar periódico uns vinte anos atrás, intitulando-o «O celibato». Eram, nessa altura, catorze, bem resolvidos a permanecerem solteiros. Restavam agora quatro. Três estavam mortos, e os outros sete casados. Esses quatro aguentavam-se; e observavam escrupulosamente, tanto quanto as suas forças permitiam, as regras estabelecidas no começo dessa curiosa associação. Tinham jurado desviar do que se chama o bom caminho todas as mulheres que pudessem, especialmente as dos amigos mais íntimos. De maneira que, mal um deles abandonava a sociedade para fundar família, tinha o cuidado de se zangar irremediavelmente com todos os seus companheiros. Deviam, também, em cada jantar, confessar-se, contar, com todos os pormenores, todos os nomes, todos os mais precisos esclarecimentos, as suas últimas aventuras. Daí, essa espécie de rifão familiar entre eles: Mentir como um celibatário.

    Professavam, além disso, o mais completo desprezo pela Mulher, a quem consideravam «animal de prazer». Citavam, a cada momento, Schopenhauer, o seu deus; reclamavam o restabelecimento dos haréns e das rodas, tinham mandado bordar nas toalhas e nos guardanapos, que serviam para o jantar do Celibato, esse preceito antigo: Mulier, perpetuus infans e, por baixo, o verso de Alfred de Vigny:

    A mulher, criança doente e doze vezes impura!

    De modo que, à força de desprezarem as mulheres, não pensavam noutra coisa, só para elas viviam, dedicavam-lhes todos os seus esforços, todos os seus desejos. Aqueles que tinham casado chamavam-lhes velhos gaiteiros, faziam troça e temiam-nos. Era no momento do champanhe que deviam principiar as confidências no jantar do Celibato. Nesse dia, os velhos... — porque já estavam velhos e quanto mais envelheciam mais surpreendentes aventuras contavam... — os velhos foram inesgotáveis. Cada um dos quatro, nesse último mês, tinha seduzido, pelo menos, uma mulher por dia; e que mulheres! As mais novas, as mais fidalgas, as mais ricas, as mais belas! Tendo terminado as suas narrativas, um deles, aquele que, tendo falado primeiro, escutara depois os outros, levantou-se:

    — Agora que acabámos com as aldrabices, proponho-me contar-lhes, não a minha última, mas a primeira aventura da minha vida; a minha primeira queda (porque foi uma queda) nos braços de uma mulher. Oh! não lhes quero narrar o meu... como dizer-lhes?... a minha iniciação, não.

    »O primeiro fosso transposto... (digo fosso figurativamente), não tem nada de interessante. É realmente lamacento, e um homem sai de lá um pouco sujo, com uma encantadora ilusão de menos, um vago nojo, uma pontinha de tristeza. Essa realidade do amor, a primeira vez que se lhe toca, repugna um pouco; sonhava-se bem outra, mais delicada, mais fina. Fica-nos uma sensação moral e física de repugnância, como quando tocamos por acaso em coisas peganhentas e não temos água para nos lavarmos. Por mais que se esfregue, a sujidade fica.

    »Fica, mas como nos habituamos, e depressa! Se habitua! Entretanto... entretanto, pela minha parte, sempre lamentei não ter podido dar conselhos ao Criador no momento em que ele organizou esta coisa. O que teria eu imaginado? Não o sei ao certo; mas creio que a teria disposto de outra forma. Havia de procurar alguma combinação mais decente e mais poética; sim, mais poética.

    »Acho que o Padre Eterno se mostrou realmente muito... muito... naturalista. Faltou-lhe a poesia na sua invenção.

    »Ora pois, o que eu lhes quero contar é a minha primeira mulher de sociedade, a primeira mulher de sociedade que seduzi. Porque, ao princípio, somos nós que nos deixamos apanhar, enquanto depois... sucede o mesmo.

    »Era uma amiga de minha mãe, mulher aliás encantadora. Criaturas dessas, quando são castas, é geralmente por estupidez, e quando lhes dá para o amor, são furiosas. Acusam-nos de as corrompermos! Uma coisa assim... Com elas, é sempre a lebre que principia e nunca o caçador. Oh! bem sei que não dão mostras de se mexer, mas mexem-se; fazem de nós quanto querem sem o parecer; e depois acusam-nos de as termos perdido, desonrado; aviltado, sei lá!

    »Aquela de quem falo sentia seguramente um furioso desejo de se fazer aviltar por mim. Teria trinta e cinco anos; eu apenas contava vinte e dois. Pensava tanto em a seduzir como em me fazer frade. Um dia, pois, como a visitasse e visse espantado como estava vestida, um roupão consideravelmente aberto, aberto como a porta de igreja quando toca para a missa, pegou-me na mão, apertou-ma, vocês sabem, apertou-ma como elas apertam em tais momentos — e com um sorriso meio extático, suspirando profundamente, disse-me: Oh! Não olhe para mim desse modo, meu filho!

    »Pus-me mais vermelho que um pimentão e ainda mais tímido que de costume, naturalmente. Bem desejava sair dali, mas ela segurava-me a mão, e com firmeza... Colocou-a sobre o seu peito, um peito abundante, e disse-me:

    » Veja, veja como o meu coração palpita. E era verdade, ele batia. Eu começava a fechar a mão, mas não sabia como fazer aquilo nem por onde principiar. Mudei depois.

    »Como eu continuasse com a mão sobre o seio dela, com a outra mão a segurar o chapéu, e continuasse a olhá-la com um sorriso confuso, um sorrir apalermado, um sorriso de medo, ela endireitou-se de repente e, num tom irritado: "Oh! O que faz, jovem, é indecente e mal-educado. Retirei a mão bem depressa, deixei de sorrir e balbuciei umas desculpas, e levantei-me, e saí atordoado, de cabeça perdida.

    »Mas tinha sido apanhado, sonhei com ela. Achava-a encantadora, adormeci, imaginei que a amava, que a tinha amado sempre, e decidi ser empreendedor até à temeridade.

    »Quando a voltei a ver, ela teve para mim um pequeno sorriso de soslaio. Oh! Como esse pequeno sorriso me perturbou! E o seu aperto de mão foi longo, de uma insistência significativa.

    »A partir desse dia fiz-lhe a corte, ao que parece. Ela, pelo menos, afirmou-me depois que eu a tinha seduzido, atraído, desonrado, com um raro maquiavelismo, uma habilidade consumada, uma perseverança de matemático e velhacarias de Apache.

    »Mas uma coisa me perturbava estranhamente. Em que lugar se realizaria o meu triunfo? Eu vivia com a família, e a minha família, nesse ponto, mostrava-se intransigente. Eu não tinha a audácia necessária para transpor, com uma mulher pelo braço, uma porta de hotel em pleno dia; não sabia a quem pedir conselho.

    »Ora a minha amiga, conversando jovialmente comigo, afirmou-me que todo o rapaz devia ter um quarto na cidade. Nós habitávamos em Paris. Foi um raio de luz; aluguei um quarto, e ela foi lá.

    »Foi lá num dia de novembro. Essa visita, que eu quisera adiar, perturbou-me muito porque não tinha lume. E não tinha lume porque a chaminé estava entupida. Justamente na véspera tinha eu feito uma cena ao senhorio, antigo negociante, e ele prometera-me vir pessoalmente com o limpa-chaminés, dentro de dois dias, para examinar atentamente as obras que havia para fazer.

    »Apenas ela entrou, eu declarei-lhe: Não tenho lume, porque a chaminé está entupida. Ela nem deu mostras de me escutar, balbuciou: Não faz mal, tenho-o eu... E como eu ficasse surpreendido, ela calou-se, toda confusa; depois, continuou: "já nem sei o que digo... estou louca... perco a cabeça... Que faço eu, Senhor! Porque vim eu aqui, infeliz! Oh, que vergonha! Que vergonha!... E atirou-se, soluçando, nos meus braços.

    »Acreditei nos seus remorsos e jurei-lhe que a respeitaria. Então, ela atirou-se-me aos pés, gemendo: "Mas não vês que te amo, que me venceste, que me enlouqueceste!

    »Julguei oportuno começar logo as hostilidades. Mas ela estremeceu, levantou-se, fugiu até um armário para se esconder, exclamando: "Oh! não olhes para mim, não, não! Envergonho-me à luz do dia. Se tu ao menos me não visses, se estivéssemos às escuras, de noite ambos... Que pesadelo! Oh! a luz do dia!

    »Corri para a janela, fechei as portadas, cruzei os cortinados, pendurei um sobretudo numa fenda de luz que passava ainda; depois, com as mãos estendidas para não tropeçar nas cadeiras, o coração palpitante, procurei-a, encontrei-a.

    »Foi uma nova viagem, a dois, às apalpadelas, os lábios unidos, para o outro canto, onde era a minha cama. Não íamos a direito, decerto, porque encontrei primeiro o fogão, depois a cómoda, depois, enfim, o que procurávamos

    »Esqueci então tudo, num êxtase frenético. Foi uma hora de loucura, de arrebatamento, de sobre-humana loucura; depois, tendo-nos invadido uma deliciosa lassidão, adormecemos nos braços um do outro.

    »E sonhei. Mas eis que em sonho me pareceu que me chamavam, que gritavam por socorro; depois, recebi uma pancada violenta; abri os olhos!...

    »Oh!... o sol poente, vermelho, magnífico, entrava de roldão pela minha janela escancarada, parecia olhar-nos da linha do horizonte, iluminava com um clarão de apoteose o meu leito tumultuoso, e deitado sobre ele uma mulher desvairada, que gritava, esbracejava, contorcia-se, agitava-se de pés e mãos para agarrar uma ponta de lençol, um pedaço de cortina, qualquer coisa, enquanto de pé no meio do quarto, atarantados, lado a lado, o meu senhorio, de sobrecasaca, acompanhado pelo porteiro e por um limpa-chaminés preto como o diabo, nos contemplavam estupefactos.

    »Ergui-me furioso, prestes a saltar-lhe ao pescoço, e gritei: "Que fazem vocês aqui, com mil raios!

    »O limpa-chaminés, perdido de riso, deixou cair a folha de ferro que levava na mão. O porteiro parecia aparvalhado; e o senhorio balbuciou: Mas, senhor, nós vínhamos... vínhamos... por causa da chaminé. Berrei: Desapareçam, com mil diabos!

    »Ele então tirou o chapéu com ar confuso e polido e, saindo às arrecuas, murmurou: Perdão, senhor, queira desculpar; se eu soubesse que o incomodava, não vinha. O porteiro afirmou-me que o senhor tinha saído. Queira desculpar. E partiram.

    »Desde então, meus amigos, não fecho nunca as janelas, mas verifico sempre as fechaduras.

    O Meu Tio Sosténio

    Título original: Mon Oncle Sosthène (1882)

    O meu tio Sosténio era um livre pensador como há muitos, livre pensador por toleima. Também há muito quem seja religioso pela mesma razão. Ver um padre, lançava-o em furores inconcebíveis; mostrava-lhe o punho, fazia-lhe figas nas costas, o que já de si indica uma crença, a crença no mau olhado. E quando se trata de crenças irraciocinadas, ou se tem todas ou se não tem nenhuma. Eu, que também sou livre pensador, isto é, um insurgente contra todos os dogmas que o medo à morte fez inventar, não tenho a menor cólera contra os templos, quer sejam católicos apostólicos romanos, quer protestantes russos, quer gregos, budistas, judeus ou muçulmanos. E depois, tenho cá uma certa maneira de os considerar e explicar. Um templo é uma homenagem ao desconhecido. Quanto mais o pensamento se alarga, mais o desconhecido diminui e mais os templos desabam. Mas, em vez de lá pôr turíbulos, o meu desejo seria pôr telescópios, e microscópios, e máquinas a vapor. Ora aí está.

    O meu tio e eu diferíamos em quase todos os pontos. Ele era patriota, e eu não, porque o patriotismo também é uma religião. É o ovo das guerras.

    O meu tio era pedreiro livre. E eu declaro os pedreiros livres mais tolos do que as velhas beatas. É a minha opinião, e sustento-a. A ter de professar uma religião, bastava-me a antiga.

    Esses palermas não fazem senão imitar os curas. Têm por símbolo um triângulo, em vez de uma cruz. Têm igrejas a que chamam Lojas, com um sem número de cultos diversos: — o rito escocês, o rito francês, o Grande Oriente — uma súcia de patetices que são para a gente morrer de riso.

    E depois, o que é que eles querem! Socorrer-se mutuamente, fazendo cócegas uns aos outros nas palmas das mãos. Não é mal nenhum. Puseram em prática o preceito cristão? — «Socorrei-vos uns aos outros.» — A única diferença consiste nas cócegas. Mas, acaso valerá a pena tantas cerimónias para emprestar cem sous a um pobre diabo? Os religiosos, para quem a esmola e o auxílio são dever e profissão, traçam no alto das suas epístolas três letras: — «J. M. J.» — Os pedreiros livres põem três pontinhos adiante do nome. Tão bons são uns como os outros.

    O meu tio respondia-me:

    — Justamente, nós elevamos religião contra religião. Fazemos do livre-pensamento a causa que há de matar o clericalismo. A franco-maçonaria é a cidadela onde estão alistados todos os demolidores.

    Eu retorquia-lhe:

    — Mas, meu bom tio... — cá no íntimo, eu dizia meu grande tapado — ...é justamente isso que eu lhe censuro. Em vez de destruírem, organizam a concorrência; o que fazem é baixar os preços. E depois, ainda se não admitissem no seu grémio senão livres-pensadores, compreendia-se; mas aceitam todo o mundo. Têm lá católicos em barda, inclusivamente chefes do partido. Pio IX foi pedreiro livre, antes de ser Papa. Se o meu tio chama a uma sociedade assim composta uma cidadela contra o clericalismo, é fresca a tal cidadela!

    Então o meu tio, piscando o olho, acrescentava:

    — A nossa verdadeira ação, a nossa ação mais formidável é na política. Minamos de um modo contínuo e seguro o espírito monárquico.

    Então é que eu ia aos ares:

    — Sim senhor, são muito espertos! Se me diz que a franco-maçonaria é uma fábrica de eleições, concedo; que serve de máquina de fazer votar paios candidatos de todas as cores políticas, não serei eu que jamais o negue; que não tem outra função mais do que intrujar o povo, arregimentá-lo para o fazer ir à urna como se faz ir os soldados ao fogo, sou da sua opinião; que é útil, indispensável mesmo a todas as ambições políticas, porque transforma cada um dos seus membros em agente eleitoral, responder-lhe-ei que isso é claro como o sol. Mas se me diz que serve para minar o espírito monárquico, então desato a rir. Ora, vejam a vasta e misteriosa associação democrática, que teve por grão-mestre, em França, o príncipe Napoleão no tempo do império; que tem por grão-mestre, na Alemanha, o príncipe herdeiro; na Rússia, o irmão do Czar; de que fazem parte o rei Humberto, e mais o príncipe de Gales, e mais todas as testas coroadas do globo!

    Dessa vez meu tio dizia-me ao ouvido:

    — É verdade; mas todos esses príncipes auxiliam o nosso projeto sem dar por tal.

    — E reciprocamente pois não!

    E acrescentava cá para mim:

    — Súcia de patetas!

    Ora o que era um gosto era ver meu tio oferecer de jantar a um pedreiro livre.

    Encontravam-se primeiro, e apertavam-se as mãos com um ar misterioso muito cómico; via-se mesmo que se entregavam a uma série de complicações secretas. Quando eu queria enfurecer meu tio, era só lembrar-lhe que os cães também têm uma maneira toda maçónica de se reconhecerem.

    Depois, meu tio andava com o amigo pelos cantos, como para lhe confiar coisas de importância; e à mesa, um defronte do outro, tinham uma maneira de se olharem, de cruzarem os olhares, de beberem piscando os olhos, que parecia mesmo estarem a dizer:

    — Nós cá somos da igreja, hein?

    E lembrar-se a gente que há por esse mundo milhões de pessoas assim, a divertirem-se com aquelas macaquices! Eu antes queria ser jesuíta.

    Ora pois, na nossa terra havia um velho jesuíta que era a perdição de meu tio Sosténio. De cada vez que o encontrava, ou que apenas o via de longe, murmurava:

    — Anda, maroto!

    Depois, tomando-me o braço, dizia-me ao ouvido:

    — Verás que este patife ainda me há de pregar alguma. Estou mesmo a adivinhá-lo.

    Bem dizia meu tio. Eis como a desgraça aconteceu por culpa minha:

    Estava a chegar a semana santa. Então, meu tio lembrou-se de organizar um jantar de carne para sexta-feira santa, mas um verdadeiro jantar, com torresmos e mioleiras. Eu resisti quanto pude, dizendo:

    — Nesse dia como carne, como sempre, mas sozinho, em minha casa. A tal manifestação é uma estupidez. Manifestar, para quê? Que mal lhe faz que haja quem não coma carne?

    Mas meu tio teimou. Convidou três amigos para o primeiro restaurante da terra, e como era ele quem pagava, também me não recusei a manifestar.

    Às quatro horas ocupávamos no café Penelope, o mais frequentado, um lugar que dava bem nas vistas; e o meu tio Sosténio, em voz forte, ia apregoando o nosso menu.

    Às seis fomos para a mesa. Às dez, estávamos ainda a comer; e tínhamos bebido, entre cinco, dezoito garrafas de vinho fino, e mais quatro de Champanhe. Meu tio propôs então aquilo a que ele chamava — «o geral do arcebispo». — Colocavam-se em linha seis copinhos, que se enchiam com licores diferentes; e era necessário bebê-los um após outro, enquanto um dos assistentes contava atá vinte. Era uma brutalidade, mas o meu tio Sosténio achava aquilo — «ao calhar».

    Às onze horas, estava bêbedo como um carro. Foi preciso levá-lo num trem e metê-lo na cama; e já era de prever que a tal manifestação anticlerical vinha a dar numa terrível indigestão.

    Como eu fosse recolhendo a casa, também um pouco torto, mas alegre, atravessou-me o espírito uma ideia maquiavélica e que satisfazia todos os meus instintos de ceticismo.

    Compus a gravata, tomei uns ares aflitos, e fui bater como um danado à porta do velho jesuíta. O pedre era surdo, fez-me esperar. Mas como a casa tremia com os meus pontapés, ele apareceu enfim à janela, de barrete de dormir, e perguntou:

    — Que é que me querem?

    Eu gritei-lhe:

    — Depressa, depressa, meu reverendo padre, abra; é um agonizante que reclama o seu santo ministério!

    O pobre homem enfiou logo umas calças e desceu sem sotaina. Contei-lhe, em voz ofegante, que meu tio, o livre pensador, subitamente atacado por um terrível incómodo que fazia prever uma enfermidade gravíssima, tomara grande medo à morte, e desejava vê-lo, falar com ele, escutar os seus conselhos, conhecer as crenças, agremiar-se à Igreja, e decerto confessar-se, e depois comungar, para fazer em paz consigo mesmo a temível viagem.

    E acrescentei com rapidez:

    — Finalmente, é um desejo como outro qualquer. Se lhe não fizer bem, mal também lhe não faz.

    O velho jesuíta, atarantado, contentíssimo, todo trémulo, disse:

    — Espere um momento, meu filho, que eu já venho.

    Mas eu acrescentei:

    — Perdão, meu reverendo padre, eu não o acompanho, que mo não permitem as minhas convicções. Nem o queria vir chamar; e por isso lhe peço que não confesse que falou comigo, mas sim que se diga prevenido da doença de meu tio por uma espécie de revelação.

    O pobre homem consentiu, e lá foi, a toda a pressa, bater à porta de meu tio Sosténio. A criada que tratava o doente abriu logo; e eu vi o sotaina preta mergulhar naquela fortaleza do livre pensamento.

    Escondi-me num portal vizinho, para aguardar os acontecimentos. Em plena saúde, meu tio teria dado cabo do jesuíta; mas eu sabia que ele estava impossibilitado de mexer um braço, e fantasiava com alegria delirante a cena inverosímil que se ia passar entre aqueles dois antagonistas. Que luta! Que explicação! Que estupefação! Que chinfrim! E que desfecho àquela situação sem saída, que a indignação de meu tio tornaria mais trágica ainda!

    Ria-me sozinho como um doido; e repetia comigo, a meia voz:

    — Que boa brincadeira! Que boa brincadeira!

    Mas estava frio, e notei que o jesuíta se demorava muito. Calculava eu:

    — Aquilo estão-se explicando!

    Passou-se uma hora, depois duas, depois três. O reverendo não saía. Que teria acontecido? Meu tio teria morrido de furor ao vê-lo? Ou teria morto o homem da sotaina? Quem sabe se se teriam comido um ao outro. Esta última explicação pareceu-me pouco verosímil, porque meu tio naquele momento parecia-me incapaz de absorver nem mais um grama de comida. Rompeu o dia.

    Inquieto e sem ousar entrar, lembrou-me que um amigo meu morava mesmo defronte. Fui a casa dele; contei-lhe a história, que o espantou e fez rir, e pus-me de atalaia à sua janela.

    Às nove horas, ele tomou o meu lugar, e eu dormi um pouco. Às duas, fui rendê-lo. Ambos nós estávamos desmedidamente atrapalhados.

    Às seis horas, o jesuíta saiu com ar pacífico e satisfeito, e vimo-lo afastar-se em passo tranquilo»

    Então, envergonhado e tímido, fui bater à porta de meu tio. Apareceu a criada. Não me atrevi a interrogá-la, e subi, sem dizer palavra.

    O meu tio Sosténio, pálido, abatido, triste, com os braços inertes, jazia no seu leito. Um registo de devoção estava espetado nos cortinados com um alfinete.

    No quarto cheirava fortemente a indigestão.

    — Então, está de cama, meu tio? — disse eu. — Isso vai mal?

    Ele respondeu em voz acabrunhada:

    — Ai, meu filho! estive muito mal, ia morrendo...

    — Como assim?

    — Não sei, é espantoso. Mas o que é célebre, é que o padre jesuíta que agora saiu daqui, sabes? Esse pobre homem que eu não podia ver? Teve uma revelação do meu estado, e veio ver-me.

    Deu-me uma gana furiosa de rir:

    — Sim?

    — É verdade. Ouviu uma voz dizer-lhe que se levantasse e viesse cá, porque eu estava a morrer. Foi uma revelação.

    Fiz menção de espirrar, para disfarçar o riso. Eu nem me podia ter.

    Ao cabo de um minuto, tornei com ar indignado, apesar do riso:

    — E meu tio recebeu-o?! Um livre pensador! Um pedreiro livre! Não o pôs na rua!

    Ele pareceu confuso, e balbuciou:

    — Mas anda cá! Pois se o caso era tão milagroso, tão providencial... E depois, falou-me do meu pai. Conheceu meu pai em tempo.

    — Seu pai, meu tio?

    — Sim, parece que conheceu meu pai.

    — Mas isso não é razão para receber um jesuíta!

    — Bem sei; mas se eu estava doente... E tratou-me toda a noite com uma grande dedicação. Não se podia portar melhor. Foi quem me salvou. Estes homens sabem o seu pouco de medicina.

    — Ah! tratou-o toda a noite... Mas o meu tio disse-me que ele ainda agora daqui acabava de sair.

    — É verdade. Como se tinha mostrado tão meu amigo, retive-o para almoçar. Comeu ali ao pé da minha cama, sobre uma banquinha, enquanto eu tomava uma chávena de chá.

    — E ele, ele... comeu carne?

    — Não gracejes, Gastão, há graças que não têm graça nenhuma. Esse homem foi-me nesta ocasião mais dedicado que parente nenhum; quero que as suas convicções sejam respeitadas.

    Então é que eu fiquei aterrado; contudo, respondi:

    — Perfeitamente, meu tio. E depois de almoço, que fizeram?

    — Jogámos uma bisquinha, depois, ele rezou o seu breviário enquanto eu lia um livrinho que ele trazia e que não é lá muito mal escrito.

    — Livro religioso, meu tio?

    — Nem é religioso nem deixa de ser; ou antes, não, é a história das missões deles na África Central. É principalmente um livro de viagens e de aventuras. Estes homens têm por lá feito belas coisas.

    Eu principiava a achar que aquilo tomava caminho. Levantei-me.

    — Bem, adeus, meu tio; já vejo que abandona a maçonaria pela religião. É um renegado.

    Ele ficou um pouco confuso e murmurou:

    — Mas a religião é uma espécie de maçonaria!

    Perguntei:

    — Quando volta ele?

    Meu tio balbuciou:

    — Se queres que te diga... não sei... Talvez amanhã... Enfim, não é certo...

    E saí, absolutamente pasmado.

    E é que deu mau resultado a minha brincadeira. Meu tio está radicalmente convertido. Até aí, pouco se me dava. Clerical ou pedreiro livre, cá para mim, é tudo um; mas o pior é que acaba de fazer testamento, e de me deserdar, em favor do padre jesuíta.

    Um Parricida

    Título original: Un Parricide (1882)

    O advogado alegara a loucura em favor do criminoso. Como explicar de outro modo aquele crime extraordinário?

    Haviam sido encontrados uma manha, num canavial, perto de Chatou, dois cadáveres enlaçados, marido e mulher, muito conhecidos, ricos, ambos jovens, casados havia apenas um ano, a mulher viúva havia três anos.

    Não se lhes conheciam inimigos, não tinham sido roubados. Parecia que os tinham atirado da margem para a ribeira, depois de os haverem ferido, um após outro com uma comprida ponta de ferro.

    A investigação nada descobrira. Os barqueiros, interrogados, nada sabiam; ia-se já abandonar o processo quando um jovem marceneiro,

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