Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Jane Eyre
Jane Eyre
Jane Eyre
E-book514 páginas7 horas

Jane Eyre

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Primeiro romance de Charlotte Brontë, grande clássico da literatura inglesa, que inspirou adaptações para cinema e televisão. Jane Eyre, órfã de pai e mãe, vive com parentes que a desprezam até ser enviada para a instituição de caridade Lowood. Apesar das inúmeras privações que enfrenta na escola, a menina leva uma vida quase feliz, tornando-se forte e independente. Aos 18 anos, decide partir para Thornfield e trabalhar como preceptora de Adele, pupila de Edward Rochester. "Jane Eyre" narra, além de uma comovente história de amor, a saga de uma jovem em busca de uma vida mais rica do que a sociedade inglesa do século XIX tradicionalmente permitia às mulheres.
IdiomaPortuguês
EditoraMimética
Data de lançamento29 de abr. de 2024
ISBN9789895620005
Jane Eyre
Autor

Charlotte Brontë

Charlotte Brontë (1816-1855) was an English novelist and poet, and the eldest of the three Brontë sisters. Her experiences in boarding schools, as a governess and a teacher eventually became the basis of her novels. Under pseudonyms the sisters published their first novels; Charlotte's first published novel, Jane Eyre(1847), written under a non de plume, was an immediate literary success. During the writing of her second novel all of her siblings died. With the publication of Shirley (1849) her true identity as an author was revealed. She completed three novels in her lifetime and over 200 poems.

Autores relacionados

Relacionado a Jane Eyre

Ebooks relacionados

Clássicos para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Jane Eyre

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Jane Eyre - Charlotte Brontë

    Capítulo 1

    Seria impossível passear com semelhante tempo. De manhã, tínhamos dado ainda uma volta até ao caramanchão, completamente despido de folhas, mas depois do jantar — Mrs. Reed, quando não tinha convidados, jantava cedo — o vento gélido do Inverno amontoara nuvens tão pesadas e a chuva caia tão cerrada e penetrante, que não podia pensar-se em sair.

    O facto alegrou-me; na verdade nunca apreciei prolongados passeios, principalmente em tardes glaciais. O regresso a casa, pelo crepúsculo tristonho e sombrio, com as mãos e pés gelados, o coração apertado, esmagada pelas censuras de Bessie, a criada das crianças, e, além de tudo isso, humilhada com a consciência da minha inferioridade física perante Eliza, John e Georgiana Reed, era o mais custoso para mim.

    Eliza, John e Georgiana estavam agora junto da mãe, estendida no divã, perto do fogão e rodeada pelos seus entes queridos — que, naquele momento, contra o costume, não choravam nem questionavam uns com os outros — e ela sentia-se completamente feliz. Quanto a mim, ficara dispensada de fazer parte do grupo porque, segundo disse Mrs. Reed: «enquanto não seguisse os conselhos de Bessie e não aprendesse por observação própria a modificar o meu carácter, tornando-me mais sociável e mais conforme ao que deve ser uma menina, não me mostrasse mais atraente e graciosa, não tomasse atitude mais comunicativa, mais natural e delicada — via-se obrigada a excluir-me dos privilégios concedidos às crianças felizes e contentes com a sua sorte.

    — Mas, afinal, que fiz eu, Bessie?... Que tem ela contra mim?...

    — Jane, é feio ser perguntadora e resmungona e a senhora tem razão. Uma menina não fala assim de uma pessoa de respeito. Vai para onde quiseres e, se não sabes falar como deves, está calada.

    Junto à sala havia um aposento pequeno e simples onde se almoçava e onde existia uma estante cheia de livros. Foi para aí que me retirei, apoderando-me de um livro escolhido de propósito com o maior número de gravuras. Instalei-me no vão da janela, sentei-me de pernas cruzadas, como os Turcos, numa cadeira baixa e cerrei os cortinados de veludo vermelho, ficando assim como que encerrada em pequeno gabinete. As pesadas pregas do cortinado isolavam-me da sala e, à esquerda, a janela protegia-me, mas não me separava do tristonho dia de novembro. Ao mesmo tempo que voltava as páginas do livro, estudava o aspeto daquela tarde de Inverno. Ao longe, desdobrava-se uma cortina de nevoeiro e de brumas; mais perto, o cenário era formado pelo relvado encharcado, pelos arbustos do jardim, sacudidos pelo temporal, pela chuva cerrada, oscilando de espaço a espaço, com a força das rajadas.

    Concentrei toda a minha atenção no livro, a História das aves das Ilhas Britânicas, de Berwick. Quanto ao texto, de uma forma geral, pouco me interessava; todavia, as primeiras páginas, embora eu fosse criança, não podiam passar-me em claro. Eram as que se referiam aos pontos frequentados pelas aves marinhas, rochedos e promontórios solitários só por elas procurados; a costa de Noruega, semeada de ilhas, desde o extremo meridional, Lindesnas ou Naze até ao Cabo Norte.

    Sim, não podia passar estas páginas sem que elas me sugerissem a imagem das tristonhas costas da Lapónia, da Sibéria, do Spitzberg, da Nova Zelândia, da Islândia, da Gronelândia, com a «extensão imensa da zona ártica, essas regiões perdidas, reservatórios de neve e gelo, campos maciços onde o gelo se acumulou em séculos de Inverno, massas alvinitentes, amontoadas em alturas alpínicas, rodeando o Pólo e concentrando em si os rigores multiplicados do frio extremo.» Fazia dessas regiões, de uma alvura de morte, uma ideia muito pessoal, fantasmagórica, como todas as noções meio incompreendidas que flutuam no cérebro das crianças, vagas, mas estranhamente impressionantes. As palavras dessas primeiras páginas referiam-se às gravuras seguintes e explicavam o imponente rochedo solitário, batido pelas vagas e pela ressaca; o barco despedaçado contra a margem escalvada; lua gélida, derramando uma luz espectral sobre o navio prestes a naufragar.

    Não sei explicar qual o sentimento que emanava do cemitério, completamente solitário, com a campa gravada, a cancela de entrada, dois ciprestes, o horizonte apertado entre muros meio arruinados, o crescente da lua desenhando-se no céu e atestando que já era noite...

    Os dois navios imobilizados no mar calmo, tomava-os por fantasmas de marinheiros. Passava, sem quase a olhar, a gravura representando o demónio agarrado à trouxa de um ladrão e o mesmo acontecia com a de um ser escuro, com chifres, que, do alto de um rochedo, observava a multidão agrupada em volta de uma forca.

    Cada gravura contava a sua história; umas vezes misteriosa para o meu entendimento pouco desenvolvido e para as minhas sensações ainda imperfeitas, mas profundamente interessante sempre. Tão interessante como as que contava Bessie, nas compridas noites de Inverno, quando, por acaso, estava de bom-humor e que, tendo chegado a tábua de engomar para o fogão do quarto das crianças, nos permitia que nos sentássemos em volta. Enquanto metia em goma as rendas de Mrs. Reed e encanudava os bordados das toucas de dormir, alimentava a nossa ardente imaginação com histórias de amor e aventuras tiradas dos velhos contos de fadas ou das baladas ainda mais antigas ou — como mais tarde reconheci — das páginas de Pamela e de Henrique, conde de Moreland.

    A porta abriu-se e a voz de John Reed gritou:

    — Onde estás, meu bicho de mato?

    Depois calou-se, porque não viu ninguém.

    — Onde se teria ela metido — murmurou. — Lizzy!... Georgiana! — gritou para fora, dirigindo-se às irmãs. — A Jane não está aqui. Digam à mamã que a estúpida saiu com esta chuva!

    «Felizmente, corri o cortinado!», pensei, desejando com fervor que ele não me descobrisse: John Reed, sozinho, nunca teria dado por mim, de facto, porque era pouco esperto e não sabia discorrer. Mas a Eliza bastou-lhe meter a cabeça pela abertura da porta e disse logo:

    — Não vês que está no banco, no vão da janela?

    Saí imediatamente do meu esconderijo, pois, por forma alguma, eu queria que John Reed me fosse lá buscar.

    — Que me queres? — perguntei timidamente.

    — Fazes o favor de dizer «que deseja de mim, Master Reed?» — emendou ele. —Vem cá.

    E sentando-se numa poltrona, intimou-me a aproximar-me e a ficar de pé diante dele.

    John Reed era um rapazito de catorze anos, isto é, mais quatro do que eu. Era alto e forte para a idade, com aspeto doentio, feições grosseiras, pés e mãos enormes e movimentos pesados. Comia habitualmente com sofreguidão, o que lhe dava à pele um tom bilioso, amortecia-lhe o brilho do olhar e tornava-o meio obeso. Naquela altura, devia estar no colégio, mas a mãe tinha-o ido buscar por um mês ou dois, por causa da «sua saúde delicada». Mr. Miles, o diretor, afirmava que ele seria muito mais saudável se não lhe mandassem de casa tantos bolos e outras gulodices. Mas a mãe não dava ouvidos a estes salutares conselhos, afirmando que o mau parecer de John era devido a tanto estudo e, talvez, à nostalgia provocada pelo afastamento de casa.

    John não gostava muito da mãe e das irmãs e antipatizava comigo. Tiranizava-me, não uma vez por acaso, mas constantemente e quando se aproximava de mim todos os meus nervos vibravam e todo o meu ser se retraía. Havia momentos em que quase enlouquecia de terror quando o via, porque me encontrava desarmada perante as suas ameaças e contra os tormentos que me infligia. Os criados, para não lhe desagradarem, nunca tomavam partido por mim e quanto a Mrs. Reed cerrava os olhos e os ouvidos ao procedimento do filho; nunca via quando me batia, nunca escutava quando me injuriava, embora ele o fizesse frequentes vezes na sua presença... e muito mais vezes quando ela voltava as costas.

    Obedecendo por hábito, aproximei-me da poltrona. Decorreram três minutos sem que John me dissesse qualquer coisa, limitando-se a deitar-me a língua de fora o mais que lhe era possível. Sabia que não tardaria a bater-me e, ao mesmo tempo que tremia, não podia deixar de verificar quanto era feio. É muito possível que o meu rosto refletisse o que pensava, porque, de repente, sem proferir palavra, deu-me um soco tão grande que vacilei. Quando recuperei o equilíbrio, recuei alguns passos, afastando-me da poltrona.

    — Isto foi pela forma descarada como respondeste à minha mãe, há bocadinho, e pela mania de te esconderes atrás dos cortinados e pelo olhar que me lançaste agora, minha ratazana!

    Habituada às suas injúrias, não lhe respondi, preparando-me apenas para receber as pancadas que, por certo, iriam acompanhar o insulto.

    — Que estavas tu a fazer ali escondida? — perguntou.

    — Estava a ler.

    — Deixa ver o livro.

    Fui buscá-lo ao vão da janela.

    — Quem te deu autorização para ir buscar os nossos livros?... Vives à nossa custa, não tens vintém porque o teu pai não te deixou nada; devias andar pelas ruas a mendigar em vez de viveres com pessoas ricas como nós, comeres à mesa e usares vestidos novos que te dá a minha mãe! E, agora, vou ensinar-te, para não voltares a mexer na minha biblioteca... sim, porque ela é minha, tudo nesta casa é meu ou virá a ser daqui a alguns anos. Vai para o pé da porta, longe dos vidros e dos espelhos...

    Maquinalmente, obedeci, sem lhe medir as intenções. Mas quando o vi pegar no livro e baloiçá-lo por cima da cabeça, pondo-se de pé em posição para o atirar, num gesto instintivo dei um salto para o lado e soltei um grito. Não o fiz tão depressa, porém, que não me atingisse. O choque atirou-me ao chão e fui bater com a cabeça na porta, ferindo-me. O sangue correu e a dor foi tão viva que o meu terror atingiu o auge. Em breve, porém, outros sentimentos lhe sucederam.

    — Bruto!... Malvado!... — gritei. — És um assassino, um negreiro, tão cruel como os imperadores romanos!

    Tinha lido havia pouco a História Romana de Goldsmith e formara opinião segura sobre Nero e Calígula, etc... De mim para mim, estabelecera paralelos que nunca me atrevera a expor em voz alta, como acabava de fazer.

    — Que estás tu a dizer? — bradou John. — Vocês ouviram bem?... Vou contar tudo à minha mãe, fica sabendo... mas antes disso...

    Precipitou-se para mim e agarrou-me pelos cabelos e pelo braço. Mas tinha de se haver com um ser dementado pelo desespero e corajoso. Para mim, John Reed era um tirano, um assassino... Pelas faces corria-me um fio de sangue e a dor que sentia na cabeça era violenta... Todas estas sensações, naquela altura, sobrelevaram o medo e, fora de mim, voltei-me contra ele. Não sei bem o que lhe fiz... Ouvi gritar: «Ratazana!... Ratazana!... e não tardaram em vir em seu auxílio. Eliza e Georgina tinham corrido a chamar a mãe, que apareceu, seguida pela Bessie e por Miss Abbot, a criada de quarto. Separaram-nos e ouvi que diziam:

    — Parece impossível!... Que fúria!... Atirar-se assim a Master John!

    — Já se viu uma coisa destas!... É uma ferazinha!

    Depois, Mrs. Reed decretou:

    — Levem-na e fechem-na no quarto vermelho.

    Quatro mãos agarraram-me violentamente e arrastaram-me para o andar superior.

    Capítulo 2

    Tentei resistir e libertar-me — rebeldia excecional em mira, o que reforçou a má opinião de Bessie e de Miss Abbot a meu respeito. Com efeito, eu não me encontrava no meu estado normal e, apesar de verificar que o meu primeiro movimento de revolta me acarretava duro castigo, sentia-me na disposição de sair daquela situação desesperada, não importava por que meio. Como todas as escravas que se insurgem contra o cativeiro, estava fora de mim.

    — Agarre-lhe bem o braço, Miss Abbot!... Parece uma gata assanhada...

    — Que vergonha!... Que vergonha! — censurava a criada de quarto. — Parece impossível, Miss Eyre!... Bater no filho da sua benfeitora, no seu patrão!...

    — Patrão! — protestei. — Patrão porquê?... Eu não sou criada!

    — Não... é menos do que criada porque não compensa o que lhe dão com o seu trabalho. Agora sente-se aí e medite bem na sua maldade.

    Tínhamos chegado ao quarto indicado por Mrs. Reed. Empurraram-me para um banco e a minha reação imediata foi levantar-me dele como que movida por uma mola. No mesmo instante, quatro mãos voltaram a carregar-me nos ombros, suspendendo-me o gesto esboçado.

    — Se não estás quieta, terás de ser amarrada — declarou Bessie. — Miss Abbot, empreste-me as suas ligas. As minhas estão velhas e ela rasgá-las-ia num instante.

    Miss Abbot virou-se para despojar as pernas grossíssimas das ligas exigidas. Estes preparativos e a ignomínia que representavam acalmaram-me um tanto.

    — Não vale a pena tirá-las! — prometi. — Não sairei daqui.

    E, para confirmação da promessa, aferrei-me ao banco com as duas mãos.

    — Quietinha! — recomendou Bessie, que não deixara de me segurar.

    Mas como se convenceu da minha submissão, largou-me e tanto ela como Miss Abbot ficaram a observar-me com um olhar duvidoso e desconfiado, como se receassem que eu não estivesse em meu juízo.

    — Nunca fez uma coisa destas — comentou Bessie, dirigindo-se à outra.

    — Não manifestava o mau génio, mas, no fundo, ele lá estava. Muitas vezes disse a Mrs. Reed a minha opinião sobre esta pequena e ela concorda comigo. É uma sonsa... nunca vi garota da sua idade saber dissimular tanto...

    Bessie não lhe respondeu, mas voltou-se para mim e insistiu:

    — Devias reconhecer tudo quanto Mrs. Reed faz por ti. Sustenta-te e ampara-te, quando podia mandar-te para o asilo dos abandonados.

    Não lhe respondi. Estava farta de ouvir estas palavras. Desde que a minha razão despertara, sempre me recordava de ter ouvido alusões dessa ordem. Dizerem-me que não tinha nada e que estava a cargo da dona da casa, tornara-se para mim como que um estribilho — bastante triste e humilhante — que, pouco a pouco, se me tornou indiferente. Por sua vez, Miss Abbot entrou na conversa:

    — E devia também saber que não está no mesmo pé de igualdade com as Misses Reed e Master John, só porque a senhora teve a bondade de a educar com eles. Mais tarde, eles serão ricos e a Miss Jane não tem nada. Portanto, deve ser humilde e fazer por lhes agradar.

    — O que dizemos é para teu bem — acrescentou Bessie em tom mais brando. — Devias procurar ser útil e agradável. Dessa forma, talvez encontrasses um lar. Pelo contrário, se tens mau génio e te portas mal, a senhora manda-te embora.

    — Além disso, Deus castigá-la-á — ameaçou Miss Abbot. — Poderá levá-la no meio de um acesso de cólera e depois para onde irá? Para o inferno. Venha, Bessie, deixe-a sozinha. Reze, Miss Eyre, porque se não se arrepende, pode ser que desça alguma coisa de horrível pela chaminé e a leve...

    E saíram, fechando a porta à chave.

    O quarto vermelho era um aposento enorme, raramente ocupado; posso mesmo dizer que ninguém lá dormia senão quando a afluência de convidados exigia que se utilizasse a totalidade dos quartos de Gateshead-Hall. Podia considerar-se o maior e mais imponente dos aposentos do castelo. No meio, a cama, com colunas de acaju e cortinados de damasco vermelho escuro, erguia-se solene como um tabernáculo; as duas janelas, com os estores corridos, estavam guarnecidas com reposteiros do mesmo damasco; a alcatifa, vermelha, também, assim como o pano que cobria a mesa, colocada aos pés da cama. As paredes estavam pintadas num tom fulvo, levemente rosado; o guarda-vestidos, toucador e cadeiras, de acaju polido num tom escuro. Neste conjunto sombrio, destacava-se o colchão, travesseiro e almofadas, de uma brancura extrema, empilhados em cima da cama e cobertos com uma colcha alvinitente de renda de Marselha. Um pouco mais escondida, à cabeceira da cama, uma poltrona estofada de branco com o respetivo banquinho para os pés, que, na minha imaginação, se assemelhava a pequeno trono.

    O quarto era frigidíssimo porque o fogão raramente se acendia, silencioso por estar afastado dos aposentos mais habitados e solene por ser conhecido como um quarto onde ninguém entrava, exceto a criada que, todas as semanas, lá ia limpar o pó dos espelhos e dos móveis. A própria Mrs. Reed só de longe em longe o visitava para abrir a gaveta secreta do armário e verificar se a miniatura do marido, o cofrezinho das joias e alguns pergaminhos antigos lá se encontravam. O defunto marido... eis o segredo que transformava o quarto vermelho num aposento abandonado, a despeito do seu tamanho e sumptuosidade do mobiliário.

    Mr. Reed tinha morrido havia já nove anos e naquele quarto o seu corpo estivera exposto até sair a caminho da igreja; e, desde então, respeitosa tristeza o rodeava, impedindo frequentes intrusões.

    A cadeira para a qual Bessie e Miss Abbot me tinham atirado era uma espécie de otomana baixa, colocada perto do enorme fogão. Em frente de mim estava a cama; à minha direita o armário escuro e muito alto em cujas portas polidas bailavam reflexos suaves e variados; à esquerda ficavam as duas janelas com reposteiros escuros e, entre elas, o espelho alto, refletindo a cama enorme e vazia e todo o conjunto do quarto. Não estava bem certa se elas tinham fechado a porta à chave e, logo que tomei ânimo, levantei-me e fui verificar. Pobre de mim!... Estava aferrolhada como a de uma masmorra. Para voltar para o meu lugar, tornava-se forçoso passar diante do espelho e o meu olhar, involuntariamente, foi atraído pelas imagens profundas que revelava, mais frias e mais escuras naquele quadro imaginário do que eram na realidade; e a estranha criaturinha que, lá do fundo, me contemplava, de faces pálidas, braços caídos, olhos brilhantes e dilatados pelo medo, que se movia naquele cenário imobilizado, apareceu-me como um espírito, um fantasma, misto de fada e de duende, um desses entes fantasmagóricos, habitantes das charnecas desertas, que povoavam as histórias que Bessie por vezes me contava e apareciam no caminho dos pobres viajantes perdidos. Voltei para a cadeira.

    A superstição começava a dominar-me, mas ainda não chegara o momento da sua vitória; o meu sangue ainda tinha vigor e a indignação de escrava revoltada conservava-me as forças; a vaga de pensamentos retrospetivos não me deixava fraquejar perante o desolador presente.

    As tiranias e violências de John Reed, a orgulhosa indiferença das irmãs, a aversão da mãe, a parcialidade dos criados, agitaram-me o espírito perturbado, como o lodo de uma poça estagnada sobe à superfície quando «e lhe atiram pedras. Porque seria eu sempre a sofrer, a ser acusada, assustada e condenada?... Porque, fizesse o que fizesse para conquistar as boas graças de todos, nunca conseguia agradar?... À Eliza, teimosa e egoísta, respeitavam-na. A Georgiana, menina mimada, mau carácter, rancorosa, sonsa e insolente, era bem vista por todos. A sua beleza, faces rosadas e cabelos de ouro, constituíam as delícias de todos e serviam de desculpa para as maiores maldades. Quanto ao John, ninguém tentava contrariá-lo ou castigá-lo, embora ele torcesse o pescoço aos pombos, matasse frangos, açulasse os cães contra os carneiros, roubasse a fruta da estufa e arrancasse as mais belas flores do jardim; tratava a mãe por «velha», insultava-a muitas vezes por causa do tom moreno da pele, semelhante ao seu, procedia sempre contra as suas ordens ou desejos, rasgava ou sujava-lhe os belos vestidos de seda e, apesar de tudo isto, continuava a ser o «seu queridinho». Por mim, nem me atrevia a cometer a mais pequena maldade, esforçava-me por cumprir todos os meus deveres e chamavam-me peste, insuportável, resmungona, desde manhã até à noite e desde a noite até pela manhã.

    Doía-me a cabeça e o sangue ainda corria da pequena ferida causada pela queda e pelas pancadas do John, mas ninguém lhe ralhara por me ter batido sem razão; e só porque eu me voltara contra ele, no intuito de evitar nova e injusta violência, todos me acusavam.

    «É uma injustiça... uma injustiça!» — gritava-me a razão, que, estimulada pelas dores, tomava sobre mim domínio precoce, embora transitório. Essa sobre-excitação inspirou-me a resolução de encontrar qualquer expediente para me eximir àquela tirania insuportável, fugindo ou deixando de comer e beber para morrer mais depressa!

    Que desolação me esmagava a alma naquela tarde tão triste!... Tinha o cérebro em fogo e o espírito numa revolta! E, no entanto, toda essa batalha surda e mental se travava nas trevas, contra a ignorância em que me debatia! Não conseguia encontrar resposta para estas interrogações que constantemente me martelavam o cérebro: porque sofria eu... de que me acusavam?... Hoje, que estou longe e tantos anos passaram, vejo tudo com muito maior clareza.

    A minha presença representava uma dissonância em Gateshead-Hall. Não me assemelhava a nenhum deles, não tinha a mais pequena analogia com Mrs. Reed, com os filhos ou com os vassalos submissos que os rodeavam. Se eles não gostavam de mim, eu pagava-lhes na mesma moeda e, portanto, não eram obrigados a simpatizar com quem se sentia incapaz de lhes retribuir essa simpatia; um ente heterogéneo, completamente oposto ao seu temperamento, às suas aptidões e afinidades, um ser inútil, incapaz de lhes agradar ou servir os seus interesses; um ser nocivo que alimentava germes de indignação e rancor em face do seu desprezo, da sua injustiça e tratamento, eis como me consideravam. Eu sei que se me tivesse mostrado, desde o princípio, alegre, comunicativa, exigente, animada, e se fosse bonita — embora não tivesse dinheiro nem amigos — Mrs. Reed teria suportado a minha presença e tratar-me-ia com afabilidade; os filhos teriam sentido por mim a simpatia que é o princípio da amizade, e os criados não se atreveriam a fazer de mim o bode expiatório de todas as incorreções ocorridas no quarto dos brinquedos.

    As sombras começam a invadir o quarto vermelho; passava das quatro da tarde e o céu tempestuoso antecipava o crepúsculo. Ouvia a chuva bater nas vidraças e o vento assobiar por entre o arvoredo; pouco a pouco, enregelava até que fiquei fria como uma pedra. Então toda a minha coragem soçobrou. Os complexos habituais de inferioridade, de falta de confiança em mim própria, de depressão imensa, caíram como água gelada sobre as cinzas da minha cólera. Se todos afirmavam que eu era má, deviam ter razão.

    Não acabava eu, momentos antes, de conceber o projeto de me deixar morrer de fome?... Não seria isso um crime?... A cripta da igreja de Gateshead seria, de facto, refúgio tentador e estaria eu preparada para a morte?... Era nessa cripta que, segundo diziam, repousavam os restos de Mr. Reed... este pensamento súbito levou-me a recordar o defunto e então verguei sob o influxo de crescente terror. Não me lembrava bem dele, mas sabia que fora meu tio — irmão de minha mãe — que me acolhera em sua casa por morte dos meus pais, muito pequenita ainda e que, nos últimos minutos de vida, arrancara a Mrs. Reed a promessa de olhar por mim e educar-me como se eu fosse sua filha. Mrs. Reed, por certo, tinha a convicção de não ter faltado à promessa e, na medida do seu carácter, assim era. Mas como podia ela gostar de uma intrusa que não pertencia à sua raça e a quem, depois da morte ao marido, não a uniam quaisquer laços de parentesco?... Devia custar-lhe imenso — em cumprimento de uma promessa arrancada pela força das circunstâncias— desempenhar o papel de mãe de uma criança estranha, de quem não conseguia gostar e ver essa indesejável impor-se constantemente como contrapeso à sua verdadeira família!...

    Não duvidava de que, se Mr. Reed vivesse, eu seria tratada com mais bondade e carinho. Sentada na cadeira, diante da cama enorme e branca, das paredes manchadas de sombra, olhando furtivamente, de tempos a tempos, para o espelho que brilhava vagamente, recordei tudo quanto ouvira contar dos mortos que saíam dos túmulos, indignados com a falta de cumprimento das suas últimas vontades e voltavam à terra para castigar os perjuros e vingar os oprimidos; lembrei-me de que o espírito de Mr. Reed, atormentado com as injustiças suportadas pela filha da irmã, poderia abandonar a sua derradeira morada — a cripta da igreja ou o mundo desconhecido onde vivem os que partem — e aparecer-me naquele momento, no seu antigo quarto. Enxuguei logo as lágrimas e calei os soluços com receio de que a manifestação violenta do meu desgosto o despertasse e uma voz sobrenatural se fizesse ouvir para me consolar ou um rosto pálido, aureolado de luz, surgisse da sombra e se debruçasse para mim, compassivo e terno. Esta perspetiva, consoladora em teoria, seria terrível se, por acaso, se realizasse. Fiz um esforço para me dominar e chamei em meu auxílio todas as minhas forças para não fraquejar. Erguendo a cabeça para afastar os cabelos que me caiam para os olhos, tentei ser corajosa e relancear um golpe de vista pelo aposento. Nesse instante, um pequeno clarão alastrou pela parede. Seria um raio de luar, filtrado pelo estore? — perguntei a mim mesma. Não, o luar é imóvel e aquela luz andava; enquanto a contemplava, deslizou até ao teto e tremeu por cima da minha cabeça. Hoje, raciocino a sangue-frio e penso que seria a projeção de uma lanterna que alguém levasse na mão ao atravessar o jardim. Naquela altura, porém, com o espírito preparado para uma manifestação sobrenatural, os nervos agitados, supus que a luz fosse o prenúncio da aparição que tanto temia. O coração palpitou-me com violência, o sangue afluiu-me à cabeça, os ouvidos zumbiam-me e senti a impressão de que a meu lado estava alguém. Estava oprimida, sufocava e então, desfeita toda a minha energia, corri para a porta e tentei abri-la num esforço desesperado. Um ruído de passos martelou o corredor, a chave rangeu na fechadura e Bessie e Miss Abbot entraram.

    — Que tens, Jane... estás doente? — inquiriu Bessie.

    — Que barulho! — comentou a outra com azedume. — Fiquei com a cabeça tonta!

    — Levem-me... levem-me daqui!... Quero ir para o quarto dos brinquedos!...

    — Mas porquê? — insistiu Bessie. — Dói-te alguma coisa... viste alguém?

    — Vi, sim... vi uma luz e depois um fantasma.

    Agarrei-me com frenesi à mão de Bessie e ela não a retirou.

    — Arranjou essa história para se desculpar pela gritaria... e que gritos! — comentou Miss Abbot com ironia. — Se tivesse alguma dor, ainda se perdoaria, mas fez de propósito para nos atrair!... Estou farta de conhecer essas manhas!

    — Que se passa aqui? — indagou outra voz que me fez estremecer.

    E Mrs. Reed entrou no quarto, com forte roçagar de sedas, como prenúncio de temporal.

    — Vocês não ouviram bem, Bessie e Abbot?... ter-lhes dito que deixassem Miss Jane sozinha neste quarto até que eu própria viesse buscá-la...

    — Miss Jane gritou tão aflita... — desculpou-se Bessie.

    — Não se importasse. Larga a mão da Bessie, Jane. Não consegues sair daqui com essa esperteza, descansa... Detesto fingimentos e muito mais numa criança e para te provar que a tua manha não deu resultado, ficarás aqui mais uma hora. Se estiveres quietinha e não voltares a gritar, virei abrir-te a porta decorrido esse tempo.

    — Tenha dó de mim, tia! — supliquei. — Perdoe-me e não me castigue assim... Morrerei se...

    — Cale-te... esta cena já durou demais.

    Naquela altura era sincera. Estava convencida de que eu representava uma comédia e considerava-me como monstrinho precoce, eivado de vícios, de paixões exageradas, de egoísmo e perigosa duplicidade.

    Bessie e Abbot já tinham saído. Mrs. Reed, enervada com as minhas súplicas e convulsivos soluços, empurrou-me para o fundo do quarto e saiu, fechando a porta à chave. Ouvi o roçagar do seu vestido, afastando-se pouco a pouco. Creio que fui atacada por uma convulsão e acabei por perder os sentidos...

    Capítulo 3

    Despertei com a sensação de me ter debatido em horrível pesadelo e ter visto enorme fornalha esbraseada, intercalada por barras negras. Ouvi vozes que me pareceram cavernosas, como abafadas pelo vento ou pela água; um estado febril, a agitação e, acima de tudo, o terror, baralhavam-me as ideias. Decorrido algum tempo, percebi que alguém me apalpava a testa, me erguia e compunha as almofadas com uma ternura e carinho a que até então não estava habituada. Recostei-me nesse braço carinhoso e senti-me mais tranquila.

    Minutos depois, o medo desvaneceu-se. Reconheci que estava na minha cama e que a tal fornalha vermelha não era mais do que o fogão do quarto das crianças. Anoitecera e, na mesa, uma vela ardia; vi Bessie aos pés da cama, segurando uma bacia e, sentado à minha cabeceira, um sujeito debruçado para mim.

    A sua presença causou-me inexplicável alivio, a consoladora convicção de ser protegida e amparada porque aquele homem era estranho a Gateshead e não pertencia à família de Mrs. Reed. Voltei a cabeça para não ver Bessie — embora a sua presença me fosse menos antipática do que a de Miss Abbot, por exemplo — e fixei a minha atenção no tal sujeito; reconheci-o: era Mr. Lloyd, o farmacêutico, que Mrs. Reed usava chamar quando algum dos criados adoecia. Para ela ou para os filhos, mandava vir o médico.

    — Conheces-me?... — perguntou ele.

    Murmurei-lhe o nome, estendendo-lhe, ao mesmo tempo, a mão, que ele apertou com alegre sorriso.

    — Belo!... Isto vai melhor — exclamou.

    Depois obrigou-me a deitar, recomendando à Bessie para evitar que me perturbassem durante a noite. Deu-lhe mais algumas indicações e despediu-se, dizendo que voltaria no dia seguinte. Fiquei desolada. Experimentara tão grande impressão de segurança e de proteção enquanto o vi sentado à minha cabeceira que, mal ele fechou a porta, foi como se toda a luz do quarto morresse e as sombras me pesassem no coração numa inexplicável sensação de tristeza.

    — Tens sono, Jane? — perguntou, carinhosamente, Bessie. — Vê se podes dormir...

    Receando que a sua amabilidade se desvanecesse de pronto, respondi a medo:

    — Vou tentar...

    — Tens sede?... Queres comer alguma coisa?

    — Não, obrigada, Bessie.

    — Nesse caso, também vou deitar-me. Passa da meia-noite e estou com sono. Mas, se precisares de mim, chama.

    Que delicadeza!... Era maravilhoso!... Fiquei por tal forma encantada que me atrevi a perguntar:

    — Que tenho eu, Bessie... estou doente?...

    — Adoeceste por ter chorado tanto, no quarto vermelho... Mas vais melhorar depressa!

    Retirou-se para o quarto contíguo, o das criadas, e ouvi-a dizer: «Será melhor dormirmos as duas no quarto da pequena, Sarah... Não quero ficar sozinha com ela esta noite... Acho tão estranho que tivesse o ataque... Quem sabe se viu qualquer coisa que a assustou... A senhora foi demasiado severa com ela...»

    Voltaram as duas e deitaram-se, mas antes de adormecerem ainda conversaram durante uma boa meia hora. Frases incompletas chegaram-me aos ouvidos e logo percebi o assunto a que se referiam: «Passou por ela um vulto todo de branco levando atrás de si enorme cão preto...». «Ouviu três fortes pancadas na porta do quarto»... «Viram uma luz na igreja, mesmo por cima do ponto onde está a sua sepultura...», etc., etc. Por fim apagaram a vela e adormeceram. Mas, para mim, a noite foi de terrível insónia. Ouvidos, olhos e cérebro vibravam numa tensão de medo — um desses medos pavorosos como só as crianças podem sentir.

    Do incidente do quarto vermelho não resultou doença grave ou prolongada. Sofri, unicamente, fortíssimo abalo nervoso, cujas consequências ainda hoje suporto... Sim, Mrs. Reed, a si devo as dolorosas perturbações mentais que por vezes me afligem; no entanto, perdoo-lhe porque a senhora não sabia o que fazia; supondo combater as más tendências do meu carácter, feria-me as fibras mais intimas do meu ser.

    No dia seguinte, depois do meio-dia, levantei-me e sentei-me junto do fogão, muito bem enrolada num xaile. Fisicamente, sentia-me fraca e abatida e, moralmente, esmagava-me profundo desânimo, inexplicável tristeza que se traduzia em lágrimas que me rolavam, silenciosamente, pelas faces. Contudo — pensava eu — devia estar contente. Não via nenhum dos Reed. A mãe tinha saído com os filhos a passeio... Abbot cosia no aposento contíguo e Bessie andava no quarto arrumando gavetas e brinquedos. De vez em quando, falava-me com desusada bondade. Todas estas circunstâncias deviam afigurar-se-me o paraíso, comparadas com a vida de ralhos constantes, de maus tratos e de exigências cumpridas e nunca reconhecidas. Mas os meus pobres nervos encontravam-se tão tensos que não haveria ambiente de paz que pudesse acalmá-los, nem prazer inesperado que tivesse o condão de os excitar agradavelmente.

    Bessie foi à cozinha e voltou com um bolo num prato lindamente decorado com pássaros e flores de cores vivas, prato que sempre suscitara a minha admiração, mas que nunca me consentiam que visse de perto por não me considerarem digna de semelhante favor. Pois Bessie colocou-me essa preciosidade no colo para eu comer o saboroso bolo. Inútil favor que veio, como a maior parte das coisas muito desejadas e concedidas, demasiado tarde. As cores brilhantes dos pássaros e botões de rosa pareceram-me murchas e, incapaz de comer, restitui-lhe o prato com o bolo. Depois perguntou-me se eu queria ler. A ideia entusiasmou-me passageiramente; pedi-lhe que me fosse buscar as Viagens de Gulliver, livro que me encantava porque o considerava como narrativa de factos reais e, em consequência, me interessava muito mais do que os contos de fadas. Os duendes e outros seres maravilhosos, em vão os tinha procurado por entre as flores e trepadeiras que cobriam os velhos muros, o que me levou à conclusão de que tinham abandonado a Inglaterra por outro país menos agreste, onde as flores eram mais espessas e incultas e a população mais rica. Enquanto que Liliput e Brobdignag, nem por sombras duvidava de que fizessem parte da superfície terrestre, que fossem países bem reais, onde, um dia, talvez, eu pudesse ir ver com os meus próprios olhos os campos, as casinhas, os seus minúsculos habitantes, as vacas, carneiros e avezitas em miniatura do primeiro ou as searas altas como florestas, cães gigantescos, gatos monstruosos, homens e mulheres como torres, do segundo. Portanto, quando Bessie me entregou o apreciado livro, quando o folheei e procurei nas suas estampas maravilhosas o encanto que tantas vezes me tinha dominado, fiquei admirada porque tudo se me afigurou triste e lúgubre. Os gigantes pareciam-me anões, os liliputianos, seres malfazejos e diabólicos; Gulliver um pobre desgraçado perdido em regiões medonhas e pavorosas e tudo à semelhança. Acabei por fechar o livro e abandoná-lo junto do prato com o bolo.

    Depois de ter limpo o pó e arrumado o quarto, Bessie abriu uma gaveta cheia de retalhos de seda e de veludo e começou a fazer um chapelinho para a boneca da Georgiana, cantarolando:

    Quando nós errámos pelos campos como dois boémios.

    Já lá vão tantos anos...

    Muitas vezes tinha ouvido esta canção e sempre com prazer, pois Bessie possuía linda voz ou, pelo menos, eu assim o julgava. Mas, naquele dia, ao escutá-la, a minha tristeza aumentou, tanto mais que a entoava a meia voz, prolongando indefinidamente a frase: «Já lá vão tantos anos...». Depois passou a outra canção, verdadeiramente triste, desta vez.

    Quando acabou. Bessie levantou a cabeça e olhou para mim.

    — Então, Jane, que é isso?... Vamos, não chores.

    Era como se dissesse ao fogo que não queimasse. Ela não podia adivinhar o sofrimento mórbido que me torturava.

    À tarde, Mr. Lloyd apareceu:

    — Então já levantada? — exclamou, ao entrar no quarto — Como vai ela, nurse?

    Bessie assegurou que ia muito melhor.

    — Sendo assim, devia estar mais alegre, Miss Jane... chama-se Jane, não é verdade?

    — Chamo, sim, senhor... Jane Eyre.

    —Vai dizer-me porque esteve a chorar... dói-lhe alguma coisa?

    — Não, senhor.

    — Chorou por não ter saído de trem com a senhora — lembrou Bessie, entrando na conversa.

    — Não acredito... já é muito crescida para chorar por uma coisa dessas.

    Era da mesma opinião. E, ferida no meu amor-próprio pela infundada suposição de Bessie, declarei:

    —Nunca chorei por semelhante ninharia. De resto, detesto andar de trem.

    — A resposta foi pronta—comentou o boticário.

    O bom do homem ficou pensativo, fixando-me com olhar penetrante dos seus olhitos pequenos e claros. Tinha feições duras, mas aspeto bondoso. Depois de me ter observado por muito tempo, perguntou à queima-roupa:

    — Qual foi a causa da sua doença, ontem?...

    — Caiu — elucidou Bessie, metendo-se novamente na conversa.

    — Caiu!... Nesta idade ainda não sabe andar!... Deve ter, pelo menos, oito ou nove anos...

    — Empurraram-me! — expliquei, ferida no meu orgulho. — Mas não foi essa a causa da doença — acrescentei, enquanto Mr. Lloyd aspirava uma pitada de rapé.

    No momento em que guardava a tabaqueira, a sineta tocou, anunciando o jantar dos criados. O farmacêutico conhecia o toque e apressou-se a indicar:

    — É para si, nurse. Pode ir descansada. Vou pregar um sermão a Miss Jane, enquanto estou aqui.

    Bessie preferia ficar, mas como a pontualidade à hora das refeições era regra em Gateshead, não teve remédio senão deixar-nos.

    — Se não foi a queda — prosseguiu Mr. Lloyd depois dela sair — que foi então?

    — Fecharam-me até ser noite, num quarto onde aparece um fantasma.

    Mr. Lloyd sorriu e franziu a testa ao mesmo tempo.

    — Acredita em fantasmas?... Já vejo que não passa de um bebé...

    — Acredito no fantasma de Mr. Reed. Foi naquele quarto que morreu e onde o seu corpo esteve exposto... Nem a Bessie, nem qualquer dos outros criados gosta de lá entrar logo que anoitece e evitam-no sempre que podem... E a mim fecharam-me lá sozinha e sem luz... Foi uma maldade que nunca esquecerei!...

    — Ora vamos... e é isso que lhe provoca as lágrimas?... Ou, por acaso, ainda terá medo, de dia?...

    — Não, mas não tarda a anoitecer. Além disso, sou muito infeliz, muito, por outras razões...

    — Pode dizer-me quais são?...

    Desejaria poder responder-lhe pela forma mais completa, mas tornava-se difícil. As crianças sabem sentir, mas não sabem analisar essas sensações; e, embora consigam efetuar parcialmente essa análise em pensamento, não conseguem traduzi-la em palavras. Mesmo assim, receando perder a primeira e talvez a única ocasião de desabafar a minha tristeza com alguém, depois de pensar muito, consegui formular a resposta, muito simples, mas verdadeira:

    — Em primeiro lugar, não tenho pai, nem mãe... nem irmãos...

    — Mas tem uma tia bondosa e primos.

    Calei-me; depois, não pude dominar-me e declarei:

    — O John Reed empurrou-me... e a tia fechou-me

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1