Rayd e a lua do caçador - Volume I: O despertar
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Rayd e a lua do caçador - Volume I - daniel kloster
Direitos autorais © 2019 Dan Kloster Todos os direitos reservados
Essa história é ambientada na Prússia do Século XV. Baseada em fatos históricos reais e documentados. Tomei a liberdade de ajustar os lugares de acordo com o enredo. As cidades e voivodias mencionados realmente existiram, mas sofreram modificações para se adaptar à trama. Os eventos históricos nela retratados também são reais, assim como alguns dos personagens. Ademais, os eventos fantásticos que permeiam a narrativa deste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou armazenada em um sistema de recuperação, ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outro, sem a permissão expressa por escrito da editora.
ISBN-13:
ISBN-10 :
Número de controle da Biblioteca do Congresso:
Impresso no Brasil por - Copyright© Dan Kloster, 2019
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Publicado originalmente por Daniel Augusto Kloster
Título Original: Rayd e a Lua do Caçador – Volume I
Preparação, Revisão e Diagramação: Daniel Augusto Kloster
Diagramação e Imagem da capa:
Texto Descrição gerada automaticamente com confiança médiaPara Orcezi, Darlene, Matheus e Brunna
Sem vossas mercês ao meu lado, jamais teria realizado esse sonho.
Vos amo muito!
Não existe verdade, apenas histórias!
Jim Harrison
Escrever não é nada demais. Só que eu faço é me sentar à máquina de escrever e sangrar!
Ernest Hemingway
Sumário
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1 - O DESPERTAR
CAPÍTULO 2 - IORDAN ZORN
CAPÍTULO 3 - OS LENHADORES
CAPÍTULO 4 - RAYD KOVACH
CAPÍTULO 5 - MARIELLE BAZYNSKI
CAPÍTULO 6 – A NOMEAÇÃO
CAPÍTULO 7 - SUPERAÇÃO
CAPÍTULO 8 - LEMBRANÇAS
CAPÍTULO 9 - OS CAÇADORES
CAPÍTULO 10 - A EQUIPE
CAPÍTULO 11 - HONEDA
CAPÍTULO 12 - BALGA
CAPÍTULO 13 - O JAVALI CAOLHO
CAPÍTULO 14 - OS COLETORES
CAPÍTULO 15 –MARIELLE E O XERIFE
CAPÍTULO 16 – ZORN E MARIELLE
CAPÍTULO 17 - ZIG ESQUELETO
CAPÍTULO 18 – A PROPOSTA
CAPÍTULO 19 – A SANGRIA E O ASSALTO
CAPÍTULO 20 - OS TERRÍVEIS IRMÃOS CARCAJU
CAPÍTULO 21 – RAYD E A LUA DO CAÇADOR
CAPÍTULO 22 – O OLHO DE ÂMBAR
CAPÍTULO 23 - A ALCATEIA DE OUTONO
CAPÍTULO 24 - A RECUSA
CAPÍTULO 25 - A FESTA DA LUA DO CAÇADOR
CAPÍTULO 26 – O DUQUE E OS DESGARRADOS
CAPÍTULO 27 – RAYD E OS CARCAJU
CAPÍTULO 28 - A FORJA
CAPÍTULO 29 – RAYD X VON PLAUEN
CAPÍTULO 30 – MIKA E A CRIATURA
CAPÍTULO 31 - OS LIVROS
CAPÍTULO 32 - ZORN X KARVELIS
CAPÍTULO 33 - GUERRA DECLARADA
CAPÍTULO 34 - RAYD E A RESISTÊNCIA
CAPÍTULO 35 - A REBELIÃO PRUSSIANA
CAPÍTULO 36 - O RESGATE
CAPÍTULO 37 - O PRIMEIRO COMBATE
CAPÍTULO 38 – A PALESTRA
CAPÍTULO 39 - PROMESSA CUMPRIDA
CAPÍTULO 40 - ZORN X GHELLER
CAPÍTULO 41 – ELZA E A TRANSMUTAÇÃO
CAPÍTULO 42 – A VIVISECÇÃO
CAPÍTULO 43 – MARIELLE X VON PLAUEN
CAPÍTULO 44 - OS ALTARES
CAPÍTULO 45 - O COMEÇO DO FIM
Mapa da Prússia no final do século XV entre 1442 e 1496.
* O mapa acima mostra o domínio dos Cavaleiros Teutônicos sobre a Prússia, desde a invasão. O Império Teutônico é ladeado pelo Grão-Ducado da Lituânia e o Grande Reino da Polônia. Um mapa parecido é usado pelo subxerife Zorn em sua Palestra.
PRÓLOGO
Segundo os primeiros homens das tribos bálticas do gélido norte, há entre nós alguns seres especiais. Homens e mulheres tocados pela força superior que tudo rege. Eles escolheram essa vida, estar entre nós e lutar contra o mal. O mal em sua forma mais primordial, mais antiga e mais perigosa. Um mal que se prevalecer, transformará esse mundo em um inferno de morte e caos, pois é disso que ele se alimenta. Esses seres transitam pelos corredores do tempo de maneira mística e fluída, e se apresentam das mais diversas formas. Magos, curandeiros, guerreiros, caçadores e protetores. Essa é a história de um deles!
O Caçador.
CAPÍTULO 1 - O DESPERTAR
Não lembro muito bem como tudo começou, também não consigo descrever com exatidão, mas tudo começou assim!
Tento abrir os olhos, mas não consigo. As pálpebras estão tão pesadas que parecem estar fundidas. Desesperado pela escuridão e impotência, tento me lembrar de alguma coisa, mas na minha mente há um vazio infinito. Todo o meu corpo está dormente, só sinto o meu coração bater, e é isso que me conforta, que me faz saber que estou vivo. Percebo que sou mente e coração e nada mais, mas ele bate lento, bem abaixo do normal. Não sei as horas, o dia, ou o lugar onde estou, mas isso não importa agora, preciso descobrir o que aconteceu. Um formigamento nas pálpebras me dá esperança. Consigo abrir os olhos logo em seguida e vislumbrar uma luz tênue e difusa. Definitivamente estou vivo, ou morto e é assim que as almas despertam no purgatório.
É fim de tarde, meu coração parece bater no ritmo normal agora, os olhos estão totalmente abertos percorrendo em ritmo frenético o local. Estou caído sobre o lado direto do corpo e o olho direito tem sua visão obstruída pelo chão de turfas. Com o esquerdo consigo ver o bosque à minha volta e uma clareira logo adiante que me permite ver o sol se pondo. Logo será noite e sinto que não recuperarei os meus movimentos até lá. Meu coração se aperta, pois, as horas parecem correr mais rápido na estrada para a noite. A Minha mão esquerda começa a se mexer em espasmos, a dor nas juntas dos dedos é pungente. Estou esgotado, o esforço para recuperar os movimentos sugou todas as minhas energias. A noite passa lentamente enquanto tento estimular partes paralisadas do meu corpo movendo-as, mas é inútil, ele parece se recuperar num ritmo próprio. Mesmo contra minha vontade não consigo mais me manter acordado, o cansaço profundo vence e adormeço mais uma vez.
Acordo algum tempo depois com os movimentos do corpo completamente recuperados. Sinto que o sono me fez bem. Um forte vento sopra um punhado de folhas geladas sobre mim, sentindo-as em minha pele percebo que estou nu. Sentindo as forças retornando, levanto-me lentamente procurando me movimentar e ativar a circulação paralisada. Sinto um frio profundo que vai até os ossos. Não havia percebido até então, mas o local onde me encontro é muito frio e uma tênue camada de gelo cobre os arbustos no entorno. Tremendo, procuro por minhas roupas, mas sem sucesso. Desapareceram, ou nunca estiveram ali.
Caminho pela floresta cobrindo as partes íntimas com as mãos. Apesar de aflito não deixo de perceber que é estranhamente silenciosa, bela e misteriosa. De repente, como se fosse tocado por um dedo invisível no meio da espinha, uma forte sensação de estar sendo seguido me invade. Busco à minha volta, o que quer que seja, mas não consigo encontrar.
Nu, sem lembrar de nada, desnorteado e agora essa sensação insuportável, acho que vou enlouquecer!
Penso.
Depois de algum tempo não consigo me controlar, e o instinto fala mais alto. Esqueço o pudor e libero meus braços para correr o mais rápido possível. Mais à frente encontro um pequeno curso d'água, com uma sede torturante, mergulho o rosto na água muito fria e bebo sofregamente. Levanto-me rápido e sigo em frente, olhando para trás não consigo divisar nada. A noite está nublada e somente pequenos rasgos nas nuvens me permitem um pouco de luz, vinda da lua que me acompanha.
Andei por muito tempo e a sensação de estar sendo caçado ainda me acompanha. Mais à frente localizo uma espécie de trilha ou estrada e cheio de esperança apresso meu passo. Após uma pequena corrida, vencido pelo cansaço me sento sob uma grande árvore próxima para recuperar o fôlego. Somente nesse momento é que eu escuto claramente o som de passos próximos na escuridão. São passos pesados e seu dono claramente não está preocupado em passar despercebido. Seguro a respiração o mais que posso, mas quase não consigo, pois meu coração está na boca, pronto para sair. Os passos cada vez mais próximos me fazem descobrir a direção de onde vêm. A cerca de uns trinta passos à minha frente na beira da estrada eu vejo o enorme vulto.
Seja o que for, parece estar caçando. Fareja o ar furiosamente emitindo rosnados curtos e graves. Se a caça sou eu, de alguma maneira a coisa tinha perdido meu rastro. Devo isso à cobertura da raiz em que me encontro e à direção do vento. Na escuridão, estudo-o num misto de curiosidade e pavor. Não sei o que é, mas definitivamente não é humano. O corpo lembra o de um homem alto, com longos braços e pernas fortes. Porém a cabeça lhe tira a humanidade, é grande e disforme com olhos selvagens e vermelhos que mesmo àquela distância transmitiam um ódio primitivo que me congelou. Abandonei a observação da criatura temendo ser localizado, e com uma reação instintiva e apavorada me encolho ainda mais no fundo da raiz, que cedeu. Um buraco se abriu no chão sob mim fazendo minhas pernas despencaram. Com somente a metade superior do corpo exposta e sem alternativas, decido me enfiar de vez no buraco.
Era uma abertura estreita e cheia de raízes duras e afiadas. Com a ajuda dos braços fui lentamente submergindo na escuridão lutando para não fazer o menor barulho. Meu corpo parecia ser açoitado por navalhas enquanto me arrastava para o fundo. Caí cerca de dois metros em um chão de terra fofa e úmida e nele rastejavam os habitantes noturnos do oco da raiz. Eles estavam em plena atividade agora. Afastei o que quer que fosse com as mãos e explorei rapidamente o lugar. O buraco era bastante fundo formando uma espécie de caverna sob a árvore. Me arrastei desesperado para o mais longe que pude da abertura. Pouco tempo depois ouvi a chegada da criatura. Estava próxima da árvore logo acima de mim. Devo ter feito algum barulho, a coisa me ouviu.
Procurei respirar calma e silenciosamente. Com a audição estranhamente apurada pude ouvir o resfolegar da coisa tentando captar todos os cheiros à sua volta. Era no mínimo assustador, praticamente bebia o ar. Nada escaparia daquela criatura. Apurei a visão na escuridão, procurando a abertura de onde tinha vindo, não havia nada nela, a coisa não a tinha encontrado. Me apertei no fundo do esconderijo me encolhendo numa posição fetal e com isso devo ter esmagado alguns dos besouros que me faziam companhia. O cheiro que sobreveio foi nauseante, mas me deu uma ideia. Capturei mais alguns e esmaguei-os entre os dedos, passando os fluídos de suas entranhas pelo meu corpo. Desde o início sentia que precisava disfarçar o meu cheiro, e agora, encontrara uma maneira. Uma náusea aguda me fez vomitar, mas provavelmente devido ao estômago vazio, só tive convulsões. O som do farejar ficou mais alto quando a coisa encontrou a entrada do meu esconderijo. Açoitava o ar freneticamente com o que parecia ser um focinho e uma extensa língua. Nada encontrando, introduziu o braço. Mais uma vez não nada encontrou. E então o monstro atacou selvagemente a abertura. Urrava enquanto destruía boa parte das raízes que faziam o bloqueio. A fera queria entrar ali.
Um tempo interminável se passou. Com rugidos furiosos e golpes fortíssimos a criatura seguia em seu esforço de ampliar a entrada. Mas foi em vão, as raízes não cederam. De repente, tudo cessou. A coisa parecia ter se cansado ou não tinha certeza de que o que procurava estava ali. Enfiou toda a cabeça pela abertura e farejou profundamente uma, duas, três vezes e em seguida se deu por vencido e saiu. Ouvi seus passos circundando a árvore por mais algum tempo, parecendo inconformado. Não pude crer que um animal tivesse inteligência para isso. Em seguida uma forte pancada chacoalhou a árvore e o meu corpo. Depois do golpe a fera emitiu o som mais apavorante que jamais havia ouvido. No início era um grito, vindo das profundezas de uma alma atormentada. Depois, um rosnado gutural alimentado por uma raiva primordial e intestina. Também parecia haver dor, muita dor. O rosnado foi subindo de tom, e, cada vez mais alto se tornou um uivo longo e agoniante. Tudo durou alguns instantes que pareceram uma eternidade. Confesso que tudo que passei até aquele momento nem sequer chegou perto do pavor que me invadiu. Todo meu corpo se arrepiou. Senti em meu âmago um profundo abandono que extinguiu toda esperança que ainda existia em mim, e nesse abandono perdi os sentidos.
Despertei com um facho de luz entrando pela abertura. A noite de suplícios havia terminado. A escuridão tinha se ido, e com ela o monstro que me caçava. Pelo menos eu achava isso. Apesar de tudo, estava descansado, revigorado até. Achei estranho. Uma noite como aquela, com toda a certeza deixaria sequelas profundas em qualquer pessoa, mas isso não aconteceu. Me arrastei até a saída cautelosamente. Olhei para todos os lados para me certificar de que não havia mais nada ou ninguém no entorno. Ao me esgueirar por ela, pude notar o estrago que a coisa tinha feito nas grossas raízes que emolduravam a abertura. Estavam dilaceradas. Eram raízes espessas, entrelaçadas de uma forma que era quase impossível de se atravessar, mas que estranhamente não se tocavam na área da abertura por onde passei. Acho que a criatura só não continuou o ataque porque não conseguiu me farejar. Agradeço sinceramente aos gordos e fétidos besouros que encontrei lá embaixo. Me arrastei para fora desviando cuidadosamente das raízes pontiagudas. Com o corpo quase completamente fora, senti a ponta de uma raiz penetrar como um punhal na minha panturrilha esquerda, a dor foi excruciante. Gritei maldizendo a tudo e recuei o corpo com todo o cuidado para que o furo não se tornasse um rasgo. Enfim saí para luz do dia que naquele horário se apresentava com uma temperatura mais amena. Soltei-me de costas respirando profundamente aliviado. Deitado daquela maneira pude apreciar os galhos da minha protetora que se descortinavam pelo céu. Após algum tempo de relaxamento e enchendo os pulmões com o ar da floresta decidi me levantar e seguir. Ao colocar-me em pé, senti uma forte fisgada na panturrilha e um calor confortável descer até o calcanhar. Ao olhar para trás, constatei assustado que a perda de sangue não era pequena, uma poça começava a se formar no chão. Levantei a cabeça vagarosamente percorrendo o tronco e vi então o estrago que o golpe do monstro havia deixado na pobre árvore. Marcas impressionantes estavam gravadas para sempre na madeira. Cortes profundos no início, que ficavam mais rasos à medida que desciam até a base.
Foi um golpe destruidor, teria me partido ao meio. Tenho que sair logo daqui e encontrar ajuda, esse sangue não vai estancar sozinho!
Pensei.
Daquele ponto em diante e à luz do dia a floresta era deslumbrante. O chão era macio, coberto por musgos e folhas que tornavam a caminhada mais fácil para os meus pés descalços. Uma suave névoa entre árvores antigas e barbadas deixavam tudo mágico. Como gostaria de apreciá-la em uma outra situação, mas a perda de sangue junto com a fome e sede estavam acabando comigo. Eu temia cair morto antes de chegar a algum lugar que me desse abrigo. A visão foi ficando turva, a respiração cada vez mais difícil, não conseguia mais sentir os pés e finalmente os músculos das pernas já não respondiam mais. O caminhar se tornou um ato doloroso que meu corpo conduzia de forma instintiva. Em meio ao torpor, comecei a ouvir não muito distante o som de golpes secos, pancadas sendo aplicadas na madeira. A fera estava de volta.
Como último gesto de loucura de alguém que já não tem mais nada a perder, segui diretamente na direção do som. À beira da morte conheceria meu algoz, olharia em seus olhos e o mandaria para o inferno, mas repentinamente o chão sob meus pés desapareceu. No estado em que estava não consegui perceber que o terreno à minha frente terminava abruptamente num declive acentuado. Despenquei pelo barranco abaixo rolando descontroladamente. No desastrado caminho para o fundo do vale, meu corpo foi golpeado por todas as pedras e galhos que podia encontrar. E nessa desabalada descida para o meu fim tive uma certeza e um conforto, a morte seria rápida.
CAPÍTULO 2 - IORDAN ZORN
O vento estava mais forte e mais frio que o normal para aquela época do ano. Um vento maral que soprava do Norte, trazendo frentes frias ao golfo do Vístula e que adentravam o continente. O outono estava apenas começando, mas isso já era um sinal claro do inverno rigoroso que se abateria sobre toda a região da Voivodia da Vármia-Masúria, na Prússia ocidental. Pensando nisso, o espírito já naturalmente depressivo do Doutor Iordan Zorn ficava ainda pior, e consequentemente seu humor crítico e ácido também.
Como se alegrar com um clima desses? Não se vê o céu azul desde agosto. De lá para cá, somente variações do cinza ao preto nesse céu de chumbo!
E essa reunião? Que maldito horário para se marcar uma reunião, logo de manhã? Parece que o trabalho no hospital central tem pouca importância. Só pode ser coisa de burocratas desocupados!
Pensava.
Apesar de jovem, cerca de trinta anos, aparentava mais idade. A sua natureza ranzinza e metódica colaborava muito com isso. De boa aparência e compleição física, era solteiro, não obstante o batalhão de moças casadoiras que o disputavam nos bailes da cidade. Caminhava agora apressadamente em direção à sede da administração central da Voivodia, na ala leste do castelo de Malbork. Fora chamado para uma reunião urgente com o Voivoda Guildrich e o Xerife Svenborg.
Malbork ou Marienburg era a capital da Voivodia da Vármia-Masúria. Por ter sido estabelecida no entorno do grande castelo de Malbork herdara o mesmo nome. Era populosa e movimentada, e vivia naquela época seu esplendor. A região inteira, aliás, desfrutava de relativa paz após a incorporação ao Estado da Ordem Teutônica e ao tratado da Primeira Paz de Tórun. Mas, devido à insaciável sede de conquista dos Teutões, haviam constantes conflitos na Nadruvia e Skalvia territórios do Grão-Ducado da Lituânia, e na Pomeralia e Cumerlândia do lado Polonês. Apesar disso, poucas notícias das batalhas chegavam à cidade. Zorn sabia bem que, não era do interesse do Grão-Mestre que elas fossem divulgadas. Ouvia-se também muitos rumores de um movimento secreto de resistência ao Império Teutônico, apesar de não haver nenhuma prova de sua existência. Para ele, pouco importava quem eram os altos dirigentes do destino da nação, a sua vida já era bastante desgastante para se preocupar com esses "detalhes provincianos" como gostava de chamá-los. Mesmo sendo ele prussiano de nascença, não nutria nenhum sentimento nacionalista ou revolucionário. Amputações, extrações de dentes, partos, suturas e exames de cadáveres já enchiam demais o seu dia.
À medida que ia se aproximando do castelo, o mau humor ia dando lugar a admiração. Toda a cidade era organizada e bem estruturada, mas o que mais chamava a atenção era mesmo o castelo, o marco zero. Teve o início de sua construção em 1270, por ordem do Papa Honório III, e ainda estava em construção mais de um século depois. Isso se devia a uma série de adaptações que se fizeram necessárias, já que em sua origem fora um mosteiro. Transformou-se, por assim dizer, em um castelo fortificado por sua posição privilegiada às margens do rio Nogat. Este, uma saída estratégica natural para o Golfo do Vístula, e de lá para o Mar Báltico. Segundo a história, em 1217 o Papa decidira empreender uma série de missões com o intuito de levar o Cristianismo às tribos pagãs da Prússia. Para cumprir esta tarefa, pediu ajuda à Ordem dos Cavaleiros Teutônicos de Santa Maria de Jerusalém. Em troca foram concedidos territórios sobre os quais a Ordem poderia se estabelecer. Desde as instabilidades em Veneza, e posteriormente na Transilvânia, não havia mais as condições ideais de infraestrutura e segurança necessárias ao dignitário mor da Ordem. O Grão-Mestre Heinrich Von Plauen. A Prússia então se mostrou o lugar ideal para uma ocupação rápida, seu povo pacífico e totalmente despreparado para a guerra, ofereceu pouca resistência. Nestas terras, os Teutões construíram numerosos castelos. Malbork ou Marienburg como eles o chamavam, era o mais singular. Todo feito de tijolos de barro e não de pedras como usualmente eram construídos os demais.
Atualmente dividia-se em três partes, Castelo Alto, Médio e Baixo. A administração da Voivodia estava instalada no Castelo Médio onde seria a reunião. Para se chegar até ele era necessário contornar o chamado Castelo Alto. Com a sua torre do campanário, era a parte mais alta de todo o complexo. Depois disso seguia-se por uma rua de pedregulhos arredondados que retirados do Nogat ainda no início da construção. Seria um passeio extremamente agradável se o motivo que o levasse até ali fosse a contemplação. Naquele ponto poderia se desfrutar da beleza dos jardins e da brisa suave que soprava do rio. Bem diferente do impiedoso vento gelado do restante da cidade, que não tinha a proteção do paredão da colina e dos muros do castelo. Mas, como o motivo agora não era esse, Zorn caminhava apressado não dando muita importância às belezas do lugar.
Chegando à entrada do Médio, ele passou pelo pátio central com o tradicional poço coberto, que servia para o abastecimento de água daquela parte do complexo e rapidamente alcançou os corredores escuros do primeiro piso. Chegando pelas escadarias ao andar superior, a diferença na luminosidade e arquitetura eram gritantes. Todo o corredor superior até a sala do Voivoda era bem iluminado e alto. O pé direito devia ter uns três metros de altura, o teto era de arquitetura gótica que mostrava bem a sua origem monástica. Colunas na parte central do corredor separavam o teto em abóbadas de quatro faces com linhas curvas até sua junção. Do lado esquerdo, ao longo do corredor, janelas com molduras elaboradas e vitrais magníficos contavam passagens das cruzadas. Também deixavam a luz entrar numa modulação perfeita. Um corredor realmente magnífico, como se preparasse a pessoa para o que viria a seguir, que poderia não ser tão magnífico assim. Ao fim do corredor, Zorn bateu com a pesada aldrava na porta da sala do Voivoda. Uma voz rouca e quase inaudível autorizou sua entrada.
Guildrich estava sentado em sua mesa, no fundo da sala perto da lareira. O Xerife Svenborg estava à sua frente em uma das cadeiras. Havia uma segunda reservada.
- Mestre Doutor, bom dia e bem-vindo! Disse o Voivoda levantando para saudá-lo pessoalmente.
"Definitivamente não era um bom sinal!" Pensou.
O Xerife, como de costume fez uma mesura distante. Zorn tinha uma aversão natural à pessoa do Xerife, e sentia que era recíproca. Voltando sua atenção para Guildrich, analisava a sua linguagem corporal e as intenções subentendidas no tratamento dado a ele. Tudo isso em sua análise, já que se considerava um profundo conhecedor da natureza humana, indicava que o Voivoda precisava muito dele. Já Svenborg estava ali por pura formalidade, ou para servir de testemunha.
- Sente-se, sente-se, por favor. Aceita um vinho? Esse veio diretamente...
- Não obrigado, não bebo, e especialmente a esta hora da manhã desaconselho totalmente o consumo de álcool. Poderíamos ir direto ao assunto! Cortou Zorn.
- Claro, claro, imagine a minha falta de sensibilidade, o Mestre Doutor é um homem ocupado, deve ter deixado muitos pacientes no hospital!
- Não tomarei muito do seu tempo. Por favor, sente-se e vamos esclarecer o que me fez chamá-lo até aqui! Dizendo isso Guildrich se dirigiu graciosamente para sua mesa. Zorn sempre se perguntava como uma pessoa que devia medir no máximo um metro e sessenta e pesar uns cento e cinquenta quilos pudesse ser capaz de tanta leveza e graciosidade de movimentos. Essa massa corporal toda, ainda era acompanhada pelas vestimentas oficiais, que o Voivoda era forçado a usar. O que podia ele agradecer, era o fato de que as temperaturas em Malbork iam de amenas a congelantes durante praticamente todo o ano.
Ele já estaria morto se esse lugar fosse mais quente!
Pensou o Doutor sorrindo por dentro.
Guildrich soltou seu peso sobre a cadeira que, não fosse a madeira reforçada de que era feita, teria algumas de suas lascas cravadas impiedosamente nas suas nádegas quando ela fosse esmagada por ele.
- Sendo direto, o Mestre Doutor conhece Balga?
- O Balneário sombrio? - Nunca estive lá, mas ouvi sua fama. A região apresenta agora nessa época do ano um clima úmido e a maior parte do tempo sofre com o frio e os nevoeiros. Daí o seu apelido. Além é claro de ficar bem longe da capital! Respondeu com um ar levemente pedante.
- Fica a cerca de duzentos quilômetros ao norte. Por terra é uma longa viagem, mas de barco pode se fazer em menos tempo! Declarou o Xerife.
- Grato pela informação! Respondeu Zorn, com uma pontada de ironia.
- Uma pena que tenha formado esse conceito