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Desafios e perspectivas do Direito Processual Civil Contemporâneo: Volume 2
Desafios e perspectivas do Direito Processual Civil Contemporâneo: Volume 2
Desafios e perspectivas do Direito Processual Civil Contemporâneo: Volume 2
E-book1.207 páginas14 horas

Desafios e perspectivas do Direito Processual Civil Contemporâneo: Volume 2

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Sobre este e-book

O presente livro contém os resultados das investigações científicas apresentadas e discutidas durante a realização da II Jornada de Direito Processual Civil, no ano de 2020, evento este organizado pelo Grupo de Estudos em Jurisdição e Processo (GEJCP-UFF) em parceria com diversos outros Grupos de Pesquisa. Em seu conteúdo, encontram-se diversos trabalhos envolvendo como eixo central o ramo do Direito Processual Civil, mas sem perder de vista a necessária interdisciplinaridade entre os diversos ramos do Direito e outras áreas com as quais ele se comunica, tais como: Filosofia, Sociologia, Economia, dentre outras.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de fev. de 2022
ISBN9786525219417
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    Desafios e perspectivas do Direito Processual Civil Contemporâneo - Matheus Vidal Gomes Monteiro

    RECURSOS EXCEPCIONAIS E MEIOS AUTÔNOMOS DE IMPUGNAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS: REFLEXÕES SOBRE SUAS NOVAS FUNÇÕES NO MODELO DE PRECEDENTES JUDICIAIS DO CPC/2015

    CATHARINA, Alexandre de Castro¹

    RESUMO

    O trabalho tem como escopo analisar a dinâmica dos precedentes judiciais e a função contemporânea dos recursos excepcionais e das ações autônomas de impugnação de decisões judiciais disposta no Código de Processo Civil de 2015. A forte ênfase dada pelo código à jurisprudência uniformizadora e a vinculação dos precedentes judiciais enseja a reflexão sobre as formas de controle da atividade judicial em sua aplicação. Neste contexto, se faz necessário uma releitura das ações autônomas de impugnação, como ação rescisória e a reclamação, não somente como forma de impugnar decisões, em seu sentido tradicional, mas também como meio adequado para o controle na aplicação do sistema vinculativo de precedentes judiciais em todos os graus de jurisdição. O trabalho tem, portanto, como principal escopo, analisar normativamente a função contemporânea atribuída às formas de controle de decisões judiciais na processualística brasileira. Considerando que se trata de reflexão sobre os resultados parciais de pesquisa em andamento, a metodologia utilizada será pesquisa bibliográfica.

    Palavras-chave: Recursos excepcionais. Meios autônomos de impugnação. Precedentes Judiciais.

    1. INTRODUÇÃO

    O Código de Processo Civil pretendeu, pelo menos em tese, estabelecer um conjunto de regras² sobre precedentes judiciais vinculativos de modo a assegurar maior isonomia, previsibilidade e segurança jurídica no tratamento de questões idênticas ou repetitivas. Diante da crise do Poder Judiciário, que decorre, em parte, da morosidade sistêmica³ provocada pelo volume demasiado de ações repetitivas distribuídas diariamente no Brasil, estabelecer instrumentos de padronização e vinculação decisória é medida urgente e imperiosa⁴. No entanto, só é possível compreender, hermeneuticamente, a dinâmica dos precedentes judiciais vinculativos, no ordenamento processual vigente, através da interpretação sistemática dos arts. 332, 489, §1º, 927 e 932 do código.

    Não restam dúvidas, neste sentido, acerca do efeito vinculante de algumas decisões judiciais proposto pelo código, o que enseja a reflexão premente sobre as formas de controle em sua aplicação. Essa reflexão se faz necessária diante do risco concreto de ocorrer a aplicação equivocada dos provimentos judiciais vinculativos, como o indevido indeferimento liminar do pedido ou mesmo improvimento imediato de recurso, acarretando violação direta ao princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Por outro lado, as técnicas de aplicação dos precedentes judiciais, como extração ratio decidendi, obter dicta, distinguish e overruling, não fazem parte da cultura jurídica processual brasileira, assentada fortemente no civil law e no método de julgamento por subsunção entre lei e o caso concreto posto em juízo, o que justifica a maior necessidade de controle por parte dos profissionais do direito.

    Nesta linha de investigação, Aluisio Mendes (2017, pág. 99), ao tratar do tema, observa que o caráter vinculativo dos pronunciamentos judiciais disposto no art. 927 do CPC exige maior responsabilidade dos tribunais, no sentido de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, sem descurar do amplo contraditório e da adequada fundamentação, de modo a impor-se pelo conteúdo e não pela autoridade. Por outro lado, ainda com Aluisio Mendes (2017), se faz necessário, também, que a sociedade e os profissionais do direito passem a exercer um controle ainda maior quanto à estruturação e funcionamento dos tribunais para que sua organização se adeque à altura dos novos tempos e das novas exigências.

    É exatamente nesta toada que os recursos excepcionais e as ações autônomas de impugnação de decisões judiciais foram reformulados, do ponto de vista normativo, no Código de Processo Civil, para se adequar ao modelo precedental proposto. Interessa- nos, no presente trabalho, analisar as novas funções atribuídas aos recursos excepcionais e às ações autônomas de impugnação pelo código e de que forma estes meios processuais podem contribuir para o aprimoramento e controle dos provimentos judiciais vinculativos. Essa reconstrução normativa destas formas de impugnação é fundamental para conferir legitimidade democrática ao modelo que se pretender implementar.

    2. CONCEITO DE PRECEDENTE JUDICIAL

    Antes de se abordar a inserção da dinâmica dos precedentes judiciais no Código de Processo Civil de 2015, é primordial fazer uma breve digressão sobre o próprio conceito de precedente com o propósito de analisar, criticamente, o tratamento normativo dado ao tema pelo código. Não há como assimilar as regras do CPC sem antes estabelecer um conceito, ainda que precário, de precedente judicial.

    Para se compreender a função de um precedente judicial num dado sistema jurídico é imprescindível apreender seu significado na cultura jurídica em que está inserido. Nos países que adotam o common law, é considerado precedente judicial a decisão que, ao julgar um hard case, cria uma regra, universalizável, para o caso concreto sub judice, mas que poderá ser utilizado na resolução de outros casos em que as circunstâncias fáticas forem similares. Neste contexto, observar a história institucional do órgão julgador é fundamental para que se possa manter a integridade do ordenamento jurídico. Assim sendo, cada decisão proferida no sistema common law pode ser considerada, metaforicamente, um capítulo num romance em cadeia, para usar a expressão de Dworkin (2010).

    Neste horizonte, Michele Taruffo (2014) entende precedente como uma regra universalizável que pode ser aplicada como critério para decisão no próximo caso concreto em função da identidade ou da analogia entre fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso. O conceito de Taruffo (2014) contempla a ideia basilar de precedente e de sua aplicação.

    A partir do método da hermenêutica Juraci Mourão Lopes Filho (2014) expõe um interessante conceito de precedente. Para este autor precedente é uma resposta institucional a um caso que tenha causado ganho de sentido para as prescrições jurídicas envolvidas no caso, constitucional ou infraconstitucional, seja mediante a obtenção de novos sentidos, seja através da escolha de um sentido e detrimento de outros ou mesmo avançado em sentidos que não foram tratados, a priori, pelo legislador.

    Thomas Bustamante (2012, pág. 259), a partir da teoria normativa, compreende precedente judicial como um texto que carece de interpretação, tal como ocorre com enunciados legislativos. Para este autor, mais importante do que elaborar um conceito amplo de precedente é compreender o que é ratio decidendi e os critérios para sua determinação. De fato, a tarefa de extrair o elemento vinculante do precedente é a tarefa mais difícil para o intérprete nos países que adotam o common law. Nesta linha de análise, será considerado precedente judicial a decisão que, ao decidir um caso difícil, expõe, de forma indubitável, os fundamentos determinantes de maneira que possa aplicar em outro caso concreto.

    Em similar linha de reflexão, Mitidiero entende precedente judicial como as razões jurídicas necessárias e suficientes que resultam da justificação das decisões prolatadas pelas Cortes Supremas a pretexto de solucionar casos concretos e que servem para vincular o comportamento de todas as instâncias administrativas e judiciais do Estado Constitucional e orientar juridicamente a conduta dos indivíduos e da sociedade civil.

    Independente do conceito que se adote, certo é que a ratio decidendi, ou fundamentos determinantes, é o elemento constitutivo de um precedente, pois será utilizado, discursivamente, para solução de outros casos cujas circunstâncias fáticas sejam semelhantes. Assim, para se definir qual decisão será considerada precedente o critério quantitativo é preterido em relação ao qualitativo. Com efeito, uma única decisão pode ser considerada precedente judicial, como bem apontou Taruffo (2014), desde que se possa extrair uma regra aplicável em outros casos semelhantes.

    Partindo dos conceitos dos autores mencionados acima, conclui-se que enunciados, verbetes de súmulas dos tribunais, locais ou superiores, ou mesmo súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal, não são considerados precedentes judiciais. Essa premissa teórica nos permite analisar com mais acuidade o modelo de vinculação de decisões judiciais proposto pelo Código.

    3. PRECEDENTES JUDICIAIS NO CPC/2015

    O Código de Processo Civil de 2015 foi estruturado com escopo de dar maior celeridade e isonomia no tratamento de demandas repetitivas. Essa proposta do código pode ser constatada em diversos dispositivos legais, dentre os quais podemos destacar o art. 332, que trata da improcedência liminar, e o art. 976, que rege o incidente de demandas repetitivas.

    Para assegurar a aplicação dos precedentes judiciais no âmbito dos tribunais brasileiros o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 235, de 13 de julho de 2016, através da qual determina a criação dos Núcleos de Gerenciamento de Precedentes, evitando que temas repetitivos ou mesmo pacificados sejam encaminhados aos tribunais superiores. Neste contexto, tanto os dispositivos do código como a referida resolução têm como escopo viabilizar a plena verticalização e aplicação dos precedentes judiciais vinculantes no Brasil⁵. Os tribunais superiores e os tribunais locais estão, paulatinamente, se estruturando para criar Núcleos de Gerenciamento de Precedentes. Esta celeridade evidencia o interesse do Poder Judiciário brasileiro em tornar efetiva as regras sobre precedentes judiciais.

    Importante ressaltar que o movimento legislativo em relação à vinculação aos precedentes judiciais se iniciou antes mesmo da aprovação do CPC/2015, com a edição das súmulas vinculantes, repercussão geral e padronização decisória através dos recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça.

    As reformas processuais deflagradas pela Lei nº 9.756/1998 e pela Emenda Constitucional nº 45 contribuíram para o fortalecimento do uso da denominada jurisprudência dominante (art. 557, CPC/1973) e para o estabelecimento da metodologia de julgamento padronizado através da repercussão geral, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, e do julgamento de recursos repetitivos, no Superior Tribunal de Justiça. É evidente que essas reformas contribuíram para racionalizar a atividade judicial reduzindo consideravelmente o volume de trabalhos dos tribunais superiores. Contudo, o avanço normativo não foi acompanhado pela literatura processual crítica sobre o modelo de julgamento por precedentes judiciais e de sua eficácia em nossa cultura jurídica⁶.

    No período de debates e, principalmente, no período de vacância do CPC/2015, importantes obras sobre o tema foram publicados no Brasil, o que vem contribuindo para se consolidar no país estofo doutrinário sobre precedentes judiciais. Mas fato é que a dinâmica dos precedentes judiciais foi inserida em nosso ordenamento jurídico processual sem um ambiente teórico e conceitual que desse conta das novas regras do CPC. Assim, a inserção dos precedentes judiciais como forma primária do direito exige profunda reformulação da teoria do direito e do processo como também do próprio ensino jurídico.

    Esse déficit vem sendo superado pela literatura processual⁷, conforme foi dito, mas se faz necessário o constante debate sobre a dinâmica dos precedentes judiciais no Brasil com o escopo de evitar que os mesmos sejam utilizados menos como forma de construção e evolução do direito do que meio supostamente legitimo para reduzir o volume de trabalho do Poder Judiciário. Sem essa reflexão crítica, corre-se o risco, no Brasil, da prática judiciária permanecer tal como antes da vigência do CPC/2015.

    Partindo para uma análise mais detalhada do CPC/2015, este modelo de julgamento foi ampliado ao estruturar uma dinâmica de verticalização vinculativa dos precedentes judiciais de modo a evitar a proliferação de demandas repetitivas e racionalizar a atividade judicial por meio de decisões paradigmas. Embora o art. 926, §2º disponha que as súmulas deverão ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes judiciais que motivaram a sua criação, não expõe de forma unívoca qual decisão será considerada precedente judicial. No entanto, apresenta um rol diversificado de decisões no art. 927, que deverão ser observadas pelos juízes e tribunais, contribuindo para dificultar ainda mais a compreensão sobre o tema. É preciso, portanto, compreender o que pode ser definido como precedentes judiciais na processualística brasileira.

    Ao abordar o tema, Lenio Streck e Georges Abboud (2016) sustentam que o art. 927 do CPC, em verdade, trata de provimentos legalmente vinculantes, pois não há como atribuir às súmulas e a determinados acórdãos proferidos nos julgamentos de incidentes de coletivização (IRDR) natureza precedental. Não discordo da posição dos autores. Entretanto, embora o código tenha dito menos do que deveria, ou até mesmo padeça de técnica legislativa, certo é que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça proferem decisões com evidente natureza precedental. E é a partir desta concepção que se deve interpretar as regras sobre precedentes judiciais dispostas no CPC. Súmula não é precedente, mas as decisões que a ensejaram podem ser.

    Esta interpretação se alinha com a percepção de Aluisio Mendes (2017, pág. 97) sobre o tema. Segundo o autor o código dispôs um sistema de pronunciamentos qualificados, ou de jurisprudência e precedentes definido legalmente e que, portanto, não pode ser considerado um regime próprio em que os precedentes em geral passam a ter caráter vinculativo no sentido vertical e horizontal. No entanto, o autor afirma que não existe apenas um mero efeito persuasivo nas hipóteses indicadas no art. 927 do CPC.

    A análise do autor nos permite inferir que o código trata de provimentos judiciais vinculativos, conforme rol de decisões judiciais elencados no art. 927, e decisões judiciais que, a despeito de não constarem no rol do referido dispositivo, podem ser definidos como precedente judicial, como acórdãos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça proferidos sem observância da metodologia de julgamento de recurso repetitivo, em razão da questão jurídica debatida. Diferenciar conceitualmente os provimentos judiciais mencionados acima é tarefa premente da teoria dos precedentes, que está em fase embrionária no Brasil.

    Não se pode descurar dos aspectos positivos que a vinculação aos precedentes judiciais pode trazer à processualística brasileira. Assegurar maior segurança jurídica e isonomia no tratamento de questões idênticas, sobretudo num país continental como o Brasil, é prioridade de primeira grandeza. Entretanto, a vinculação decisória não pode ser utilizada, exclusivamente, como método para redução do volume de trabalho do Poder Judiciário. Se assim for a proposta perde sua legitimidade democrática.

    Para que haja o aprimoramento da atividade judicial, no que tange à formação dos precedentes judiciais ou provimentos judiciais vinculativos, é primordial o estudo e debate sobre as técnicas de edição, revisão e superação destes mesmos provimentos judiciais.

    3.1. Edição dos precedentes judiciais

    Os precedentes judiciais e sua dinâmica de aplicação foram tratados em diversos dispositivos do Código de Processo Civil de 2015, conforme mencionado acima. A ausência de um tratamento normativo mais sistemático exige do intérprete um esforço hermenêutico mais intenso para se definir quais tribunais serão responsáveis pela edição de precedentes judiciais ou por provimentos judiciais vinculantes.

    Segundo o art. 926 do CPC, os tribunais deverão uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, coerente e íntegra. Para tanto, caberá aos tribunais editar súmulas correspondentes à jurisprudência dominante (art. 926, §1º) e ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram a sua criação (art. 926§2º). A interpretação da regra sugere que todo e qualquer tribunal, locais ou superiores, poderão editar precedentes judiciais ou provimentos judiciais vinculantes.

    O art. 927 do CPC, por sua vez, dispôs sobre quais decisões judiciais terão efeito vinculativo e quais órgãos judiciais serão responsáveis por sua edição. Assim, são considerados decisões judiciais com efeito vinculante as súmulas vinculantes e os acórdãos proferidos em controle da constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, os acórdãos proferidos em incidentes processuais (assunção de competência, incidentes de resolução de demandas repetitivas) proferidos pelos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e pelo Superior Tribunal de Justiça, pelas súmulas e acórdãos proferidos em julgamento de recursos extraordinários e recursos especiais repetitivos editados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, e, por fim, pelas orientações dos plenários ou órgãos especiais dos tribunais.

    O referido dispositivo legal é pouco elucidativo no que concerne à edição de precedentes judiciais. Tendo como escopo a conceituação de precedentes judiciais elaborada acima, há que se definir a competência funcional para edição de pronunciamentos judiciais vinculantes e precedentes. Daniel Mitidiero (2017) apresenta interessante equação sobre o tema. Para este autor o código apresenta, por um lado, formas de editar precedentes judiciais e, de outro, formas de consolidar a denominada jurisprudência uniformizadora. Nesta perspectiva teórica, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça são compreendidos como Cortes de Precedentes e os tribunais locais como Cortes de Justiça. Partindo desta premissa, os precedentes judiciais vinculativos serão editados, exclusivamente pelas Cortes de Precedentes.

    A proposta de Mitidiero (2017) está próxima da abordagem de Michelle Taruffo (2014) em clássico texto sobre precedentes judiciais e jurisprudência. Para Taruffo, a decisão judicial que pode ser descrita como precedente judicial é aquela que é proferida pela Corte de Cassação⁸. Essa perspectiva teórica de Taruffo, em relação à competência funcional para edição dos precedentes judiciais, contribui para nos auxiliar a compreender quais os órgãos do Poder Judiciário são responsáveis pela edição dos precedentes judiciais no Código de Processo Civil de 2015.

    Sendo assim, os tribunais locais são responsáveis pela edição de provimentos judiciais vinculativos (súmulas e acórdãos proferidos nos incidentes de assunção de incompetência e de resolução de demandas repetitivas) e os tribunais superiores responsáveis pela edição de precedentes judiciais vinculantes (acórdãos proferidos no julgamento de recursos excepcionais, repetitivos ou não) e de provimentos judiciais vinculativos (súmulas e acórdãos proferidos nos incidentes de assunção de incompetência e de resolução de demandas repetitivas).

    Destacar com clareza e objetividade as funções das Cortes superiores e dos tribunais locais na dinâmica da aplicação dos precedentes judiciais é fundamental para evitar a criação ilhas independentes e que se retroalimentam, através das quais cada tribunal local edita e cria o direito sem considerar a função harmonizadora, pelo menos em tese, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Atribuir competência funcional aos tribunais superiores, ainda que de forma hermenêutica e embrionária, para edição dos precedentes judiciais no contexto da processualística brasileira é medida salutar no sentido de assegurar a aplicação consistente e isonômica da dinâmica dos precedentes judiciais.

    3.2. Distinção, revisão e revogação dos precedentes judiciais

    A utilização dos precedentes judiciais como forma de criação e evolução do direito exige o desenvolvimento de técnicas processuais específicas para manter sua permanente crítica e atualização. Nos sistemas jurídicos que adotam o common law, o critério utilizado para analisar se um precedente judicial é aplicável ou não a um caso (distinguish), ou mesmo se aquele deve ser revogado por ser anacrônico (overruling), são técnicas elementares desta cultura jurídica processual. Sem essas técnicas processuais, a dinâmica dos precedentes judiciais perde sua legitimidade democrática, pois permitirá que os tribunais atuem de forma arbitrária e voltados, exclusivamente, para solucionar o problema do excessivo número de demandas seriais.

    O Código de Processo Civil de 2015 buscou incorporar essas técnicas processuais ao ordenamento jurídico processual brasileiro. O art. 927§3º e 4º do CPC trata da possibilidade de revisar e modificar os fundamentos determinantes dos precedentes judiciais, assegurando o respeito à segurança jurídica, a isonomia e a necessária modulação de seus efeitos. A regra do art. 927, §2º do código reforça o princípio da colaboração ao dispor que a revisão do precedente judicial ou da tese fixada poderá ser precedida de debate público com pessoas e entidades interessadas na revisão do precedente. Essa regra contraria frontalmente nossa cultura jurídica processual.

    É sabido que os tribunais brasileiros, sem exceção, alteram sua jurisprudência dominante por questões estranhas ao direito. Por exemplo, o ingresso de um novo integrante em uma Câmara Cível ou Turma é suficiente para mudar a orientação do órgão fracionário sobre determinada questão jurídica. O mesmo pode ocorrer nos tribunais superiores. Em outra perspectiva, não há um procedimento claro acerca da superação de um entendimento dominante em um tribunal ou mesmo órgão fracionário. É muito comum no Brasil um órgão fracionário acolher uma tese jurídica ventilada num recurso e no semestre seguinte decidir diametralmente oposto ao julgado anterior.

    Um exemplo, dentre inúmeros outros, pode ilustrar o que foi dito. O Superior Tribunal de Justiça cancelou a Súmula 603 no dia 22/08/2018 (REsp. 1.555.722, julgado pela 4ª Turma). A referida Súmula, que fora aprovada em fevereiro do mesmo ano pela 2ª Seção da Corte, dispunha acerca da vedação aos bancos mutuantes de reter parte do salário para adimplir mútuo contraído. Considerando a natureza da relação jurídica, não há dúvida da quantidade de demandas judiciais que utilizaram como fundamento a mencionada súmula.

    A despeito do curto período de vida útil do verbete, aproximadamente 06 meses, certo é que no período em que esteve em vigor foi utilizado como fundamento em diversas demandas e seu cancelamento abrupto acarretará transtornos de ordem material e processual em diversos tribunais locais. Não se questiona a possibilidade de revisão e cancelamento de verbetes sumulares. O que se discute é o fato de a súmula ser cancelada sem qualquer sinalização prévia por parte do Superior Tribunal de Justiça, surpreendendo inúmeros jurisdicionados que se motivaram a demandar em juízo tendo como fundamento a orientação prévia enunciada no verbete.

    Outro ponto problemático diz respeito à ausência de democratização no procedimento de cancelamento da súmula. Somente o integrante do Ministério Público teve acesso ao debate. Percebe-se, portanto, que o cancelamento da referida súmula observou a cultura jurídica processual e institucional consolidada no período anterior ao Código de Processo Civil de 2015, onde tal procedimento de revisão de tese jurídica era considerado uma etapa administrativa e dispensava a colaboração das partes e interessados. No ordenamento jurídico processual vigente o cancelamento realizado como decisão surpresa não coaduna com as regras do art. 927, § 3º e 4º do CPC. Deve-se refletir sobre o impacto da revisão na prática forense e, principalmente, democratização do debate.

    Conforme bem assinalam Theodoro Junior, Nunes, Bahia & Pedron (2015, pág. 340), se a práxis judiciário não for repensada, no que concerne à edição, revisão e cancelamento de precedentes judiciais, corre-se o risco de estarmos, no Brasil, criando uma nova forma de legislação proveniente de um novo poder, a juristocracia. É exatamente por essa razão que se faz premente refletir sobre os mecanismos de controle e aperfeiçoamento da dinâmica dos precedentes judiciais.

    3.3. Aplicação e controle dos precedentes judiciais

    O Código de Processo Civil trata especificamente da aplicação dos precedentes judiciais vinculativos nos arts. 332, 489, §1º e art. 932, IV e V. A interpretação sistemática destes dispositivos legais nos permite compreender o efeito vinculativo pretendido pelo código. A regra do art. 332 autoriza ao juiz julgar liminarmente o pedido formulado pelo autor nas hipóteses em que este for contrário aos precedentes judiciais. Este dispositivo estabelece, normativamente, vinculação vertical do primeiro grau de jurisdição aos precedentes judiciais dos tribunais superiores. É imprescindível ao magistrado efetuar uma acurada análise do caso concreto para que uma pretensão não seja rejeitada liminarmente por equívoco ou inadequada interpretação dos fatos

    O art. 489, §1º do código veda ao julgador acolher ou rejeitar a pretensão deduzida em juízo utilizando como fundamento a mera menção a súmulas, ementas ou mesmo se limitar a transcrever o número do recurso extraordinário ou especial. Há de se fundamentar, de forma adequada e estruturada, explicitando as razões pelas quais foi aplicado determinado precedente ou mesmo os motivos pelos quais um determinado precedente foi afastado. Exige-se, portanto, uma minuciosa distinção acerca dos precedentes judiciais aplicáveis ao caso concreto sub judice.

    Essa regra colide frontalmente com a cultura jurídica processual estabelecida no Brasil. Em nossa práxis judiciária a jurisprudência sempre foi utilizada como elemento persuasivo ou mesmo ilustrativo da tese jurídica articulada na decisão. O intenso volume de processos seriais ou repetitivos contribuiu para que, em alguns casos, a fundamentação de algumas decisões judiciais se limitasse a transcrever, na íntegra, a ementa ou as razões de decidir de julgados dos tribunais superiores sem sequer justificar em que medida aquele julgado é aplicável ao caso concreto⁹. Tal prática é rechaçada pelo art. 489, §1º do CPC.

    A Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Janeiro traz à lume importante fundamento jurídico ao julgar recurso sobre o tema. Para este órgão fracionário, a fundamentação qualificada ou analítica é elemento essencial para legitimação democrática da decisão judicial. Embora não aborde especificamente o critério de distinção na aplicação dos precedentes judiciais a decisão representa um avanço qualitativo no trato do tema. O mencionado fundamento pode ser identificado no trecho transcrito abaixo:

    Ora, sendo certo que a função jurisdicional é uma manifestação do poder do Estado, e sendo, pois, o magistrado brasileiro agente de um Estado Democrático de Direito, impõe- se a ele que observe critérios democráticos de exercício do poder, de forma a legitimar seus atos perante a ordem jurídica e perante a sociedade a que serve o Estado de que é agente. Consequência disso é que as decisões judiciais precisam ser substancialmente justificadas, para que sejam consideradas democraticamente legitimadas a produzir seus efeitos jurídicos (Agravo de Instrumento nº 0034314-40.2018.8.19.0000, Relator Des. Alexandre Freitas Câmara, Julgado em 15/05/2018.)

    Em outra perspectiva, o art. 932, IV e V, atribui ao relator poderes para dar provimento aos recursos contra decisões que contrariaram precedentes judiciais ou negar provimento aos recursos cuja fundamentação contrarie, também, precedentes judiciais. A regra, em verdade, tem como escopo fortalecer e valorizar a dinâmica dos precedentes judiciais como também evitar a proliferação de recursos protelatórios. Caso haja aplicação inadequada deste dispositivo legal pelo relator, caberá a parte interessada interpor agravo interno (art. 1.021 do CPC)¹⁰ e promover a distinção na aplicação dos precedentes.

    Não restam dúvidas que as regras dos arts. 332 e 932, IV e V, têm como principal escopo promover a filtragem das demandas repetitivas, no âmbito do primeiro e segundo grau de jurisdição, de modo a racionalizar a atividade judicante. Em outra dimensão, essas regras pretendem organizar um método de aplicação vertical dos precedentes judiciais editados pelos tribunais superiores.

    É neste sentido que se faz necessário ponderar sobre os meios de controle na aplicação da dinâmica dos precedentes judiciais com o propósito de evitar arbitrariedades ou mesmo disfunções em sua práxis. A utilização qualificada dos precedentes judiciais não faz parte da cultura jurídica processual brasileira, conforme foi abordado acima. Há, portanto, uma tensão entre a dinâmica normativa proposta pelo código e a dinâmica da práxis vivenciada pelos tribunais brasileiros. Sem um adequado controle não há dúvidas de que prevalecerá a práxis que perpassa nossa cultura jurídica, ou seja, a jurisprudência como forma de reduzir o volume de trabalho do Judiciário. Neste contexto, os recursos excepcionais e as ações autônomas de impugnação ganham nova roupagem normativa.

    4. FUNÇÕES DOS RECURSOS EXCEPCIONAIS

    No período anterior à vigência do Código de Processo Civil de 2015 a principal função dos recursos excepcionais era assegurar a uniformidade da interpretação da Constituição Federal e da legislação federal em todo território nacional. Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 o Supremo Tribunal Federal era responsável pela uniformização da interpretação tanto do texto constitucional como também da legislação federal. Esta tarefa hercúlea era realizada no âmbito da competência originária, via controle da constitucionalidade, e da competência recursal, pela via do Recurso Extraordinário.

    Em importante trabalho, Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas (2017) destacam que a principal causa do excesso de trabalho da corte constitucional era a centralização na unidade do direito. A centralização da competência da União para legislar sobre direito civil, penal e processual contribuiu, na percepção dos autores, para sobrecarregar a atividade judicante do Supremo Tribunal Federal no período anterior à Constituição Federal de 1988.

    Neste contexto, a Constituição Federal de 1988 criou o Superior Tribunal de Justiça com o objetivo de racionalizar a atividade jurisdicional das cortes superiores atribuindo a este tribunal a uniformização da interpretação da lei federal, permitindo que o Supremo Tribunal Federal direcionasse os esforços para qualificar o controle da constitucionalidade e assegurar a uniformização da interpretação da Constituição Federal em todo território nacional. Partindo desta premissa, importantes segmentos da literatura processual atribuiu aos tribunais superiores a denominação de Cortes de Correção (MARINONI, 2017).

    Entretanto, o Código de Processo Civil ampliou o alcance e a própria função dos recursos excepcionais. Nesta linha de análise, os recursos excepcionais, por um lado, mantem sua função uniformizadora da interpretação da legislação federal e do texto constitucional, e, também, como meio processual próprio para formação de precedentes e provimentos judiciais vinculativos. Alguns dispositivos do código revelam essa dupla função. O art. 332, II, autoriza o juiz a julgar improcedente o pedido, liminarmente, sempre que o pedido formulado pelo autor contrariar acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos.

    Ao tratar da vinculação aos precedentes judiciais, o art. 927, III, dispõe que os juízes observarão os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento de recursos especiais repetitivos. Nesta mesma perspectiva, o art. 932, IV, b, V, b, atribuem ao relator dos recursos nos tribunais poderes para negar provimento aos recursos cujas razões contrariarem acórdãos dos mencionados tribunais ou proverem recursos quando a violação decorrer da própria decisão.

    A interpretação sistemática e teleológica destes dispositivos revela a proposta do código no sentido de instituir como função preponderante dos recursos excepcionais a formação de precedentes judiciais com força vinculante¹¹. Assim sendo, o código permite a ampliação de outros interessados, além das partes, que podem participar do processo decisório e influir na formação do precedente judicial.

    Um caso emblemático pode ser mencionado sobre este ponto. O Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luiz Felipe Salomão, considerando a identidade temática dos Recursos Especiais nº 1498485, 1635428, 1631485 e 1614721, designou audiência pública para ouvir diversos interessados sobre a questão a ser decidida. A matéria de fundo diz respeito à possibilidade ou não de cumulação de indenização por lucros cessantes com cláusula penal nos casos de atraso na entrega de empreendimentos imobiliários. Trata-se de controvérsia jurídica com forte repercussão jurídica e social.

    Foram habilitados 20 participantes, que foram escolhidos observando a diversidade de posições em relação ao tema e a representatividade dos habilitados. O Ministro relator evidenciou em seu voto os critérios utilizados para escolher, dentre tantos outros, os 20 participantes:

    Desta feita, com vistas à construção de espaço deliberativo efetivo, em que todas as manifestações apresentadas sejam, de forma real, consideradas e analisadas pelos julgadores, as inscrições deferidas o foram com fundamento nos seguintes critérios: (I) representatividade técnica no espaço da área de conhecimento a que pertencem, (II) atuação ou expertise especificamente na matéria e (III) garantia da pluralidade e paridade da composição da audiência, bem como das abordagens argumentativas a serem defendidas.

    Esse dado é importante por, pelo menos, dois aspectos. Primeiro, não fazia parte da práxis do Superior Tribunal de Justiça, no período antes à vigência do CPC/2015, realizar audiência pública para ouvir interessados antes de decidir sobre questões infraconstitucionais. Percebe-se que há uma reconfiguração institucional para lidar com as dimensões colaborativas do código. O segundo aspecto concerne ao amplo número de interessados que formularam requerimento para participar da audiência pública, o que revela a dimensão democratizante trazida à lume pelo CPC/2015 (CATHARINA, 2015).

    Essa casuística é importante para evidenciar a nova roupagem ou função dos recursos excepcionais. Além da função corretiva, onde se busca a revisão da decisão que contrariou texto constitucional ou lei infraconstitucional, estes recursos propiciam um espaço para construção coletiva de um precedente ou provimento judicial vinculativo. A ampliação da atuação dos amici curiae em todos os graus de jurisdição (art. 138) e a designação de audiência pública nos julgamentos dos recursos excepcionais (art. 1,038, II) constituem elementos essenciais para conferir legitimidade democrática à formação dos precedentes judiciais no âmbito das cortes superiores.

    Pode-se afirmar, portanto, que a principal função dos recursos excepcionais no modelo democrático de processo proposto pelo CPC/2015 é assegurar a pluralidade de argumentos na formação dos precedentes judiciais. Nesta linha de análise, a vinculação aos precedentes judiciais disposta no código somente se legitima com a participação dos segmentos da sociedade, que serão afetados pela decisão, no julgamento dos recursos excepcionais.

    5. FUNÇÕES DAS AÇÕES AUTÔNOMAS DE IMPUGNAÇÃO

    O controle das decisões judiciais é realizado na processualística brasileira através dos recursos, ordinários e extraordinários, ou de ações autônomas de impugnação. Neste contexto, o Mandado de Segurança, a Ação Rescisória, a Ação Anulatória ou mesma a Reclamação são utilizadas para impugnar decisões judiciais nos casos previstos em lei. Diante do escopo deste trabalho, interessa-nos analisar as alterações normativas ocorridas no procedimento da ação rescisória e da reclamação.

    Na vigência do CPC/1973, tanto a reclamação como a ação rescisória eram utilizadas, exclusivamente, para tutelar, subjetivamente, os interesses das partes. O julgamento destes meios de impugnação não extrapolava os limites subjetivos da causa. A admissão destas ações propostas por terceiros era condicionada a demonstração do interesse jurídico. Essa limitação é caudatária da cultura jurídica liberal fundante do processualismo brasileiro.

    Com efeito, a roupagem destes meios autônomos de impugnação foi reformulada pelo CPC/2015, para contemplar, em seu objeto, controle da aplicação da dinâmica dos precedentes judiciais dos tribunais superiores nos órgãos fracionários e juízes de primeiro grau. Essa perspectiva de análise nos permite inferir que as ações autônomas de impugnação possuem dupla função no ordenamento jurídico processual vigente.

    Partindo desta perspectiva, essas ações autônomas de impugnação mantiveram sua função precípua de controlar, subjetivamente e em casos específicos, decisões judiciais. Em outra dimensão, as mencionadas ações autônomas foram redimensionadas para contemplar em seu objeto a impugnação de decisões, transitadas em julgado ou não, que contrariarem precedentes judiciais vinculativos. Passemos, então, à análise destes meios autônomos de impugnação.

    Historicamente a ação rescisória era utilizada para impugnar vícios que não eram acobertados pelo efeito preclusivo da coisa julgada, conforme rol taxativo do art. 966 do Código de Processo Civil. Este viés normativo atribuía à ação rescisória o escopo de afastar a barreira da coisa julgada e permitir a rescisão do julgado ou mesmo novo julgamento do caso, conforme a casuística apresentada em juízo. No ordenamento processual vigente, a ação rescisória tem como escopo, também, rescindir decisão que tenha aplicado de forma inadequada precedente judicial vinculativo (art. 966, §5º).

    Interessante destacar que a regra mencionada acima foi inserida pela Lei nº 13.256/2016, e nos permite inferir que a sua principal finalidade é evitar disfunções na dinâmica de aplicação dos precedentes judiciais vinculativos. Assim, nos casos em que a petição inicial do demandante foi liminarmente julgada improcedente (art. 332, I e III), equivocadamente, poderá ser ajuizada ação rescisória com objetivo de rescindir o julgado por ausência de distinção ao aplicar precedente judicial ao caso concreto. O mesmo poderá ocorrer nos casos em que o recurso for improvido ou provido (art. 932, IV, a e c, V, a e c) sem a necessária distinção na aplicação dos precedentes judiciais.

    Embora a interpretação literal da regra do art. 966, §6º sugira que a revisão será particularizada às circunstâncias fáticas da causa, não se pode negar que o julgamento da ação rescisória possa provocar o overruling do precedente judicial sob análise. Independente da interpretação que se possa atribuir a regra, fato é que a ação rescisória tem como um de seus escopos o controle das decisões judiciais no que tange à aplicação dos precedentes judiciais.

    A reclamação, por sua vez, tinha previsão exclusivamente na Constituição Federal de 1988. Com efeito, cabe reclamação para STF para preservação de competência ou assegurar a autoridade de suas decisões (102, I, l). Para o STJ caberá reclamação para preservação de competência ou assegurar a autoridade de suas decisões, nos termos do art. 105, I, f da CF/88.

    O Código de Processo Civil além de reproduzir as hipóteses constitucionais mencionadas acima no art. 988, ampliou seu escopo para contemplar a possibilidade do ajuizamento deste meio de impugnação para garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade (art. 988, III) como também a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência (art. 988, IV). Ambas as regras foram inseridas, similarmente, pela Lei nº 13.256/2016.

    Neste sentido, a decisão judicial proferida sem considerar as teses jurídicas previamente fixadas em incidentes, acórdãos do Supremo Tribunal Federal em controle da constitucionalidade e súmulas vinculantes será cassada pelo tribunal competente. A ampliação do objeto da reclamação, promovida pela Lei nº 13.256/2016, transformou este meio de impugnação numa forma qualificada de controle na aplicação dos precedentes judiciais. Ainda nesta linha de reflexão, o art. 988, §4º do CPC dispõe que caberá reclamação nos casos em que a tese jurídica, nas hipóteses dos incisos III e IV, for utilizada de forma indevida ou inadequada.

    O tratamento normativo dado à reclamação pelo código, com a redação dada pela Lei nº 13.256/2016, reforça a hipótese trabalhada neste artigo no sentido de que a função primária da reclamação é assegurar a aplicação adequada dos precedentes judiciais em um dos órgãos do Poder Judiciário.

    Diante da reflexão levada a efeito neste trabalho, os recursos excepcionais e as ações autônomas de impugnação, no modelo precedental, são instrumentos processuais que contribuem para a formação, revisão e mesmo superação dos precedentes judiciais. No common law, a revisão e superação do precedente é realizada pela própria Corte que o editou, independente de provocação das partes, como bem assinalou Maira Portes (2010). Tal método de controle decorre da práxis estabelecida naquela cultura jurídica.

    No mundo do civil law, ou mesmo nos sistemas híbridos como o Brasil, a revisão e superação de um precedente judicial ou mesmo provimento vinculativo não pode prescindir de participação das partes e da sociedade civil. Assim, os recursos excepcionais e as ações autônomas de impugnação são revitalizadas no CPC/2015 com a função integradora e restauradora do ordenamento jurídico, assegurando a legitimidade democrática do modelo precedental de julgamento. O presente trabalho objetiva contribuir para este debate.

    6. CONCLUSÃO

    O principal objetivo deste trabalho foi refletir sobre as novas funções dos recursos e excepcionais e de algumas ações autônomas de impugnação na dinâmica de aplicação dos precedentes judiciais. Partindo desta premissa, os recursos excepcionais permitem aos interessados influir na formação dos precedentes judiciais editados pelos tribunais superiores.

    Pode-se, portanto, afirmar que os recursos excepcionais possibilitam atuação prévia dos interessados na formação dos precedentes judiciais, seja pela atuação como amigos da corte ou como interveniente na audiência pública. Em outro vetor de análise, a ação rescisória e a reclamação permitem aos interessados a cassação da decisão que não observou ou aplicou indevidamente os precedentes judiciais.

    Tanto num caso como noutro, há a possibilidade da sociedade participar, efetivamente, na formação e revisão dos precedentes judiciais, o que confere maior legitimidade democrática a este modelo processual disposto no Código de Processo Civil. O trabalho não apresenta conclusões finais sobre o tema. Ao contrário. Pretende inaugurar um diálogo para que ampliemos a visão acerca deste tema tão instigante e complexo.

    7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o sistema (sic) de precedentes no CPC? In: Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2016. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2016-ago-18/senso-incomum-isto-sistema-sic-precedentes- cpc>. Acesso em: 25/08/2018.

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    THEODORO JUNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flavio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.


    1 Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá. Professor de Direito Processual Civil da Universidade Está cio de Sá. Advogado. E-mail: alexandre.catharina@hotmail.com.br. Coordenador do Observatório de Cultura Jurídica Processual e Democratização do Processo da Universidade Estácio de Sá, Campus Nova América, RJ.

    2 Optamos por não utilizar o termo sistema de precedentes judiciais por entender que o CPC/2015 não tratou o tema como um conjunto ordenado e harmônico no sentido de explicitar, com clareza, o que será definido como precedente. Se faz necessário interpretar as regras distribuídas pelo código para se chegar a um mínimo hermenêutico sobre a dinâmica dos precedentes judiciais no sentido de viabilizar, de forma satisfatória, sua adequada aplicação. O código trata como provimento vinculativo sumulas, súmulas vinculantes e acórdãos. Essa generalização dificulta a compreensão do tema. Diante disto, utilizaremos ao longo do texto expressões como dinâmica dos precedentes judiciais ou conjunto de regras para se referir ao tema.

    3 O conceito de morosidade sistêmica foi utilizado por Boaventura Santos (2006) ao analisar o intenso congestionamento do Poder Judiciário.

    4 Importante ressaltar que as reformas processuais resolvem, em parte, o problema do congestionamento do Poder Judiciário. Em paralelo às reformas do processo, se faz necessário promover reformas estruturais como ampliação e especialização de Varas e expansão do quadro de funcionários.

    5 No Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro localizamos 61 decisões monocráticas ou acórdãos, que utilizaram como fundamento o art. 332 do CPC, proferidos período de 2016 a 2018 (agosto). Esse dado revela que a improcedência liminar vem sendo utilizada regularmente pelos juízes fluminenses e pode contribuir para o descongestionamento do Poder Judiciário em casos seriais. Acesso em 13/08/2018.

    6 Vitor Nunes Leal, ao propor súmulas vinculantes para organizar a orientação do Supremo Tribunal Federal, foi um dos primeiros a refletir sobre provimentos judiciais vinculativos com o objetivo de reduzir o alto número de recurso interpostos. Barbosa Moreira, em clássico texto O processo civil em dois mundos (2001), aponta as divergências entre os sistemas civil law e common law, a partir do direito processual norte-americano, mas destaca que há influxos que permite intercâmbio entre estes modelos processuais. Esses primeiros movimentos epistemológicos foram fundamentais para inaugurar no Brasil reflexões sobre o direito jurisprudencial.

    7 Juraci Mourão Lopes (2014, pág. 22) faz um extenso inventário de obras sobre precedentes judiciais publicadas no período compreendido entre tramitação do Projeto do novo código e a vacância do ordenamento processual.

    8 Ao longo do texto o autor se posiciona no sentido de que a edição de precedentes judiciais, vinculativos, são editados pela Corte de Cassação, que tem como função precípua uniformizar a interpretação do direito em âmbito nacional,

    9 Segundo integrantes da Escola mineira de processo, não mais se admite, na vigência do CPC/2015, simulações de fundamentações nas quais o juiz repete o texto normativo ou ementa do julgado que lhe pareceu adequado ou preferível, sem justificar sua escolha. Ver Theodoro Junior, Nunes, Bahia & Peron. (2015, pág. 302).

    10 Sobre a nova roupagem do agravo interno ver Alexandre Catharina (2016).

    11 Este modelo de formação de precedentes judiciais já era utilizada pela Suprema Corte antes mesmo da vigência do CPC/2015. O julgamento do Recurso Extraordinário nº 845779 é emblemático neste sentido. Neste julgado, os Ministros da Suprema Corte decidiram que os transgêneros poderão utilizar os sanitários Neste julgado, os Ministros da Suprema Corte decidiram que os transgêneros poderão utilizar os sanitários que melhor se adequem com suas identidades de gênero. Interessante destacar que a decisão se transformou num importante precedente judicial para o movimento LGBTT.

    ACESSO À JUSTIÇA DIGITAL E PERSPECTIVAS PARA O BRASIL

    BRAGANÇA, Fernanda¹²

    RESUMO

    O acesso à justiça digital no Brasil é tratado com algumas ressalvas a partir da análise de que uma parcela da população brasileira não tem acesso à internet, tem uma rede precária ou não sabe utilizar esta ferramenta. Este artigo tem a proposta de analisar este cenário a partir dos dados mais recentes mapeados no país e responder sobre a indagação: qual a tendência para o acesso à justiça digital após a pandemia? As recentes normativas publicadas pelo Conselho Nacional de Justiça, particularmente, as resoluções no. 345 e 358 indicam que a utilização dos serviços judiciários em meio digital será mais uma opção disponibilizada às partes, ou seja, não será obrigatória. A metodologia de pesquisa consistiu em uma revisão bibliográfica sobre o assunto na literatura nacional e internacional e na análise de dados de estudos empíricos sobre o uso da internet pelos brasileiros, tendo em vista uma verificação quantitativa desta questão.

    Palavras-chave: acesso à justiça; justiça digital; Juízo 100% Digital; plataformas de solução de conflitos; mediação e conciliação online.

    1. INTRODUÇÃO

    A incorporação da inovação tecnológica no Judiciário é um tema relevante por diversas frentes como a institucional, do jurisdicionados, dos profissionais que atuam neste sistema como advogados, juízes e servidores. Neste artigo, esta temática é analisada pela perspectiva do acesso à justiça.

    O uso da internet para o serviço jurisdicional é uma realidade e, que durante o período de isolamento social, se tornou a única opção para a continuidade das atividades. Contudo, o uso mais frequente da rede mundial de computadores para a prestação da jurisdição tem despertado a preocupação de alguns especialistas, sobretudo, em razão de uma parcela da população brasileira não ter acesso à web e/ou não saber utilizá-la. Assim sendo, este estudo visa entender a seguinte questão: qual a tendência para o acesso à justiça digital no país após a pandemia?

    A investigação tem como objetivos a contextualização do uso de tecnologias nos estudos sobre acesso à justiça e o aprofundamento sobre as perspectivas para a consolidação de um Judiciário digital no Brasil. A metodologia de pesquisa se baseou em uma revisão bibliográfica e análise de dados empíricos de levantamentos sobre o uso da rede mundial de computadores pela população brasileira.

    2. FASES DE ESTUDO SOBRE O ACESSO À JUSTIÇA

    Desde meados do século XX, iniciou-se um movimento de construção de um assistencialismo jurídico para possibilitar que pessoas sem condições financeiras também pudessem ingressar e litigar no Judiciário. Isto repercutiu em diversas reformas constitucionais que conferiram a esta garantia o status de fundamental (GLOBAL ACESS TO JUSTICE).

    Este movimento despertou o interesse dos pesquisadores Mauro Cappelletti, James Gordley e Earl Johnson Jr (1975) coordenarem uma pesquisa em conjunto para mapear como o assistencialismo jurídico havia se difundido pelo mundo e como se verificava na prática. O resultado foi publicado no livro "Toward Equal Justice: A Comparative Study of Legal Aid in Modern Societies" considerado o marco epistemológico no estudo comparativo dos modelos jurídicos assistenciais.

    Essas constatações impulsionaram a criação de uma grande equipe multidisciplinar para estudar o acesso à justiça em escala global com a intenção de detectar as fragilidades do sistema de cada país. A iniciativa foi denominada Projeto Florença (Florence Access-to-Justice Project) e foi liderada por Mauro Cappelletti, Bryant Garth e Earl Johnson Jr. O resultado deste projeto gerou os cinco volumes da obra "Access to Justice".

    O volume I desta obra tratou sobre as três ondas de acesso à justiça. A primeira focou nos custos para a resolução de litígios no âmbito do sistema judiciário formal e serviços jurídico assistenciais para os mais pobres e vulneráveis; a segunda em iniciativas contemporâneas para garantir a representação dos direitos difusos e coletivos e a terceira destacou o aprimoramento do procedimento e das instituições que compõem o sistema de processamento de litígios.

    O acesso ao Judiciário mobiliza dispêndios com advogados, custas processuais e outros custos que, muitas vezes, não conseguem ser arcados pela camada mais humilde da população. Nesse sentido, o primeiro movimento dos Estados foi no sentido de garantir assistência judiciária gratuita aos vulneráveis economicamente. Esta assistência poderia ser em três modelos, sendo o primeiro deles o sistema judicare, o qual consiste na contratação de advogados privados pelo Estado com o objetivo de prestar assistência judiciária aos cidadãos hipossuficientes (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 13).

    O segundo modelo tratado pelos autores coloca em evidência o atendimento dos mais pobres enquanto classe. Os escritórios localizados dentro das comunidades encarregam-se da prestação da assistência judiciária remunerados pelo Estado. Em decorrência do grande número de demandas, uma tendência verificada foi a preterição do atendimento individual em detrimento dos casos de maior repercussão (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 16).

    O terceiro modelo é o combinado entre os dois anteriores, ou seja, em que há a possibilidade de escolha entre o atendimento por advogados particulares ou públicos. Nesta proposta, os indivíduos podem escolher entres os serviços personalizados de um advogado particular e a especialização dos advogados públicos em demandas relacionadas aos hipossuficientes (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 17).

    No Brasil, essa primeira onda de acesso à justiça se materializou, por exemplo, com a publicação da Lei no 1.060 de 1950 que estabelece normas para a concessão da assistência judiciária gratuita e com a instituição das Defensorias Públicas estaduais e da União.

    A segunda onda colocou em evidência que o processo civil tradicional, de cunho eminentemente individualista, atendia de modo insatisfatório a proteção dos direitos ou interesse difusos ou também chamados de coletivos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 19).

    Este movimento foi percebido no ordenamento jurídico brasileiro com a publicação da Lei no. 4.717 de 1965 (Ação Popular), da Lei nº. 7.347 de 1985 (Ação Civil Pública), da Lei nº. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor, em especial, artigo 81 e seguintes) e da Lei nº. 12.016 de 2009 (Mandado de Segurança Coletivo).

    A terceira onda de acesso à justiça tem como enfoque a ampliação das formas de acesso ao Judiciário e das outras formas de solução de conflitos. Este momento foi marcado por reformas que incluíram tanto a advocacia contenciosa quanto a preventiva ou consensual. O centra da atenção dos profissionais do Direito se volta às instituições e mecanismos, indivíduos e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas na sociedade (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 25).

    Neste contexto, foram criados os Juizados Especiais no Brasil com a proposta de ampliar as possibilidades de acesso à justiça das demandas de menor complexidade, com fundamento na previsão do artigo 98 da Constituição e na Lei nº. 9099 de 1995. Esta legislação confere uma maior abertura e facilidade às partes ao prever os princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade e também a inexigibilidade da representação por advogado nas ações com valor da causa de até 20 salários-mínimos.

    É neste cenário em que formas de solução de conflitos fora da esfera judiciária também passam a ser fomentados em um primeiro momento, particularmente, a conciliação e a arbitragem e, com o advento da Lei no. 13.105 de 2015 e da Lei no. 13.140 de 2015, houve um grande impulso à mediação.

    Em 2019, com a proposta de dar continuidade aos estudos do Projeto Florença, Bryant Garth idealizou o Global Access to Justice Project, ainda em andamento, voltado ao mapeamento das tendências do acesso à justiça no século XXI. A partir daí, foram inseridas novas ondas renovatórias de acesso: a quarta, sobre a ética nas profissões jurídicas; a quinta, voltada para a proteção dos direitos humanos; e a sexta, acerca do emprego de novas tecnologias.

    A quarta onda é proposta por um dos integrantes do Projeto Florença, Kim Economides, e trata sobre a ética nas profissões jurídicas e acesso dos advogados à justiça. A hipótese trabalhada pelo autor é de que o problema do acesso à justiça não está restrito ao acesso dos cidadãos, mas também dos profissionais que atuam no sistema, com destaque para os próprios patronos.

    O autor trabalha com o problema do acesso à justiça em três níveis: natureza da demanda dos serviços jurídicos; natureza da oferta dos serviços jurídicos e a natureza do problema jurídico conforme situações que os clientes desejem recorrer ao judiciário.

    O primeiro verifica as necessidades jurídicas não atendidas e busca mapear e quantificar estas deficiências. O segundo revela que os advogados atuam, preferencialmente, em grandes empresas e escritórios e, nesse sentido, a natureza e o porte dos serviços jurídicos ofertados exercem influência sobre a mobilização da lei (ECONOMIDES, 2013, p. 67). Por fim, a natureza do problema jurídico mostra que existem lacunas nos variados campos do Direito, quer pela ausência de profissionais voltados, especificamente, àquela área ou até pela carência de disciplina regulatória (Ibidem, p. 70).

    O autor volta, portanto, o seu objeto de investigação para os profissionais do Direito e complementa as análises do Projeto Florença na medida em que indica que a problemática do acesso à justiça precisa ser analisada a partir da conjugação da estrutura macro, com foco na demanda, e micro, a partir da oferta (PEREIRA, EMERIQUE, 2015, p. 343).

    A quinta onda renovatória corresponde ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Isto é, esta dimensão direciona-se à institucionalização de procedimentos que legitimem a participação e a autonomia dos cidadãos no sistema de justiça. Por esta perspectiva, o indivíduo deve ser visto como protagonista da ordem jurídica e social e não como um mero participante passivo das atividades do Estado (PEDRON, 2013, p. 6).

    A sexta onda diz respeito às iniciativas promissoras e novas tecnologias para aprimorar o acesso à justiça. O aprofundamento sobre esta dimensão tem como requisito a inclusão digital da sociedade e a percepção de que a internet é um instrumento democrático que possibilita um exercício da cidadania mais efetivo à dinâmica da vida social moderna com maior facilidade e transparência na obtenção de dados dos governos, acompanhamento de ações governamentais e diversificação dos canais para monitoramento dos representantes do Estado (JAQUES; SILVEIRA, 2020, p. 2).

    3. O ACESSO À INTERNET, JUSTIÇA DIGITAL E IMPACTOS NO BRASIL

    O uso da internet se tornou um hábito diário para a maioria das pessoas dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2019, em média, cerca de 95% dos indivíduos de 16 a 24 anos eram usuários frequentes da rede, conforme a figura 1 abaixo. Entre os de 55 a 74 anos, essa participação atingiu 58% em 2019, ante apenas 30% em 2010 (OCDE, 2020).

    Em 2020, países como a Finlândia, Coreia, Dinamarca, Nova Zelândia, Espanha e Reino Unido superaram a marca de 95% da população com acesso à rede mundial de computadores nas suas residências. Os dados de 2020 referentes aos Estados Unidos, Brasil, dentre outros ainda não foram compilados (OCDE, 2020a).

    Figura 1 – Uso da Internet por idade: porcentagem em cada faixa etária.

    Fonte: OCDE

    Esta preocupação se verifica materialmente, no Brasil, por exemplo, com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua sobre Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os resultados revelaram que 79,1% dos domicílios brasileiros possuíam acesso à internet no ano base de 2018. Este percentual varia segundo nas regiões do país, conforme a figura 2 a seguir (BRASIL, 2020, p. 6).

    Ainda com base nos dados de 2018, uma parcela deste grupo de brasileiros com acesso à internet continua sem utilizar a ferramenta e apontaram como principais motivos o fato de não saberem utilizar a rede (41, 6%) e falta de interesse (34,6%) (Ibidem, p. 11).

    Gráfico, Gráfico de barras Descrição gerada automaticamente

    Figura 2 – Percentual de domicílios com acesso à internet no Brasil.

    Fonte: IBGE

    O uso da internet banda larga também é uma realidade no Brasil. O IBGE detectou que o uso de rede discada está se tornando cada vez mais irrelevante, tendo passado de 0,6% em 2016, para 0,4%, em 2017, e baixado para 0,2%, em 2018 (Ibidem, p. 8).

    No que tange à utilização de banda larga fixa e móvel, a pesquisa identificou que nos domicílios brasileiros em que havia utilização da internet, o percentual dos que usavam banda larga móvel (3G ou 4G) era de 80,2% em 2018, enquanto o dos domicílios que utilizavam a banda larga fixa ficou em 75,9% no mesmo período, conforme mostra a figura 3 (Ibidem).

    Gráfico, Gráfico de barras Descrição gerada automaticamente

    Figura 3 – Internet banda larga e móvel nos domicílios brasileiros.

    Fonte: IBGE

    A crise sanitária provocou mudanças neste cenário, tendo em vista que muitas pessoas foram compelidas a migrar suas atividades de trabalho, estudo, consumo, dentre outros para o ambiente digital. Contudo, estes levantamentos ainda estão sendo realizados. Até o momento, o mapeamento feito no Brasil que levou em consideração este período foi o "Painel TIC COVID-19: sobre o uso da internet no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus", entretanto, esta investigação teve como público-alvo apenas os indivíduos que já possuem acesso à internet.

    Em que pese o uso da internet no país estar bastante disseminado, algumas regiões, em especial a Norte e Nordeste, possuem um número mais expressivo de pessoas à margem do mundo digital. Somado a isto, o IBGE também identificou que o acesso através do celular, que é o mais frequente (em 99,2% dos domicílios o telefone móvel era utilizado para este fim), ainda enfrenta dificuldades em algumas áreas por estarem fora do alcance do sinal de todas as operadoras (Ibidem, p. 7).

    Diante deste cenário, alguns autores (MOREIRA, 2020) problematizam o acesso à justiça digital no Brasil, tendo em vista que essa digitalização não pode constituir mais um obstáculo aos cidadãos e aos profissionais do Direito. Pela perspectiva desses estudiosos, os benefícios proporcionados pelo uso da tecnologia no âmbito do Judiciário estão associados, sobretudo, à agilidade na tramitação do processo e à redução de custos, sem preocupação, propriamente, com os usuários do sistema (Ibidem, p. 235).

    Porém, as normativas publicadas, recentemente, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que a utilização da internet para a prestação dos serviços judiciários é uma escolha das partes, sem qualquer caráter impositivo.

    A Resolução no. 345 de 2020 do Conselho Nacional de Justiça cria o Juízo 100% Digital e, com isso, todos os atos processuais serão exclusivamente praticados por meio eletrônico e remoto através da internet.

    Cabe destacar que a escolha pelo Juízo 100% Digital é facultativa e será exercida pela parte demandante no momento da distribuição da ação, podendo a parte demandada opor-se a essa opção até o momento da contestação. Ou seja, tanto o autor quanto o réu possuem autonomia para decidirem se o encaminhamento por esta via eletrônica é viável na circunstância em que se encontram.

    O fato da produção probatória ou de outros serviços do tribunal (como solução adequada de conflitos, cumprimento de mandados, centrais de cálculos) serem realizados presencialmente não impede que a parte se valha do Juízo 100% Digital, desde que os atos processuais possam ser convertidos em eletrônicos.

    Nestes sistemas, as audiências ocorrerão exclusivamente por videoconferência e o atendimento dos advogados pelos magistrados e servidores ocorrerá também de forma eletrônica durante o horário fixado para o atendimento ao público, observando-se a ordem de solicitação, os casos urgentes e as preferências legais.

    Em dezembro de 2020, o CNJ publicou ainda a Resolução no. 358 de 2020, que regulamentou a criação de soluções tecnológicas para a resolução de conflitos pelo Poder Judiciário por meio da conciliação e mediação. O objetivo é fazer com que os tribunais de todo o país disponibilizem, até junho de 2022, um sistema informatizado para a resolução de conflitos por meio da conciliação e mediação (SIREC). É importante destacar que este será mais um serviço disponível às partes que poderão optar pela realização das sessões presenciais ou através desta plataforma.

    4. CONCLUSÕES

    O uso de tecnologias para incrementar o acesso à justiça faz parte da sexta onda ou dimensão identificada pelo Global Access to Justice Project, que deu continuidade aos estudos do Projeto Florença iniciados em meados da década de 1990.

    No Brasil, o

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